A Palma de Ouro do Festival de Cannes é uma iguaria refinada, quase um atestado de qualidade fílmica ao cinema anacronicamente ainda chamado de autor. E não se trata apenas de um isolado apadrinhamento da obra, afinal carrega consigo a consagração de um cineasta ou mesmo a revelação dele como uma futura promessa à cinefilia mundial. Cannes pode servir tanto como plataforma (o atual e exagerado bam bam bam 'cena romena' confirma muito bem isso), quanto legitimação de uma trajetória cinematográfica consolidada (como a de Ken Loach, premiado em 2006 depois de mais de 30 anos de carreira). Não há como negar que alguns dos mais representativos cineastas contemporâneos já tiveram seus trabalhos selados pelo festival: David Lynch (1990), Lars Von Trier (2000) e Gus Van Sant (2003) são apenas alguns deles. Por outro lado, como bons espectadores não devemos supervalorizar essa premiação, a própria lógica de competição deveria pouco nos importar, pois os júris são modificados a cada ano e a escolha parece ser mais por afinidade estética de uma obra daquele ano com o grupo seletor daquele ano, do que uma definição padrão do melhor. Não há propriamente ‘o’ melhor. Todos - e dêem um desconto pela hipérbole - são e não são os melhores a cada ano. Essa instabilidade de julgamento, inclusive, é essencial para garantir a vitalidade e renovação do festival. Por isso, sempre penso que mais importante que saber quem venceu ou qual deveria vencer, é conhecer quem participou e quais primeiras impressões causaram. Daí sim, Cannes revela seu poder de mapeamento de uma produção marcada pela diversidade, por distintas práticas e não pela hierarquização, e se revela como um extenso e variado cardápio cinematográfico. Que chega tarde e frio ao Brasil é bem verdade, mas que devoramos – e é preciso devorar todos e não apenas o dito prato principal - com o mesmo prazer.
Há algo de curioso nessa idéia. Tomemos qualquer data. 1991, por exemplo. Naquele ano, na quadragésima quarta edição do festival, estavam em competição, entre outros relevantes (como A Bela Intrigante, de Jacques Rivette e Febre da Selva, de Spike Lee), Barton Fink, dos Irmãos Coen e Europa, de Lars Von Trier. Esses dois últimos, para mim, inquestionáveis em suas propostas. O primeiro por tratar com ironia as saídas possíveis de um bloqueio criativo, a partir da relação metalingüística do personagem título que está escrevendo um roteiro com o próprio roteiro do filme, assinado pelos Coen, no qual o personagem se insere. O segundo pela qualidade técnica impecável, mas principalmente por trazer em si uma afirmação técnica do cinematograficamente belo, conceito chave da Estética, tornando ainda mais firme o argumento do diretor quando, anos mais tarde, adere a uma intenção contrária através do movimento Dogma. Deixa-se o belo como projeto, abraça-se o feio. O que importa é que naquela ocasião, o júri presidido pelo cineasta Roman Polanski escolheu a obra dos Irmãos Coen para levar a Palma de Ouro, enquanto Lars Von Trier recebeu um prêmio ‘secundário’ referente à técnica (e tomando secundário aqui com extrema cautela). É preciso dizer que qualquer resultado em 1991 (e em tantos outros anos) seria justo e injusto. Trata-se mais de uma noção de acaso ou não-acaso do encontro da obra com outras obras, com o consentimento do júri, do que uma mera discussão sobre valoração e hierarquização entre elas. Roman Polanski não compartilharia da escolha com outros presidentes de outras edições como a atriz francesa Jeanne Moreau (1975 e 1995) ou o cineasta inglês Stephen Frears (2007) – ou mesmo com o diretor norte-americano Quentin Tarantino (2004). Hoje, pensando sobre essa crítica, escolhi escrever sobre um outro filme de 1991 também selecionado: A Dupla Vida de Véronique (França, 1991), de Krzysztof Kieslowski. Não que eu ache que ele deveria ser o premiado. Nada disso. No caso das obras aqui citadas, a que saísse com o prêmio principal nas costas jamais poderia ofuscar as demais. Não se enganem: essa ainda é a principal idéia desse texto.
Verónique se mostra peculiar, em primeira instância, por ter sido concebido entre dois projetos extremamente ousados do diretor polonês. Antes, temos o Decálogo (1989) e logo em seguida, A Trilogia das Cores (1993-1994). Em 1991, Kieslowski estava com um pé apontado para França e outro ainda apoiado na Polônia. Só por trajetória, Véronique soa menos pretensioso. Nunca menor. O filme se prende muito mais numa idéia que numa história, tumultuando nosso próprio entendimento e se afastando de uma dimensão concreta das relações humanas para se apegar ao que de invisível interliga e mutuamente influencia as pessoas. A todo o momento é destacado o fato de todos estarmos sós no mundo e não necessariamente estarmos sós; o fato de não podermos determinar a casualidade ou a premeditação de um encontro; menos ainda medir as conseqüências desses encontros (ou dos não-encontros). Nesse sentido, os dois conceitos inversos se tocam, se penetram: tornam-se indiferentes. Se considerarmos que tudo é uma aleatoriedade de fatos, chega um momento que essa lógica se torna igual a do destino: podemos até considerar que o destino é apenas a forma como damos significado às coincidências. Cada uma de nossas escolhas ou atitudes termina pautando as condições das escolhas a seguir e assim sucessivamente. E também acontece o contrário: sem escolha, um carro nos atinge, um infarto nos mata, uma paixão nos manipula. Podemos até cair na estéril discussão de preferência pelo ‘tudo é acaso’ ou ‘nada é por acaso’, mas é preciso ter consciência que ambos os discursos fazem parte do mesmo corpo. Como se opostos sempre taxados de opostos também pudessem ser um só. No filme, Weronica e Véronique (sob a pele da graciosa Irène Jacob), respectivamente na Polônia e na França são a prova de uma ligação invisível que une as pessoas, numa sistemática onde os atos mais insignificantes influenciam todos em volta. Sejam conhecidos ou não. Isso só me faz pensar em todas as pessoas que conheci ao longo de todos esses anos e as que deixei, talvez por muito pouco, de conhecer. Todas elas, uma por uma, fantasmas, penumbras e corpos, terminaram me trazendo até aqui.
Kieslowski não entendia a razão de ter sido convidado para fazer filmes fora de seu país. Acreditava que não produzia nada além de dramas domésticos poloneses, fundados em meros problemas poloneses. Convidado a trabalhar na França, dada repercussão de sua obra por toda Europa, passou a repensar a força de seu microcosmo até enxergar o caráter universal de seus filmes. Como o mesmo disse banalmente certa vez, 'a dor de dente é a mesma em qualquer lugar do mundo'. Talvez por isso, tudo em Véronique seja duplo: encontre um caminho aqui (na metáfora do lugar 01) e outro lá (na metáfora do lugar 02). Vemos que a diferença não é tão radical. Uma brincadeira com um cordão, o gosto pelo anel perto do olho, uma bola que reflete o mundo de ponta cabeça. Alguns costumes se repetem e o diretor impõe a maneira de filmar as personagens e seus reflexos: no vidro do trem, no vidro do ônibus, nos vidros. Tudo é duplo. Existe sempre uma ambigüidade de sentidos: 'sentido' como propósito, 'sentido' como sensação. O artesão cria duas bonecas. No perigo de uma inocência se perder, duas são criadas. O cineasta polonês usa sua câmera quase encostando o foco no objeto, aproxima sua lente até podermos ver as linhas de uma mão, até nos darmos conta de quão perto ou longe podemos enxergar o que nos cerca. Estamos próximos, distantes e conectados ao nosso mundo cotidiano. Penso em Véronique como - e esse é também o objetivo maior de meu primeiro ensaio fotográfico - uma re-educação do olhar e do sentir diante do que banalmente estamos mais acostumados e de uma re-colocação de influências e sustentações na teia da vida. A própria atriz não deixa por menos. Irène Jacob no auge de seus 25 anos não convence apenas por ser delicada, por saber trabalhar o silêncio e a intensidade, mas por toda graciosidade de seus gestos. Há um enigma presente na expressão em seu rosto e a câmera se aproxima até não termos mais dúvidas sobre a solução. E então entramos a fundo em sua tristeza, em sua beleza, em sua solidão. Entramos a fundo nas dores polonesas que são também dores universais. Tudo é sensação – os raios de sol, a ansiedade, o choro compulsivo, um olhar curioso, as mãos sobre a árvore. Todo resto, complementação – o duplo, o outro, o reflexo. E não há engano. A Dupla Vida de Véronique também funciona, talvez forçando para poder concluir o texto, como uma bela metáfora do Festival de Cannes. O encontro (ou o não-encontro) de obras e obras e júris acontece apenas uma vez como por acaso e, a partir dali, transforma o destino de todos: o da obra e seu diretor em si, o da obra diante das outras e do júri diante das obras. Não há como fugir. O resultado do Festival de Cannes sempre será justo e injusto. E assim o é há 61 anos.
Kieslowski não entendia a razão de ter sido convidado para fazer filmes fora de seu país. Acreditava que não produzia nada além de dramas domésticos poloneses, fundados em meros problemas poloneses. Convidado a trabalhar na França, dada repercussão de sua obra por toda Europa, passou a repensar a força de seu microcosmo até enxergar o caráter universal de seus filmes. Como o mesmo disse banalmente certa vez, 'a dor de dente é a mesma em qualquer lugar do mundo'. Talvez por isso, tudo em Véronique seja duplo: encontre um caminho aqui (na metáfora do lugar 01) e outro lá (na metáfora do lugar 02). Vemos que a diferença não é tão radical. Uma brincadeira com um cordão, o gosto pelo anel perto do olho, uma bola que reflete o mundo de ponta cabeça. Alguns costumes se repetem e o diretor impõe a maneira de filmar as personagens e seus reflexos: no vidro do trem, no vidro do ônibus, nos vidros. Tudo é duplo. Existe sempre uma ambigüidade de sentidos: 'sentido' como propósito, 'sentido' como sensação. O artesão cria duas bonecas. No perigo de uma inocência se perder, duas são criadas. O cineasta polonês usa sua câmera quase encostando o foco no objeto, aproxima sua lente até podermos ver as linhas de uma mão, até nos darmos conta de quão perto ou longe podemos enxergar o que nos cerca. Estamos próximos, distantes e conectados ao nosso mundo cotidiano. Penso em Véronique como - e esse é também o objetivo maior de meu primeiro ensaio fotográfico - uma re-educação do olhar e do sentir diante do que banalmente estamos mais acostumados e de uma re-colocação de influências e sustentações na teia da vida. A própria atriz não deixa por menos. Irène Jacob no auge de seus 25 anos não convence apenas por ser delicada, por saber trabalhar o silêncio e a intensidade, mas por toda graciosidade de seus gestos. Há um enigma presente na expressão em seu rosto e a câmera se aproxima até não termos mais dúvidas sobre a solução. E então entramos a fundo em sua tristeza, em sua beleza, em sua solidão. Entramos a fundo nas dores polonesas que são também dores universais. Tudo é sensação – os raios de sol, a ansiedade, o choro compulsivo, um olhar curioso, as mãos sobre a árvore. Todo resto, complementação – o duplo, o outro, o reflexo. E não há engano. A Dupla Vida de Véronique também funciona, talvez forçando para poder concluir o texto, como uma bela metáfora do Festival de Cannes. O encontro (ou o não-encontro) de obras e obras e júris acontece apenas uma vez como por acaso e, a partir dali, transforma o destino de todos: o da obra e seu diretor em si, o da obra diante das outras e do júri diante das obras. Não há como fugir. O resultado do Festival de Cannes sempre será justo e injusto. E assim o é há 61 anos.
Um comentário:
Belo texto. No final, pesar as injustiças de uma premiação (e acrescentemos até o OSCAR nesse assunto) é um excelente exercício. São esses festivais que conseguem 'peneirar' o grosso caldo de tudo que é filmado no mundo. Também adoro pegar listas antigas desses 'vencedores' para comparar com os que 'não' ganharam. A gente sempre descobre boas coisas com isso...
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