quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Editorial - Dissenso

(Publicado originalmente no Dissenso)

Tentarei ser o mais breve possível: é difícil explicar as pretensões de qualquer novo projeto sem cair num conjunto de palavras repetidas ou explicações óbvias que, se usadas equivocadamente aqui, podem vir a criar certo impasse ou um paradoxo diante dessa idéia de ‘novo’. De fato, preciso dizer que nem tudo começa agora, afinal não sou presunçoso o suficiente para descartar todo legado crítico anterior em favor dos modismos discursivos. Entretanto, sempre acreditei ser mais interessante esperarmos que cada um tire suas próprias conclusões sobre um objeto a ser refletido, para que, então, pudéssemos confrontar uma série de idéias, opiniões e repertórios. De qualquer forma, essas palavras previamente escritas não vão retirar o livre-arbítrio de ninguém, nem menosprezar a proposta em si: a reflexão pela reflexão se estabelece desde já e não só pelo recorrente tom de provocação. Essa página pretende se firmar como um espaço de debate sincero entre cinéfilos, constituindo uma espécie de amizade intelectual entre eles, a partir da publicação de escritos sobre cinema não determinados ou delimitados pelo gênero da crítica ou do ensaio, mas que possam flertar com crônicas, ficções, com a linguagem da internet e outros desvios, desde que compartilhem de um estilo literário individual e de uma capacidade reflexiva e imaginativa densa. Estamos aqui para pensar na possibilidade do escritor – e não sei se deveria usar jornalista nesse caso – assumir um estilo particular ao escrever, provocando seu leitor através de pequenos chistes ou jogos de palavras, mas sempre fugindo dos desvios repressivos, sem se enrolar em inibições literárias ou temores gramaticais. É preciso ser um pouco como Dean Moriarty, de On the Road: um pouco ousado que seja. É preciso se desvencilhar dos caminhos preconcebidos, da quantidade-limite de palavras e termos e da falsa liberdade de imprensa: a ânsia quase desesperada por velocidade, concisão e objetividade na informação só torna o resultado menos profundo, não outra coisa. É preciso encontrar um anti-formato – que nem precisa ser tão ‘anti’ assim – mas que nos compreenda, não nos rotule e nos posicione enquanto tal.

A idéia dessa página, assim como todo desenvolvimento posterior dela se deu graças ao aprofundamento (e entrega) de meu estudo e amor pelo cinema, simultaneamente ao repúdio diante de diversas questões que envolvem os meios de comunicação tradicionais: não entendo a noção de um único centro-tirano emissor de informação, nem o motivo pelo qual o jornalismo se tornou tão seco e rígido; tão preso a uma linha editorial conservadora, marcada por um pensamento rasteiro e estruturas menores. Não me sinto parte das notícias objetivas e objetivas, das manchetes ordinárias submetidas ao mercado, nem das opiniões que se repetem uniformemente. Não me identifico e até entendo quem o faz. Sobram motivos dos mais variados. Na página Dissenso não estamos interessados nas palavras que se assumem como verdade diante dos fatos, nem nas que pretendem explicar a arte em critérios científicos e rígidos ou meramente descrever e contar sinopses. A própria arte não pede essa domesticação: o que caracteriza o trabalho artístico é a impossibilidade de redução do enigma criativo. Assim sendo, o perfil jornalista impresso, televisivo, radiofônico nos soa ultrapassado enquanto não desperta para uma produção de sentidos próxima de um artista transmídia e livre. De fato, estamos distantes da lógica de guia de consumo ou do agendamento imposto aos críticos tradicionais – disponibilizamos, inclusive, os links de todas as obras sobre o qual nos debruçamos (com exceção das que não existem previamente na internet), não só para que o debate se torne mais fecundo, mas porque acreditamos no compartilhamento como forma de democratização ao acesso de obras e informações – a política contrária sempre marginalizou grande parcela da população. Não se pode ficar omisso quanto a isso (ou ao menos até nos processarem ou nos patrocinarem).

Queremos desvincular os escritos sobre cinema da relação com o consolo instantâneo, fundando um ambiente de reflexão, perturbação e disseminação de sentidos. Se por acaso estiver procurando estrelinhas como cotação esse definitivamente não é o lugar certo. Basta virar à esquerda ali atrás que não vão faltar opções – algumas interessantes inclusive. Não posso esquecer que vários críticos conseguem superar as amarras impostas pelo sistema que os envolve, alguns o fazendo até com muita classe. Preciso sempre entrar nessa ressalva da exceção para não soar generalista, mas acredito plenamente que todos sabem bem sobre qual jornalismo estou me referindo. Digamos que é um implícito gritante. Estamos aqui para discutir incessantemente novas teorias, práticas, pontos de vista e compartilhar nossa paixão pelo cinema. Ou seja, você só é bem vindo se tiver uma opinião a defender. Essa página também não pretende se firmar como a instituição de uma voz, mas como uma confusão de vozes e sussurros, de discursos que se complementam e se sobrepõem. A internet não foi escolhida como meio por acaso ou por facilidade (e também por facilidade), mas principalmente por abrir caminhos no desenvolvimento da própria linguagem (através do hipertexto, inserção de podcasts e vídeos, por exemplo), por criar condições de se sustentar numa aparente liberdade (podemos ser irônicos, obscuros, sinceros e sarcásticos até cansar ou até se cansarem de nós) e essencialmente por tornar possível o interdiscurso através da colaboração e da interatividade. Sem contar que o alcance dos escritos se torna infinitamente maior – saímos do cercadinho de sempre, da fazendinha de sempre. Ainda nos demoramos muito num sistema jornalístico ultrapassado. Não precisamos ser tão passivos, nem melar as mãos com papel sujo para ler um encadeamento de palavras insípidas ou meramente publicitárias (ou anti-publicitárias) que, pelo bem ou pelo mal, estarão lotando o lixo de amanhã. Até os ambientalistas e as plantinhas vão agradecer. Há algum tempo que o jornalista não exerce mais o papel de gatekeeper. Existem outros caminhos. A crítica – ou como você quiser chamá-la – não pode mais ser encaminhada numa linha normativa; precisa se libertar de amarras direcionais e traçar seu próprio caminho (também não tomando o anti-normativo como regra).

É sempre importante ter o domínio sobre as estruturas antes de criticá-las; importante o bastante para poder desconstruí-las, remontá-las e tocar fogo em tudo sem ter de pagar a conta ao final. A Universidade me ajudou muito nesse sentido – as cadeiras de redação não foram de todo em vão. Obrigado a todos, apesar de tudo. Essa página também pretende se fincar como um espaço onde a leitura se concretiza enquanto encontro do discurso do leitor com o discurso do autor, produzindo durante esse contato significados mil – e onde todos os rostos estão bem revelados. Em Dissenso quem assina o texto ainda é estritamente responsável por ele. Já passou o tempo de se esconder atrás das linhas editorais ou do anonimato vazio. É preciso assumir o rosto e levar a tapa quando necessário (como as que eu levei na defesa deste mesmo projeto). Precisamos nos desprender de textos idênticos e escritos por qualquer um, afim de privilegiar os que possuem um caráter e são elaborados pontualmente por alguém. Por favor, não nos deixemos levar pelo ‘Ctrl C + Ctrl V’, pois já estamos estigmatizados demais como a geração dessa maravilhosa e maldita combinação. Ainda prefiro o Ctrl Z ou o Ctrl F. Há também um reposicionamento do leitor nesse processo: devemos escolher o tipo de texto de nossa preferência, afinal somente nós mesmos somos responsáveis por isso. Não esqueçamos que o mais interessante ainda é encontrar o seu próprio espaço, responder por seu discurso, ser responsável por cada uma das escolhas – do design aos possíveis patrocinadores – e estar presente em todos os resultados. Acredito que a produção textual mais autêntica ainda parta dessa premissa. É mais complicado e menos glamouroso é bem verdade, mas quem se importa com glamour num calor desses?

Não estamos aqui para trabalhar pelo consenso, mas pelo dissenso, pelo debate das idéias que se diferenciam, se confrontam, se devoram; pela substituição do determinante pelo ambíguo ou pelo ponto de vista duplo. Estamos aqui para tornar a conclusão apenas o mote de uma nova e nova discussão. Todos os cinéfilos – resgatando o sentido não pejorativo da palavra – estão convidados. Nem tudo é novo todos sabem, mas continuaremos mesmo assim.

Para colaborar ou se tornar um colaborador fixo envie um e-mail para cinedissenso@gmail.com

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Coexistência e Transmutação: Resnais, Tarkovski

O Ano Passado em Marienbad (1961), de Alain Resnais
O Espelho (1974), de Andrei Tarkovski)

(Publicado originalmente no Dissenso)

Não há dúvida de que poderia escrever (e não só eu) um ensaio inteiro, apenas sobre os travellings paralelos em O Ano Passado em Marienbad (França / Itália, 1961), de Alain Resnais (e Alain-Robbe Grillet?), onde o movimento corta o movimento, onde a câmera percorre um espaço imutável, isolado (que pode ser em Marienbad, Baden-Salsa, Frederiksbad), entre corredores, salões, portas e corredores, capturando a coexistência de diferentes tempos, sonhos, memórias, projeções e delírios. Mas, sinceramente, depois do ensaio anterior, falar simplesmente sobre travellings se tornaria um tanto repetitivo. Ainda que aqui exista um diferencial muito claro: a câmera se move não apenas de um cômodo para outro, mas o faz, num mesmo plano-sequência, a partir do espaço-momento suspenso de onde o narrador X descreve o ambiente, ações, gestos e encontros diretamente para suas lembranças (ou lembranças-falsas); para seus sonhos (ou sonhos-inventados); para estados mentais ou desejos encobertos e revelados. E durante esse movimento vagaroso, esse mesmo narrador se encontra enquanto personagem X (ou enquanto narrador) dentro de sua própria história, direcionando suas palavras de maneira persuasiva para sua ouvinte/amante A (ela nega, confirma, hesita), reflexiva para si mesmo e assertiva para o espectador. Quando não inverte e mistura todas essas enunciações – o que torna tudo deliciosamente mais ambíguo.

Há uma síntese – numa descontinuidade aparentemente ilógica – onde todas essas formas de contar um encontro passado (ou um encontro passado fictício, projetado) se unem sob a efígie de uma única realidade. E claro que falar em realidade (a maioria falaria numa não-realidade) pode parecer uma contradição diante da experiência da obra de Resnais, entretanto, o próprio conceito de realidade se transforma. Quem nos dá as diretrizes nesse sentido é o próprio diretor no livro esgotado nas livrarias French Cinema, de Roy Armes: “realismo não consiste apenas em filmar nossa conversa, mas também em mostrar as imagens que aparecem na minha cabeça durante esse momento” (Armes, 1970, p. 123). Há uma série de sutilezas, como as mudanças repentinas no figurino da personagem feminina, que indicam alguns caminhos não seguros em O Ano passado em Marienbad, onde a visão externa dos personagens, o ambiente suntuoso e o imaginário particular estão a todo o momento dialogando: se interpenetram e se influenciam mutuamente. Se em Hiroshima, Mon Amour (França, 1959), seu filme anterior, a diferença entre o momento-presente e o momento-passado aparece bem demarcada, aqui essa linha se torna tênue o suficiente até desaparecer por completo (a idéia de continuum). Todos os tempos convergem em um só tempo. Alain Resnais reconstrói a memória se desfazendo dela como massa uniforme, pincelando da mesma maneira como os pintores cubistas concebiam o espaço do objeto: diferentes e confusas perspectivas numa única tela.


Podemos aprofundar esse pensamento em O espelho (União Soviética, 1974), de Andrei Tarkovski, onde também há essa idéia de coexistência, sendo aqui marcada pelo apontamento de uma vida à outra, de um único tempo convergido através de diferentes memórias. Uma série de elementos de períodos distintos (como a mãe velha que pertence ao tempo atual caminhando com os filhos novos de uma época já transcorrida) são colocados em convivência, criando imagens que não são nem completamente passado, nem completamente presente, mas os dois de forma simultânea. Essas memórias se misturam formando um reflexo eternamente distorcido (e em um eterno processo de distorção). Trata-se de uma espécie de transmutação a partir de um sonho ou flerte com o passado; das sobreposições de um tempo por outro, como uma lembrança modificada pelo presente. O pai se torna o filho em suas memórias da guerra. A mulher se torna a mãe nas lembranças de infância do marido. O filho sente ter vivido anteriormente (‘déjà vu’) numa casa em que visita pela primeira vez. Também não há dúvida que poderia escrever (e não só eu) um ensaio inteiro sobre os travellings dessa obra (ou de toda filmografia do cineasta russo), afinal já se tornou clássico discorrer linhas e linhas sobre seus longos planos-sequência. Não quero, por ora, repetir esses chistes.

De fato, os planos de Tarkovski não resumem seu teor reflexivo, apenas pelo tempo literal de duração (podemos aqui pontuar, inclusive, experiências mais ousadas nesse sentido como Festim Diabólico (EUA, 1948), de Alfred Hitchcock ou Arca Russa (Rússia / Alemanha, 2002), de Aleksandr Sokúrov), mas por possuírem e alargarem um tempo espiritual próprio, revelando uma expressão da vida, para além da ilustração. Isso é bem indicado pelo intimismo autobiográfico e metafísico das imagens, pela transformação sucessiva e não determinante da fotografia, pela inserção de documentários antigos russos e estrangeiros ou mesmo através das trucagens simples, como a variação para mais ou para menos fotogramas por segundo (que se torna quase imperceptível, mas sensível – em especial nos longos travellings). A imagem está no tempo e tem o tempo dentro dela. Há em O espelho uma série de cenas naturalistas, que se transmutam em metáforas e cenas metafóricas que se transmutam em naturais: a rajada de vento que balança o gramado é apenas vento e não é; a mulher que levita sobre a cama é a representação poética de um estado interior banal e não é. Tarkovski em seu livro Esculpir o tempo (obrigatório a qualquer amante da arte cinematográfica e infelizmente também esgotado nas livrarias) faz referência ao haicai, como uma fonte de inspiração estética ao afirmar que esse tipo de poesia japonesa “cultiva suas imagens de tal forma que elas nada significam para além de si mesmas, ao mesmo tempo que, por expressarem tanto, torna-se impossível apreender seu significado final” (Tarkovski, 1990, p. 123 / 124).


Tanto Marienbad, como O espelho suscitam uma idéia de labirinto, que transcende as estáticas barreiras impostas classicamente ao tempo (e suas indeterminações) e ao espaço (e seus desdobramentos) – sem descartar a complexidade dos diferentes estados de consciência. Para o espectador tentado a encontrar uma delimitação racional nessas obras, procurando incessantemente uma saída qualquer, uma solução fácil não vai encontrar outra coisa, senão uma seqüência de paredes de concreto. Corredores, portas, salões e corredores. Não precisamos de um guia prático. Nesse sentido, é muito simples – quase cômodo – taxar essas duas produções de impenetráveis: o problema não está tanto nas obras (e como está), mas na maneira de percorrê-las. Akira Kurosawa, certa vez – escrito disponível integralmente no DVD de extras de O espelho – respondeu algumas críticas à obra de Tarkovski (e que coloco aqui também para Resnais) afirmando que ‘temos de ter consciência da maneira fragmentada, com o qual nos relacionamos com nossas próprias lembranças’, sobrepondo fatos, esquecendo detalhes, ressaltando detalhes, distorcendo histórias, formulando descontinuamente nosso próprio labirinto. Natural que todos os coadjuvantes se tornem zumbis. Ao invés de justificar ou explicar os labirintos, podemos nos focar num embate, num meio de confrontá-los, compará-los, torná-los nossos durante a projeção (ou não-projeção). O mesmo se dá quando três amigos diante de uma mesma estátua criam três histórias diferentes. Há como separar o que é estátua de quem sou eu? É uma pena que parte dos verdadeiros amantes do cinema se tornem estritamente técnicos, perdendo parte da percepção primitiva tão cara a filmes como esses: contam minuciosamente os segundos dos travellings ao invés de montarem e desmontarem as horas em seus relógios.

Esqueçamos a razão cartesiana e o tempo newtoniano como parâmetros de verdade. Como podemos colocar os critérios antes das obras se o próprio processo de criação segue caminhos bem peculiares e não programados: Tarkovski acrescentou várias cenas durante as filmagens, com todo material pronto realizou cerca de 20 cortes diferentes, além de esconder dos atores durante a produção uma idéia de conjunto do próprio filme (fazendo com que trabalhassem independentemente cada cena, sem saber os caminhos seguintes de suas personagens). Mesmo me arriscando a criar um estigma desnecessário, é preciso ressaltar que tanto O espelho quanto Marienbad são filmes-ruptura. Não que iniciem algum movimento específico e glamouroso. Nada disso. Mas por firmarem densamente uma desestabilização da narrativa clássica, do tempo clássico, do espaço clássico (dos critérios clássicos). Ambas as produções permanecem suspensas, causando impactos e novos impactos até mesmo nos espectadores contemporâneos, antenados a meia dúzia de desconstruções diárias. Acredito que apenas David Lynch consiga causar semelhante impacto atualmente. Não à toa ambos os filmes inspiraram uma série de textos e reações (como cartas que o cineasta russo recebeu), pouco preocupadas em discutir um dito hermetismo formal e vazio (que foi reforçado por parte dos críticos cheios de critérios), para desenvolverem linhas extremamente intimistas, que apesar de se sustentarem numa subjetividade imensa causam mais impacto reflexivo que qualquer conjunto de palavras secas (ou padrões jornalísticos). “O espelho não é um filme sobre mim, mas sobre meus sentimentos” poderia dizer (e escreveu) Tarkovski e poderia escrever você. Existe, de fato, um pudor diante dessa possibilidade da auto-ficcão: parece difícil entender esse caminho apenas como uma forma de refletir sobre situações muito amplas, a partir de casos específicos e híbridos (acontecidos e não-acontecidos). É como falar de toda vida, a partir de uma simples vida.


A representação desse pensamento se dá através de uma carta de uma espectadora de Gorki ao diretor russo: “Obrigado por O espelho. Tive uma infância exatamente assim, mas você como pode saber disso? Havia o mesmo vento e a mesma tempestade… ‘Galka, ponha o gato para fora‘, gritava minha avó… O quarto estava escuro… e a lamparina a querosene também se apagou e o sentimento da volta de minha mãe enchia-me a alma… E com que beleza você mostra o despertar da consciência de uma criança, dos seus pensamentos! E, meu Deus, como é verdadeiro… nós, de fato, não conhecemos o rosto das nossas mães. E como é simples… Você sabe, no escuro daquele cinema, olhando para aquele pedaço de tela, iluminada pelo seu talento, senti pela primeira vez na vida que não estava sozinha…” (Tarkovski, 1990, p. 5). Alguns críticos e até amigos acusaram Tarkovski de seu filme ser apenas uma insípida viagem ao próprio ego (as autoficções geralmente são taxadas de ‘certa literatura’ pejorativamente, assim como no jornalismo se busca cada vez mais uma impessoalidade nos textos). Parte da equipe técnica – previamente formada – se negou a participar da produção. E agora me pergunto: o que sobra dessas acusações premeditadas diante das palavras tão sinceras da carta aqui reproduzida ou da própria experiência fílmica? Não sobra nada. Todos esses comentários – cheios de critérios – se esvaziam.

É óbvio que também não ficarei (e não só eu) na percepção primitiva para sempre – acreditar nisso não passa de uma utopia idiota. Mas aproximar um discurso teórico, de uma experiência pessoal poética, distancia qualquer escrito da chatice do jornalismo diário, da leitura que vai para o cesto de lixo no dia seguinte. Depois desse adendo, sigamos em frente: apesar dos dois filmes terem como questão central a memória (o próprio Resnais é referenciado comumente como cineasta da memória e Tarkovski não estaria tão distante desse título – ou rótulo), não é possível perceber a utilização do recurso narrativo dos flashbacks para percorrer o passado, já que não existe um tempo-referência fixo, mas uma coexistência e transmutação em diferentes ramos. O próprio flashback – que nos primórdios do cinema aparecia como uma transgressão – se configura atualmente como um procedimento convencional (e até didático), pois demarca estritamente em pontos antagônicos o passado, o presente e o futuro, colocando na passagem entre eles uma neblina, um colorido que vira preto e branco, referências óbvias a mudança de tempo: “como se houvesse um leitreiro: atenção, lembrança!” ironiza Gilles Deleuze, em seu livro A imagem-tempo (obra que apesar de não referenciada até agora, está diluída em todo esse texto). O filósofo francês desenvolve um confronto entre a imagem-movimento e a imagem-tempo, essa última tendo como marca essencial a indiscernibilidade de pólos tidos anteriormente como opostos: não serão buscadas situações ópticas e sonoras puras do objetivo ou do subjetivo; da realidade ou do imaginário; do físico ou do mental, mas uma série de opsignos e sonsignos – como ele mesmo nomeia – responsáveis pela comunicação estreita entre esse antagonismo e responsáveis para que toda essa estrutura maniqueísta se esgote (tendo então os hyalosigno). Penso no jogo presente no filme de Resnais onde o convidado sempre perde para o jogador experiente e passa a tentar explicar suas derrotas com “quem começa ganha” ou no oposto “quem não começa ganha” até se dar conta que seu adversário ganha todas – indiferentemente de quem começou. O jogo não era impenetrável ou impossível de ser ganho, apenas os caminhos escolhidos pelo iniciante é que não revelavam sua lógica. O mesmo perigo surge diante de nós e temos de ser cautelosos para não passar várias rodadas sem sair do lugar.

O Ano Passado em Marienbad, O espelho e mais recentemente 2046 (China / França / Alemanha / Hong Kong, 2004), de Wong Kar-wai e de forma até mais radical Império dos Sonhos (EUA, 2007), de David Lynch funcionam como um grande movimento destoante da narrativa clássica, por apagarem o pontilhado e as placas de aviso entre todas as fronteiras de imagens-sonhos, imagens-presente, imagens-lembrança (e no caso de Lynch, entre realidade e ficção cinematográfica). O que vemos não é mais um encadeamento de fatos previsíveis e racionais, nem, como pontua Deleuze, “o curso empírico do tempo como sucessão de presentes, nem sua representação indireta como intervalo ou como todo, é sua apresentação direta, seu desdobramento constitutivo em presente que passa e passado que se conserva, a estrita contemporaneidade do presente com o passado que ele será, do passado com o presente que ele foi” (Deleuze, 2005, p. 325). É engraçado lembrar que apesar de toda constituição anti-narrativa, tanto Tarkovski, quanto Resnais recorrem a um rigor técnico e uma beleza plástica imensa: a fotografia em Marienbad – cujo todo ambiente remete à uma cultura clássica – ficou sob a supervisão de Sacha Vierny, que trabalhara com Resnais desde Noite e Neblina (França, 1956) e que mais tarde assumiria a mesma função nos filmes do Peter Greenaway. Os dois filmes parecem coexistir numa única suspensão, aparte da forma tradicional de se contar uma história, distante da montagem que coloca presentes sucedidos por presentes até o final feliz mais óbvio. Compartilham, inclusive, de um denso viés literário: em Marienbad, através de Alain-Robbe Grillet, com seu texto marcado por características do Nouveau Roman (descrição, repetição…) e em O espelho, através de Arseni Tarkovski – pai do diretor – que declama seus próprios poemas em vários momentos do filme. Nesse sentido, (e mesmo me colocando como responsável por essa mediação) ambas as obras criam pontos infinitos de convergência, de entrada e saída entre elas, causando após sessões seguidas e seguidas, uma possível transmutação. O espelho parece cada vez mais conter um pouco de Marienbad e Marienbad parece cada vez mais conter um pouco d’O espelho. Permanecem suspensos e calmos à espera de um espectador desavisado.

O Ano Passado em Marienbad. França / Itália, 1961. Direção: Alain Resnais. Roteiro: Alain-Robbe Grillet Fotografia: Sacha Vierny. Trilha Sonora: Francis Seyrig Elenco: Delphine Seyrig, Giorgio Albertazzi, Sacha Pitoëff. 94 minutos.

O Espelho União Soviética, 1974. Direção: Andrei Tarkovski. Roteiro: Aleksandr Misharin e Andrei Tarkovski. Fotografia: Georgi Rerberg. Trilha Sonora: Eduard Artemyev Elenco: Margarita Terekhova, Ignat Daniltsev, Larisa Tarkovskaya, Alla Demidova, Anatoli Solonitsy. 108 minutos.


Para Baixar: O Espelho.

domingo, 23 de dezembro de 2007

Sobras 2

Ou não-projeção já que dificilmente essas obras serão vistas numa sala de cinema tradicional – a não ser que entrem na programação de algum cineclube, como os vários cineclubes não-cineclubes que existem em Recife (afinal cineclube não é simplesmente eleger filmes aleatórios, pegar numa locadora perto para facilitar, colocar no dvd player e apertar o botão). Sinceramente, o movimento cineclubista contemporâneo (não que haja, de fato, um movimento) precisa atentar para a lógica de compartilhamento de filmes na internet e fundar a base de sua programação e discussão (cineclube não é apenas projeção e ponto) em filmes que não tem veiculação comercial no país. Não esqueçamos que isso inclui o próprio cinema nacional.

domingo, 16 de dezembro de 2007

A Persistência da Memória


No decorrer da história do cinema, não foram poucos os flertes entre a linguagem audiovisual e a literatura. E também não foram poucos os filmes que na tentativa de enlaçar esses dois campos, terminaram por suplantar um ou outro. Quando não ambos. São os filmes que possuem um texto articulado, proveniente de uma base literária, mas sem nenhum apuro imagético, ou os que até possuem um apuro imagético, mas não conseguem rearranjar o conteúdo lingüístico na tela. Afinal elaborar um roteiro não é o mesmo que escrever um livro por mais abrangentes que sejam as possibilidades. É muito fácil qualquer frase bonita soar patética ou qualquer bela imagem tornar-se desencontrada. Essas produções perdem qualquer tipo de consistência, a partir do momento que os seus próprios recursos se tornam incompatíveis dentro de uma única obra, a partir do momento que o discurso e a estética se fragmentam em pesos desiguais. São diálogos que não cabem nos personagens, narradores poéticos em olhares precipitados ou expressões faciais que não dizem nada.

Hiroshima, Mon Amour (França, 1959), de Alain Resnais, porém, segue por um caminho bem distinto. A película impressiona pela maneira como o vigor literário não enevoa, em nenhum momento, o poder imagético do filme. E como a música aparece como um terceiro viés, intensificado e retificando a proposta enquanto narrativa. Esses elementos estão sempre se renovando na forma de se relacionar, sempre se reiterando, se complementando. Quase como num jogo de encaixe. Se por um lado, a palavra assume um papel fundamental no jogo de sensação e impressão dos personagens, sendo transmitida através de um tom peculiar e sonoro onde cada sílaba é submetida a um ritmo próprio; do outro, surge uma preocupação estética profunda em enquadramentos e composições de cena expandindo sensorialmente, através de objetos, tempo de imagem e movimentos de câmera, todas as questões filosófico-existenciais já ditas e reditas. Funcionando a música como um recurso sensibilizador, tênue e permanente. Tudo se auto-completa. Tudo se torna lírico. Tudo coexiste harmoniosamente, por mais angustiante que seja a temática. Hiroshima não é um grande filme apenas pela literatura que contém ou pelo cinema que representa, mas pela difícil missão de criar um laço que os une quase que organicamente. E nesse campo, foram poucas as tentativas que deram certo.

Mas a película de Alain Resnais não é um grande filme apenas por isso. Começar a assistir ‘Hiroshima, Mon Amour’ é certeza de acompanhar densamente o filme até o fim, de se envolver no lirismo literário-imagético que permeia toda película. Não existem desistências ou interrupções. O começo é intenso e ele lhe consome. São 15 minutos de total suspensão. Dois corpos nus, enlaçados. Um feito na medida do outro. Trata-se de uma atriz francesa e um arquiteto japonês. Ela fala de tudo que viu sobre Hiroshima. Ele diz que ela não viu nada. Nada. Ela reconta a história da cidade pós bomba atômica através dos meios que teve acesso. Jornais, noticiários, filmes, visita ao hospital, quatro vezes ao museu, pedras queimadas, cabeleiras anônimas caídas e ferros retorcidos numa exposição. A história e as reconstituições na falta de outra coisa. O japonês, porém, sempre intervém; replica que ela não viu nada. Nada. E não viu mesmo. Nenhum de nós viu. Há um formato documental marcante no filme, herança do próprio Resnais que antes de Hiroshima realizou alguns documentários, assim como há uma marca poética e repetitiva provinda do roteiro da escritora Marguerite Duras, que dá um toque extremamente literário às palavras ditas pela linda voz da atriz Emmanuelle Riva. Quase como se recitasse. Terminado esse primeiro momento do filme, se revelam as faces dos personagens. Aquele que era para ser apenas mais um encontro casual numa noite qualquer se torna, segundo após segundo, num relacionamento profundo, num envolvimento profundo. A atriz vai voltar para França. O japonês quer que ela fique. O tempo entre eles não pode ser nem prolongado, nem abdicado. Resta ao casal aproveitarem suas últimas horas juntos, um na medida do corpo do outro, sofrendo por não poderem mudar seus próprios destinos. Perambulam pela cidade, conversam; ela revela detalhes trágicos do seu passado. Detalhes de quando era jovem, de quando estava durante a Segunda Grande Guerra em Nevers, na França, apaixonada por um soldado alemão. Quase uma sessão de psicanálise. Agora ela já havia esquecido esse amor antigo e acreditava que logo, logo esqueceria o novo. Mas ela não pôde antes e não pode novamente. A atriz está mentindo, tentando esconder a passionalidade que a domina. Que a confunde e enlouquece se for preciso. Que a faz gritar, que a faz arranhar suas mãos contra a parede. Assim como por mais amarga que seja a lembrança da bomba atômica de Hiroshima, o japonês não poderá esquecê-la. Nenhum japonês poderá, ainda que tornem as ruínas de sua cidade em pontos turísticos. A francesa diz “assim como existe no amor, a ilusão de poder nunca esquecer, eu tive diante de Hiroshima. A ilusão de jamais esquecer como no amor. Como você, eu conheço o esquecimento”. O japonês a responde “Você não conhece o esquecimento”. Ele sabe que ela não conhece, porque ele próprio não também não conhece. Nenhum de nós, para ser bem sincero. A memória persiste.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

9

Sempre considerei 9 o meu número de sorte. Nasci num nublado dia 9 e sempre achei o máximo esse maldito número ser o último o suspiro de criatividade antes que todas as coisas começassem se repetir.

Agora mais um 9.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

00 ou 10? 20 ou 30? 40 ou 50? 60 ou 70? 80? 90 ou 00?

O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante (1989), de Peter Greenaway

(Publicado originalmente no Dissenso)

I

Não há inutilidade mais divertida do que os pequenos jogos espontâneos, mesmo os esquizofrênicos acordados entre as pessoas e o destino: ‘volto para casa se aquele carro branco dobrar à esquerda, vou ao cinema se um cisne cair em cima dele’. Alguns esperam pacientemente pelas penas brancas, outros, menos preocupados, participam de brincadeiras mais refinadas. Trata-se quase de uma aposta criativa (e, felizmente, nem tudo se torna irrelevante). Há uns cinco/seis anos propus uma dessas brincadeiras espontâneas a mim mesmo, quando decidi entrar em contato constante com alguns filmes, todos pegos numa locadora perto da universidade (Edit: só pra nomear, Fox Vídeo) . Não à toa: havia promoções e pacotes para VHS – 5 fitas, 5 dias, 5 reais, pois o dono do estabelecimento tinha de fazer aqueles produtos renderem o máximo antes de vendê-los, por conta da iminente consolidação do mercado de DVD (mídia que nessa época já deixava de lado o furor de novidade, sendo largamente popularizada no Brasil em 2002/2003). Assisti muitos filmes em VHS durante toda essa época de transição: nenhum lançamento (os lançamentos deixava pra pegar em DVD caso já não tivesse visto no cinema). Foi então que iniciei o maldito jogo adolescente: a partir de filmes aleatórios do qual nada sabia, tinha de descobrir a década e se possível o ano de cada produção. Não valia ler sinopse, críticas, nada – tinha de decifrar apenas pela obra em si e alugá-la simplesmente pela capa. Para facilitar geralmente pegava 5 filmes que estavam dispostos sequencialmente na estante, o que trazia surpresas boas e ruins. Descobri dessa maneira cineastas, entre outros, como Wong Kar-wai – Amores Expressos, Anjos Caídos e Felizes Juntos permanecem até hoje sem lançamento em DVD – e Tsai Ming-Liang, além de obras como o peruano Não conte a ninguém (1998), que aborda como poucos a questão da autorepressão homossexual, o francês melancólico e autobiográfico Noites Felinas (1992), de Cyril Collard sobre Cyril Collard com atuação de Cyril Collard e o independente americano non-sense Gummo (1997). Em VHS, tudo era mais simples, graças as denotações de velhice presentes na qualidade da própria mídia (o que tirava um pouco a graça inicial da brincadeira).

Pois é: a pedra fundamental de meu interesse cinéfilo não foi outra coisa, senão um jogo espontâneo associado a uma promoção de fitas. Fui aos poucos, naturalmente e depois de certa prática vinculando uma ‘recorrência imagética’ a determinadas décadas: de maneira grosseira e desordenada, mas que necessariamente reverberaram a posteriori (em confrontos ou confluências de minhas conjunturas presentes diante das passadas). Num texto excepcional datado de março de 2002, Kléber Mendonça Filho toca nesse assunto e começa escrevendo que “foi foda rever ET aos trinta”. Reitero: tem sido foda rever vários filmes depois dos 20 (foda aqui no sentido de forte pra caralho pros acadêmicos desentendidos). Sejamos compreensíveis: não se podia esperar uma detalhada conduta metodológica de um adolescente se arriscando em prováveis análises estéticas. Mesmo agora, nenhuma rigidez inabalável precisa ser firmada, afinal os critérios da crítica estão envelhecidos se confrontados pela produção contemporânea. Há um certo mal estar diante desse possível julgamento/enquadramento e sua aceitação; há um certo mal estar diante da própria opinião que, vez ou outra, se transveste de verdade através dos meios de comunicação tradicionais, instaurando assim, uma tendência ao consenso (e aqui temos de considerar os próprios leitores que fazem da crítica seus guias de consumo). Não se trata de um repúdio ao passado, longe disso – observo com extrema clareza uma trajetória jornalística da qual não canso de aplaudir. Trata-se mais de uma hibridização entre as ferramentas de análise crítica propostas até então (além do legado crítico e teórico cultural e cinematográfico) e a imanência de se estabelecer novas ferramentas – que para corroborarem com a contemporaneidade não precisam seguir outro caminho, senão o da fluidez, do estilo próprio e da possibilidade de transformação. Afirmar qualquer modelo pré-concebido, normativo ou imutável pode ocultar todas as escolhas e desvios pessoais uniformizando não só o processo, mas os resultados da reflexão. O perigo do compartilhamento de referências similares está rondando todos nós.

Mas voltando para a adolescência do início do texto, não demorou muito até a indústria de DVDs se firmar no mercado (no Brasil, o lançamento oficial aconteceu em 1998 e enquanto no final de 1999 não existiam nem 300 títulos disponíveis, no início de 2002 já passavam de 1100 – os VHS na locadora citada ficaram à venda por R$ 5, depois baixando para R$ 2). Logo em seguida, além dos lançamentos filmes antigos começaram a ser re-comercializados. O jogo adolescente (já incorporando algum rigor híbrido) se tornou mais difícil: cada vez mais, havia produções de diferentes épocas e países nas prateleiras, o que ratificou meu crescente interesse pelo cinema não-hollywoodiano (cinema esse que já tinha degustado, gargarejado e vomitado). Sem contar toda propaganda tecnológica sobre processos de remasterização, de restauração, além da própria preservação que acompanharam a ascenção do DVD – e que agora acompanham as novíssimas mídias, o HD-DVD e o Blu-Ray (logo mais estaremos falando em ausência de mídia e espaços compartilhados virtuais [Edit: chamado já de 'Cloud Computing'). Óbvio que não eram só propagandas: aquele costume de filmes velhos com qualidade péssima sofreu, de fato, um abalo. Lembro particularmente do impacto de ver Jack Nicholson em Um estranho no ninho (EUA, 1975), de Milos Forman. A diferença na qualidade da imagem dessa (em DVD) e de sua mais recente obra no cinema, Alguém tem que ceder (2003 - lançado no Brasil em 2004), era praticamente nula. Apenas pesadas rugas separavam os dois momentos (sem contar a pesada diferença qualitativa entre as duas produções). Mais recentemente aconteceu o mesmo: assisti Estrela Solitária (EUA, 2005) e só meses depois Paris, Texas (França / Alemanhã, 1984) - ambos dirigidos por Wim Wenders; ambos com roteiro de Sam Shepard. Fiquei refletindo como esses dois filmes poderiam ter sido concebidos numa mesma época, sob um mesmo espírito (ou pelo menos como há um diálogo forte entre eles): há aproximações imensas nas cores e em todo tratamento fotográfico; na própria temática de retorno à família; no ambiente que cerca a história até mesmo nas atuações e no comportamento das personagens. Relevemos o detalhe que 21 anos separam as duas produções. Pergunto-me diariamente sobre o impacto dessa atualização de produções antigas na comunidade não-cinéfila que pouco se importa em saber ano, diretor ou país dos produtos audiovisuais que consomem. Tiro pela minha sobrinha mais velha: preto e branco é muito antigo e colorido é lançamento.

Os vínculos grosseiros realizados até então entre imagens e década já não valiam tanto (apesar de constituírem um repertório quanto alguns elementos como figurino, por exemplo [Edit: algo que minha sobrinha já começa a perceber]). Havia apenas uma exceção: os anos 80. Era sempre a década mais fácil de ser identificada e continuava sendo: os próprios anos eram fáceis. Havia todo um ranço datado que eu identificava em quase todas as suas produções. Também não à toa: é a única passagem de dez anos que possuo um contato direto mediado em diferentes idades. Quando criança, no início da década de 90, os filmes que passavam na televisão aberta eram basicamente produções juvenis dos anos predecessores (e até hoje há certo bafo disso). Entre eles os ditos clássicos da infância: Os Gonnies (EUA, 1985), de Richard Donner; Clube dos cinco (EUA, 1985) e Curtindo a vida adoidado (EUA, 1986), ambos de John Hughes, Conta Comigo (EUA, 1986), de Rob Reiner e Quero ser grande (EUA, 1988), de Penny Marshall. Acrescento aqui o próprio ET. Nem preciso comentar a influência estadunidense implícita nesse processo (que também incluem a trilogia Indiana Jones, a trilogia De volta para o futuro, a trilogia Star Wars entre outros). Entretanto, na época da locadora, anos mais tarde, comecei a evitar justamente os filmes da década em questão: tudo passou a me soar muito tosco e nunca entrei na nostalgia cíclica particularmente direcionada a esse período (exceto pelas produções que mantinham essa relação emotiva infantil). Nasceu daí um rótulo para essa estética: a partir de então qualquer obra podia ser chamada de “década de 80″ (mesmo as não produzidas nesses fatídicos anos).

Esse adjetivo durou por algum tempo, enquanto consumia descontroladamente as fitas VHS ou mesmo os DVDs da locadora, sempre me desviando a todo custo da estética oitentista: me desviando das roupas coloridas descombinadas, dos cabelos assanhados esdrúxulos, das histórias-paródias-adaptações tosco-idiotas de patos extraterrestres ou de casais numa ilha perdida (sem dúvida, foi na mesma época em que me tornei um chato). É bastante irônico eu ter evitado alugar filmes dessa década já que foi justamente nela que o mercado de home video se consolidou “a ponto de pôr em crise a própria indústria cinematográfica clássica, ocasionando o fechamento de mil salas de projeção de filmes na América Latina” (Carreiro, 2003, P. 55) como pontua Rodrigo Carreiro, em sua tese “O gosto dos outros”. Permaneci abusado, colhendo influências essencialmente nas décadas de 60/70/90/00 até descobrir o conceito de idiossincrasia e tomá-lo como elemento essencial para o entendimento de qualquer conjunto de filmes (e de qualquer experiência fílmica). Com certeza há reflexos desse pensamento nos ensaios-crítica anteriores de / sobre / a partir de Limite e Cantando na Chuva. De acordo com os olhares diferentes, de culturas diferentes, de passados diferentes teremos um único fato e várias memórias; uma única década e várias memórias. Cada uma distinta da outra, apesar de compartilharem um mesmo cerne e fundarem todas sua própria verdade. É interessante perceber essa lógica no filme 11 de setembro (2002), composto de 11 curtas dirigidos cada um por um cineasta diferente. Como dizer que os ataques terroristas foram idênticos para crianças iranianas e jovens novayorkinos? O 11 de setembro não foi apenas um. Mas essa questão vai além. O próprio estigma sobre uma determinada época ou fato se transforma diversas vezes, quando posteriormente o referente temporal envelhece e também passa por suas descobertas pessoais e transformações (inclusive transformações de repertório). A visão sobre o mesmo passado é uma aos cinco anos, outra aos catorze e outra ainda aos vinte e dois. Na verdade, isso acontece até entre civilizações inteiras, depende muito de quem conta a história: vide as diferentes denotações já atribuídas à Idade Média, por exemplo (ora ressaltando uma estagnação ou retrocedimento histórico, ora re-descobrindo e valorizando manifestações culturais). Apesar dos fatos serem taxados de idênticos e os produtos culturais estejam nas prateleiras à disposição de todos, a maneira de interpretar continua a se transformar. Minuto a minuto, metro a metro, fotograma a fotograma.

Aliás, tenho sorte do sir multimídia (que não é sir de verdade) Peter Greenaway concordar comigo: “o que mais surpreende é que nunca houve história, mas apenas historiadores. O cinema sempre conta uma história de cada vez. E sabemos que é artificial, porque as histórias de todos interagem. Acontece tudo de uma vez só. Minha história, sua história, a história de todo mundo. Retirar apenas uma única história desta bagunça toda é um fenômeno artificial. Eu tento fazer filmes que representam essa complexidade” (retirado da entrevista “O cinema morreu (ou não)” realizada pela jornalista Camila Viera). Não há como falar de uma década, apesar de todo complemento de uma pesquisa, através de apenas uma memória – seria de uma extrema limitação não produzir um mosaico formado por diferentes vozes. Eu sei que estamos acostumados a expressão ‘história oficial’ e que vários orgãos tomam pra si a responsabilidade por essa versão, mas essa lógica é a mesma que marginaliza uma centena de manifestações culturais colocadas – pela história oficial – como secundárias. E a idade do referente é fundamental nesse pensamento, pois se há o passado com o qual nos relacionamos apenas através de documentos, obras, relatos, contos e registros (que constituem sim uma forma de memória e às vezes até uma nostalgia inventada), também há o passado recente, o passado que vivemos na infância e que habita de alguma maneira o nosso inconsciente, como uma permanente evocação – Manuel Bandeira sabe bem do que estou falando. É o caso do final da década de 80 / começo da década de 90 no meu caso compartilhado por todo um grupo de jovens que estão com seus vinte e poucos anos. Dos cinco aos catorze anos, guardo certa nostalgia imaginária e dos catorze aos dezenove, uma repulsa agressiva. A partir dos vinte é preciso entender a potencialidade de significados que são e que podem ser agregados a um único momento histórico – e a tudo que lhe envolve. A década de 80 são várias – temos inicialmente que saber qual o ponto de vista que estamos aferindo, para, então, entendermos toda complexidade desse olhar. Há um período de dez anos e várias memórias diferentes. Enxergar (e entender) isso é fugir um pouco da ‘egotrip’ (já tão marcada nesse texto) e ir além. A década de 80 (e qualquer outra década) pode e não pode ser a mesma.Vamos esquecer por ora os conceitos binários ao qual estamos acostumados e nos deixar levar, como pontua Daniel Piza, por “toda a riqueza de percepções humanas, da lógica mais abstrata à emoção mais primeva – e também mais sutis, em que os meio-tons tomem o lugar dos maniqueísmos e as ironias da vida sejam explicitadas” (Piza, 2004, P. 50 – grifos meus).
É seguindo o pensamento da primeira parte do texto, que “O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante” (Reino Unido, 1989), de Peter Greenaway possa ser considerado um filme datado para as pessoas que o assistiram no âmbito de seu lançamento, ainda que para outros (e me incluo nesse segundo grupo) soe sem vínculo restrito com época alguma. Há uma clara distância reflexiva entre o referente que pensa a produção, enquanto ela lhe é contemporânea – que é o maior desafio do trabalho crítico – e o que se senta num sofá confortavelmente a quase 20 anos de distância. Com perdas e ganhos para ambos os lados. Os conceitos estéticos que me fazem associar tais e tais recursos, cores ou climas com uma década específica (no caso, a de 80), surgem a partir da construção de signos que esse período conotou em mim (num mesclado de infância, senso comum, experiências fílmicas e pesquisas posteriores). Só para ilustrar, Scanners (EUA, 1981) e A mosca (1986), amobos de David Cronenberg, por exemplo, resumem bem a minha recorrência imagética da década de 80 (e pela primeira vez nesse texto, usando essa expressão não como juízo de valor, afinal admiro as duas produções). No caso do segundo, trata-se de uma história de ficção científica trash, com toda uma tendência de efeitos grotescos, permeada por um figurino atrapalhado e desconexo, além de um estranho design de objetos dispostos em cenários de cores escuras ou durante a noite. Além de que Geena Davis tem carimbado na testa a década que a consagrou (e mesmo que Thelma e Louise seja só de 1991). Existe uma quantidade ilimitada de produções oitentistas nessa linha. Aos dezessete, odiava todas, fazia piadas, ria das partes dramáticas e tensas. E apesar de atualmente saber desenvolver questões específicas para além do visual (como questões culturais, políticas e de gênero em Minha adorável Lavanderia (Reino Unido, 1985), de Stephen Frears, por exemplo), continuo sem grande interesse por essa produção.

Peter Greenaway é uma das poucas exceções – não a única (acrescentemos aí pelos menos David Lynch e os Irmãos Coen só para começar). O seu filme – citado no parágrafo anterior – não se encaixa em nenhuma das associações toscas oitentistas, exceto por um certo esboço de escuridão e obviamente pelo culto ao grotesco, ainda que um grotesco em outros tons (e tenho a impressão de que esse meu imaginário década de 80 se refere, em essência, à década de 80 norte-americana e ao BRock – to até inspirando minha cabeleira na Cláudia Raia dessa época). Praticamente tudo se diferencia na obra do cineasta inglês (já em Lynch e nos Coen essa distância não é tão clara, o que não interfere em nada em minha plena admiração por seus cinemas). Para falar de Peter Greenaway não podemos nos desviar de seu esteticismo pomposo, neo-barroco, extravagante que liga cinema ao teatro e à pintura sem pudor. Se nas primeiras décadas do século passado, o cinema ainda procurava se afirmar como arte, procurava se distanciar do ‘teatro filmado’ e se afirmar enquanto linguagem (e de fato era uma lógica importante naquele momento), aqui não há mais esse tipo de preocupação, não há mais um limite fixo entre as linguagens: há apropriações, diálogo, intertexto, referências e auto-referências. O cineasta inglês traz em seu cinema uma modernidade mórbida e pervertida – em seus filmes trata de canibalismo, vingança, submissão, decomposição, morte, violência, zoofilia, sexo, mutilação e continua fino. Finíssimo. Se por um lado, toca permanentemente em temas sujos, por outro, usa de um extremo cuidado artístico para fazê-lo. O grotesco em Greenaway é extremamente belo.

Falemos um pouco de um recurso que ele sabe usar muito bem e de maneira bem pessoal: os travellings. Em O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante usa desse movimento para apresentar os cenários-ambientes: os planos-sequência que transitam do estacionamento até o restaurante (e vice-versa) mantém um ritmo que acompanha os personagens principais, mas que sempre dá destaque a todos os outros elementos de cena – a luz, a própria movimentação de coadjuvantes, tudo. Cada ambiente parece ter um tempo diegético próprio: a cozinha com suas figuras medievais, o salão com frequentadores requintados, o banheiro ’suspenso’ de qualquer vínculo temporal. Em essência, apenas os personagens-título (ou seus criados) transitam por todos os cômodos. E lá estão os travellings acompanhando fielmente: o que Albert arrasta Georgina pelo chão me parece o mais forte. Quando a câmera está parada fragmenta a visão do espectador em planos abertos, através da ação simultânea dos diferentes personagens-título, com atuações e gestos independentes. O Cozinheiro serve um prato enquanto o Ladrão humilha um dos presentes na mesa, enquanto sua mulher troca olhares com o amante que lia algum livro até então. Em O Livro de Cabeceira (1996) também fragmenta a visão, mas ao invés do recurso clássico do plano aberto investe em colagens e sobreposições de telas sobre telas, criando um ambiente hipertextual. O cineasta não se repete apesar de costurar em seus filmes uma ferida pessoal. Temos também Z00 – Um Z e dois zeros (Reino Unido, 1985), onde cineasta inglês usa do travelling (e por vezes, até do zoom óptico) para passear em salas de zoologia, onde dezenas de câmeras fotográficas registram sistematicamente vários animais em diversos estágios de decomposição. O trabalho fotográfico realizado por Sacha Vierny, que na década de 60 trabalhou com Alain Resnais em, entre outros, Hiroshima e Marienbad, é magnífico: flashs estouram por todos os lados em meio a uma penumbra pertubadora. Greenaway nos aproxima da escatologia pelos caminhos mais belos. A fotografia, sua própria direção, os atores, os cenários, a direção de arte é toda impecável, entretanto o que se sucede na tela é um encadeamento de fatos absurdos. Primeiro um cisne bate num carro branco onde duas mulheres morrem e uma terceira perde a perna (ok, agora vou ao cinema). Em seguida os ex-maridos das mulheres mortas, dois irmãos siameses separados se tornam simultaneamente amantes da sobrevivente, enquanto planejam voltar a se unir em um só corpo. Ambos são zóologos e entram numa paranóia diante do fato científico da vida e da morte, passando a estudar a fundo a decomposição dos seres e assim sucessivamente até armarem uma sessão de fotografias sistemáticas da decomposição deles mesmos. A cada novo filme, o cineasta inglês junta uma série de eventos bizarros e o trata da maneira mais limpa e natural possível. Uma atração-repulsa se instaura sem problemas, mas dependendo do pudor ou do humor, apenas graus diferentes de repulsa.

Há uma série de escolhas bem delineadas no Cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante que consolidam essa idéia da beleza. E abrindo aqui uma digressão (mais uma), vale ressaltar que o termo ‘beleza’ e a expressão ‘década de 80′ na mesma frase formavam, para mim, uma espécie de paradoxo – assim como para François Truffaut, os termos ‘britânico’ e ‘cinema’ numa mesma frase também constituíam uma incompatibilidade. De fato, ambos não conhecíamos Peter Greenaway quando formulamos essas frases. Por motivos diferentes: em 89, Truffaut estava morto há 5 anos, eu mal tinha me libertado das minhas fraldas e acho que não preciso repetir tudo que já escrevi anteriormente. Enfim, voltando à sequência de escolhas do filme podemos pontuar: o exuberante palco-cenário-restaurante onde se desenrola praticamente todo filme; Gaultier como responsável pelo figurino que muda de cor em determinadas situações; a trilha sonora de Michael Nyman (que também assina a trilha de Z00 com o qual forma uma espécie de atos diferentes de uma única peça musical transfílmica), da teatralidade dos atores diante do cenário e, por fim, a escolha de colocar o quadro “Banquete dos Oficiais da Companhia da Guarda de São Jorge“, do holandês Frans Hals no fundo do salão principal. Em alguns momentos, a mesa do filme se confunde com a mesa do quadro (e vice-versa). Consolida-se uma imagem dupla em distâncias focais diferentes ou um falso espelho a base de tintas. Greenaway não nega suas inspirações e seus caminhos prévios: em Z00, reproduz em cenas quadros do pintor holândes Vermeer (aquele da Moça com brinco de pérola), o faz numa semelhança desconcertante, além de durante todo filme soltar – por meio de suas personagens – diversas referências orais ao artista.

O cineasta-pintor-artista-multimídia inglês que não é sir nem nada está aqui impecável – insisto nesse elogio. Quase um transtorno obsessivo compulsivo estético. Tudo tão simétrico, irretocável e belo (e beira o irritante, por conta disso). De qualquer maneira, infinitamente distante do que a década de 80 nos oferece constantemente de tosco ou trash – toda aquela arte de descombinar em tão pouco espaço. Ainda assim, os que acompanharam o lançamento do filme, naturalmente o encaixam no ano em que foi concebido. Afinal o foi e é fato – não há como fugir. A década permanece a mesma (mas é sempre importante descobrir o que há além do véu escuro ou do veludo azul). Os olhares é que a retratam de modos tão diferentes conotando tons tão diversos. Peter Greenaway é realmente perspicaz: “Há escolhas! E eu quero dar todas essas escolhas, porque faz parte de todo o fenômeno. Quando você fala com sua avó, quando você fala com seu cachorro, quando você fala com seu amante, quando você fala com sua mãe, você conta histórias de forma diferente, porque são subjetividades diferentes, e você está querendo comunicar e você comunica de acordo com o que seu cérebro manda. Então, devemos fazer cinema – eu acredito – de maneira tão complicada quanto isso”. (citação retirada da mesma entrevista citada anteriormente). Nossas subjetividades se transformam de acordo com o tempo, com a idade, com o lugar, com o meio que transmitimos e para quem nos referimos. Há um charme enorme por trás disso. Não entendo a necessidade de ocultar essas subjetividades na tentativa de vestir meia dúzia de palavras como soluções fáceis. Alguns jornalistas adoram negar a existência de si mesmos dentro de seus textos. Sem dúvida, prefiro jogar com as cartas viradas na mesa.

Antes de terminar esse ensaio, dois pontos não podem ser esquecidos. O primeiro se refere a como Peter Greenaway supera o classicismo cinematográfico, tomando como classicismo a linearidade narrativa, os enquadramentos corretos com todos personagens, mostrando que sabe manejá-lo ao seu bom gosto (como um cineasta-pintor), mas que também sabe desconstruí-lo quando necessário. É só comparar diretamente O cozinheiro… e O Livro de Cabeceira. Apesar de causarem efeitos similares, a estrutura narrativa é completamente diferente – plasticamente é diferente. Na verdade, todo grande artista passa por esse processo. Se Lars Von Trier fez “Europa” (1991), um filme tecnicamente impecável, com uma fotografia em preto e branco deslumbrante antes de lançar o movimento Dogma 95, foi para deixar claro que possuía conhecimento sobre a técnica; mas que simplesmente também podia usá-la de outras maneiras a partir dali. É uma opção do artista em tomar para si outros padrões ou buscar novos projetos estéticos (acho que Picasso é uma referência e tanto nesse caso). Peter Greenaway não separa tanto um momento do outro; não separa a construção e a desconstrução e isso é o que o torna mais contemporâneo. O segundo ponto se refere a como seria fácil e plenamente possível qualquer personagem ou qualquer narrativa perder todo seu valor diante de tanta beleza estética. Isso acontece o tempo todo nos filmes de ficção científica recentes, onde a beleza engana tanto quanto a tosquice. Entretanto, Greenaway consegue fazer com que o contorno visual não encubra totalmente o desenvolvimento narrativo – discordo de sua verborragia em afirmar que o cinema não deveria contar histórias, porque esse processo de narração seria apenas um fenômeno literário. O que seria de Albert sem seus comentários desagradáveis? A palavra tem sim um papel fundamental, inclusive para tornar os momentos silenciosos mais emblemáticos.

E já que falei nela, vamos à história. Albert Spica (Michael Gambon) é o ladrão, a repugnância em seu estado mais podre. É a grosseria sem direção, a fonte da violência gratuita, o desprezo por tudo que o cerca. Provavelmente uma das figuras mais detestáveis criada por um cineasta e com um vasto espaço para usar da palavra. O filme todo é quase um monólogo desse calhorda. A sua mulher se chama Georgina (Helen Mirren). É a representação máxima de uma submissão velada e silenciosa quase irritante de tão passiva. Mas, ao mesmo tempo, é a fonte de onde parte a vingança sobre o marido: é um silêncio que se acumula. Michael (Alan Howard) sempre soa neutro em seu eterno paletó marrom. É o amante calmo, desajeitado, apaixonado por livros (alguns o colocam como sofisticado, não concordo). E, por último, temos o cozinheiro Richard Boarst (Richard Bohringer). Personagem que está em um plano superior e que ostenta certo orgulho em todos os seus atos, quase todos também silenciosos: é o único que não se humilha perante o ladrão e o responsável por acobertar os encontros amorosos entre Georgina e Michael. Tudo isso enquanto serve pratos aos seus clientes (por sinal há uma associação entre comida e sexo, assim como no Livro de Cabeceira, entre caligrafia e sexo). A história é simples, mas os personagens são extremamente fortes. Conseguem impressionar ora com seu silêncio (em especial o silêncio entre os amantes), ora com seu racismo e preconceito (contra judeus, africanos, ginecologistas…), ora com suas intimidades. A história é simples, mas se sustenta na beleza visual e, insisto, na violência textual. Peter Greenaway é um homem refinado e mórbido: cozinha a Margaret Thatcher como ninguém. Sempre o leve para jantar no ‘Le Hollandais’. E não esqueça de pedir Albert ao molho Spica. Bon appétit.

It’s French.

O Cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante. Reino Unido, 1989.
Direção e Roteiro: Peter Greenaway. Fotografia: Sacha Vierny. Trilha Sonora: Michael Nyman Figurino: Jean-Paul Gaultier Elenco: Richard Bohringer, Michael Gambon, Helen Mirren, Alan Howard, Tim Roth. 124 minutos.

Z00 – Um Z e dois zeros (1985), de Peter Greenaway)


Referências Bibliográfica:

CARREIRO, Rodrigo. O Gosto dos Outros: Consumo, cultura pop e internet na crítica. Recife: PPGCOM, 2003. [dissertação de mestrado].

PIZA, Daniel. Jornalismo Cultural. 2ª Edição. São Paulo, SP: Contexto, 2004.

TRUFFAUT, François. O Prazer dos Olhos: escritos sobre cinema Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor, 2004.

domingo, 9 de dezembro de 2007

sobras

De fato, meu interesse por cinema nasceu e se tornou possível dentro de uma locadora – de maneira tão íntima que até hoje percebo, quando um filme antigo foi adquirido recentemente ou sei onde estão localizadas quase todas as obras do acervo (na adolescência, também costumava brincar de achar o filme antes da atendente gostosa).

Acho que isso já é digressão demais pros ensaios.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Revista alemã publica 160 mil capas diferentes para a mesma edição

Retirada do Portal de Comunicação 'Comunique-se'

Cada exemplar da revista mensal Cicero que chegou às bancas da Alemanha nesta quinta-feira (22/11) é uma peça única. A edição deste mês da publicação, que se autodenomina a "revista para a cultura política", saiu com tiragem de 160 mil exemplares. Cada um deles tem uma capa diferente. Para experimentar o projeto de publicidade “imagens do ano 2007”, a redação teve acesso ao acervo de imagens da agência Reuters do ano inteiro.

"Criamos algo que não tinha sido feito até agora. O que nos fascinou foi o contraste entre o fluxo informativo de imagens e o momento único capturado por uma fotografia", afirmou Martin Pfaff, gerente da Editora Ringier, proprietária da Cicero, ao apresentar o último número.

Onze mil personalidades alemãs das áreas de política, economia, imprensa e marketing encontrarão nas caixas de correios um exemplar da Cicero com sua própria foto estampada na capa. A publicação premiou ainda 500 leitores com a chance de encomendar seu exemplar com a foto que quisessem impressa na capa.

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Faltay, compra pra mim uma revista dessa. A capa tu escolhe.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Like bacon and eggs

Cantando na Chuva (1952), de Stanley Donen e Gene Kelly

(Publicado originalmente no Dissenso)

Depois de assistir a Cantando na Chuva (EUA, 1952), de Gene Kelly e Stanley Donen, em maio desse ano (2007), me deparei com uma série de questões já pontuadas no ensaio anterior, referentes à postura que uma obra de arte (ou o conjunto delas) assume diante de um repertório pessoal – podendo causar diferentes reações, de acordo com o estágio de conhecimento, experiência e discurso cinematográficos impressos em sucessivos momentos de um mesmo espectador (podendo causar, inclusive, diferentes ou complementares reações de acordo com o estágio emotivo, físico, lisérgico, etc…). Assim, a presença de alguns filmes e a ausência de outros na nossa memória, além do senso comum, do conjunto de textos acadêmicos, teóricos, jornalísticos; das viagens e pessoas que conhecemos, dos comentários profundos e inúteis ao qual tivemos contato, entre mil outros aspectos interferem não apenas numa concepção ampla sobre o cinema, mas também na construção valorativa para a película seguinte. Algumas permanecem sólidas, outras se desmontam em pedaços. Todas as obras recentemente vistas serão dimensionadas a partir do repertório construído por cada um até então – para além da temporalidade da própria obra. Tornam-se eqüitativamente importantes o contexto original do filme X – e em alguns casos isso se perde – e o momento em que esse filme X passou a fazer parte do imaginário do espectador contemporâneo Y, levando em conta que esse espectador pode tanto consumir a atualidade, como entrecruzá-la com referências distantes temporal ou espacialmente, através do amplo – e cada vez mais simples – acesso dado pelas novas tecnologias. Um singelo clique num mouse nunca foi tão significativo.

É como se o estigma (ou valor) sobre um filme antigo não seguisse apenas o seu legado histórico, mas se firmasse a partir da negociação entre a cronologia fixa da película e a cronologia em processo do espectador (se adequando ao repertório de cada um). Não se pode pensar em uma das cronologias e excluir a outra. Qualquer discurso que o faça corre o risco de cair nas seguintes armadilhas: ou irá soar idealista ao resgatar e ressaltar um conjunto de elementos distantes, numa preocupação quase hermeneuta, imaginando que a atualidade não está imbricada na nossa cognição ou irá soar excessivamente ingênuo, a-histórico e preconceituoso diante de uma possível totalidade contextual. De fato, diante dos musicais me encaixava perfeitamente no segundo erro: falava dessas produções como um todo, apenas pelos quatro ou cinco filmes contemporâneos que tinha tido acesso (e falava firme, sem hesitações). Essa verborragia precipitada me despertou para a necessidade dessa negociação entre dois tempos – com perdas e ganhos para ambos os lados. As obras não estão apenas situadas diante das obras ao qual são contemporâneas, como pontuei no ensaio sobre Limite, mas também, das que se tornam contemporâneas através da intermediação de um espectador. Ou seja, qualquer conjunto de filmes, de qualquer época ou qualquer lugar pode ser colocado em diálogo dependendo dos argumentos apresentados. Toma-se como elementos opostos (mas que se apontam) o conhecimento prévio sobre os objetos escolhidos e a fundamentação sutil e particular para uma nova abordagem. A relevância ou não dessa convergência espaço-temporal, desse resgate contemporâneo como uma nova forma de disseminação e contestação de sentidos será re-discutido a posteriori e de preferência não só por mim. Toda uma geração está envolvida nesse processo de re-significação (e cada vez mais envolvida).

A partir disso e antes de prosseguirmos, talvez seja necessário assumir (e explicar) a existência de certo preconceito meu – nesse exato momento já moderado – diante do gênero musical (e detesto a palavra-limitação ‘gênero’, apesar de nesse caso me parecer inevitável). Também é preciso ressaltar que não se trata daquele velho receio pontuado ano após ano por críticos de cinema, afim de justificarem essa antipatia inicial do grande público; antipatia tratada e sintetizada como presunção ignorante no artigo Cantando e Dançando à saída do cinema, de Ruy Castro: “basicamente, fazem-se duas acusações aos musicais: são filmes chatos porque, no meio de uma cena, o sujeito começa a cantar e são irreais porque, neles, qualquer marinheiro ou mata-mosquito dança e canta como um profissional” (Castro, 2006, P. 19). No meu caso específico, o preconceito não se fundamentava em nenhum desses argumentos até porque o recurso de ruptura climática (ou exposição de um clima interior) por si, mostra o quão ligados à liberdade criativa estão os musicais – há um desprendimento notável de qualquer realismo fiel, de qualquer continuidade óbvia quando um mata-mosquito grosseiro se transforma num bailarino estonteante e, em seguida, volta a ser o velho mata-mosquito grosseiro. Meio o que acontece em Sete noivas para sete irmãos, de Stanley Donen (EUA, 1954): aqueles sete caipiras nunca seriam ótimos dançarinos… e são. Ponto. Admiro essa liberdade recorrente nos roteiros dos musicais; esse contrato diegético implícito e silencioso entre o cineasta e o espectador. A pontuação dos críticos na tentativa de explicar o porquê das pessoas não gostarem de musicais, pelo contrário, sempre me fascinou um pouco. Talvez influenciado por algumas irônicas cenas do seriado Six Feet Under ou pelo clipe It’s oh so quiet, da Bjork, dirigido pelo Spike Jonze. De fato, me interessei primeiro pelos pequenos desvios contemporâneos que brincavam e se apropriavam do gênero, remodelando-o ao bel prazer de suas propostas narrativas. Desvios (homenagens?) maiores, como Amores parisienses (FRA, 1997), de Alain Resnais e Todos dizem eu te amo (EUA, 1996), de Woody Allen só viriam bem depois. Se aparecessem antes não teriam efeito algum dentro de minha cronologia difusa. Eu precisava ser conquistado em passos curtos.

Meu preconceito (como a maioria deles o é) partia de uma pura e simples ignorância, afinal sequer possuía uma base vasta de filmes vistos desse gênero (sic): o musical sempre me pareceu bobo, pouco engraçado e romântico-meloso demais (como minha grande amiga Lia disse: “é do seu feitio, Rodrigo, assistir um filme chamado ‘Amor, sublime Amor’ e dizer que é um saco”). Assumo que tenho uma queda mais pelo estranho amor que pelo sublime amor. Naturalmente essa aversão retardou meus passos nesse campo. Nada me impedia de assistir Cantando na Chuva anteriormente, além da pura falta de interesse – fundada pela influência rasteira e por enquanto negativa de meu próprio repertório meia boca. Até então, tinha visto Moulin Rouge e Chicago (e os ainda mais jovens estão assistindo High School Musical, Dreamgirls e Hairspray), achava o primeiro um desperdício de bons atores num baile Pop e o segundo uma realização tecnicamente eficiente entupida de momentos constrangedores (Richard Gere dançando, por exemplo). Sinceramente não entendia o saudosismo selado envolta dessas produções, afinal em mim não havia nostalgia alguma. Vi as duas obras isoladamente e não como uma retomada de ‘um passado glorioso, esplêndido, magnífico’ como comentava repetidamente o crítico Rubens Ewald Filho na festa do Oscar 2003 (sic, sic, sic). Às vezes, eu sinto que o mesmo vício de apontar para trás e dizer que tudo foi melhor, acontece quando se pega a obra presente e a aponta para trás dizendo que ela é tão boa quanto. Eu entendo o charme do jogo de referências, mas esse é um vício que pode surgir tanto fundamentado como numa afirmação solitária e vazia. Um risco.

De qualquer maneira, temos que perceber também que a perspectiva de isolamento – não comparativa com qualquer outra época – é recorrente em boa parte da platéia jovem contemporânea que não vivenciou uma produção intensa dos musicais, nem ouviu falar em nomes como Fred Astaire (e sua classe), Busby Berkeley (e sua extravagância) ou Cyd Charisse (e suas pernas). Há um ano, me incluía perfeitamente nesse grupo. É um processo natural e não precisamos lamentar. Obviamente, já tinha assistido Hair e não me deixava convencer por toda sua aura de afetação datada (pois é, já superei minha fase neo-hippie juvenil). Além desses, conhecia um ou outro trabalho de Carlos Saura – e ainda permanecia um pouco indiferente, mal lembrava de Grease, Flashdance e outros ‘sessão-da-tarde’ e fazia o favor de encaixar o The Wall, Hedwig and the Angry Inch, Velvet Goldmine e Dançando no Escuro (e não só esses) numa modalidade aparte. Dentro do preconceito plenamente estabelecido, os filmes citados, em especial o de Lars Von Trier nunca poderia ser classificado como um musical. Primeiro: eu o adorava. Segundo: como 80% das pessoas chorei horrores ao final. Terceiro: não pretendia viver nesse paradoxo do gosto e do não-gosto simultâneos (ainda que essa produção tenha perdido um pouco de seu impacto depois de Não Matarás, de Krzysztof Kieslowski e eu de fato tenha entrado nesse paradoxo). Tratava-se de uma lógica ambígua mesmo: via-me extremamente encantado por diversas cenas musicais inseridas em filmes não-musicais, mas os musicais-musicais (ou pelo menos, os que eu tinha visto até então e lembrava) me aborreciam ou entediavam profundamente. Profundamente.

Cantando na Chuva, entretanto, se impôs de maneira brutal diante de meus olhos previamente desacreditados. Até então cantarolava singing in the rain sarcasticamente por conta de Laranja Mecânica (EUA, 1971), de Stanley Kubrick e apesar de ter uma vaga idéia da cena original preferia ignorá-la (a homenagem surgira antes do homenageado, o que se torna cada vez mais comum e confirma a idéia de negociação entre cronologias). Em maio desse ano (Edit: 2007), depois de assistir à obra de Gene Kelly e Stanley Donen, me entreguei a uma auto-crítica onde foram reveladas ignorâncias sobre a história e os desdobramentos do estilo e desfeitas as cristalizações conceituais taxativas: a cada ironia ou passo de dança, um caminho para dezenas de outros filmes começava a se formar. E engraçado que esse percurso no tempo, em busca do conhecimento histórico é marcado essencialmente pela descontinuidade: como se a cronologia ‘original‘ fosse recortada em mil pedaços e re-montada, aos poucos, pelo desbravador contemporâneo a partir de cada novo-filme-antigo visto. A ordem de revelação de qual será assistido antes ou depois se torna totalmente arbitrária, a não ser que adotemos um metodismo acadêmico. Pensava no gênero em questão de maneira extremamente limitada diante das variantes possíveis. Entre tantos filmes para conhecer, os musicais poderiam ser simplesmente os últimos da fila. Passei anos alimentando esse receio opressivo, mas mesmo depois de todo preconceito estabelecido, firmado, enraizado a 400 mil metros, Cantando na Chuva criou seu próprio paradigma e ditou suas próprias regras (uma unanimidade sim – apesar de na época de seu lançamento ser considerada uma obra abaixo de Sinfonia de Paris, vencedor do Oscar em 1951). Em quinze minutos de filme, qualquer espécie de aversão já tinha se esvaído e minha valoração estava plenamente sob controle. Provavelmente não teria buscado os musicais e seus contextos sem esse primeiro passo. E aí que reside, para mim especificamente, a maior importância dessa obra.

O modo como se estrutura o sistema cinematográfico americano sempre é lembrado, enquanto conjunto – e admito: essa é uma afirmação grosseira – pela presença marcante do produtor a frente da obra – vide a influência de Arthur Freed ou mais recentemente de Harvey Weinstein – e por sua lógica estritamente comercial e pouco artística – e não que esses dois elementos sejam necessariamente opostos (essa história de colocar dinheiro e arte em lados opostos, quase como inimigos mortais às vezes me parece um tanto infantil). Cantando na Chuva representa uma época em que Hollywood sabia brincar consigo mesma, sabia utilizar recursos típicos e criticá-los em uma mesma instância – ainda que para atingir os objetivos comerciais de sempre (até porque os musicais eram produções caríssimas que precisavam de algum retorno para se manterem em produção constante – e a MGM mantinha). Por sinal, o gênero em questão é especialista em construir sua diegese dentro do próprio show business, se utilizando sempre de uma ironia metalingüística ou da exposição de plena-consciência sobre si. Tudo bem que no filme de Gene Kelly e Stalen Donen há uma cordialidade imensa, pois não existe uma pretensão em revelar sujeiras de bastidores, mas apenas tirar um bom sarro e debochar de sua própria condição (coisa que High Society (EUA, 1956), de Charles Walters faz muito bem). As críticas sérias a Hollywood – produzidas fora de Hollywood – às vezes soam como outsiders, se estigmatizam demais como repúdio ao esquemão e terminam se formatando enquanto tal. O filme de Gene Kelly e Stanley Donen não. Estão inseridos dentro de um sistema produtivo e ao mesmo tempo jogam com esse sistema, através do humor e da ironia – e certa leveza tonal. Cantando na Chuva brinca com tudo que representa ao mesmo tempo em que também as valoriza.

Há deboches de todos os tipos e todos são auto-reflexivos. Dentro daqueles estúdios enormes qualquer história cretina levemente modificada pode se transformar num belo conto hollywoodiano. Com falso glamour, mas glamour. Isso é Hollywood: um boteco decadente que se passa por um conservatório de Belas Artes, um dia péssimo que se passa por um lindo dia se sol, uma narrativa trash que se passa por um épico monumental. Isso é Hollywood: um produtor que entra no set de filmagem e ordena que o suposto filme épico se torne um musical. E não poderia ser de outra maneira. Na história do filme, a atriz Jean Hagen interpreta Lina Lamont, uma estrela gasguita do cinema mudo que, com o advento do cinema sonoro, precisa ser dublada pela iniciante Kathy Selden, personagem interpretada por Debbie Reynolds. Entretanto, “o que poucos sabiam é que, na verdade, a voz de Debbie Reynolds dublando Jean Hagen é que fora dublada. Por quem? Pela cantora Betty Royce e pela própria Jean!” (Castro, 2006) , nos revela Ruy Castro (e todo seu detalhismo biográfico) em seu desmistificador artigo ‘Uma serenata ao maior musical do cinema’. O trabalho da atriz Jean, geralmente confundido pelos espectadores, é um ótimo exercício para diferenciarmos a personagem irritante da atuação genial. Cantando na Chuva não é outra coisa, senão uma caricatura, uma paródia de si mesmo e de toda cultura de celebridade na qual se funda. É como se Gene Kelly com aquela sorriso imenso apontasse o dedo para si, para toda equipe técnica, especialmente para Debbie Reynolds e para alguns de seus espectadores e chamasse a todos (inclusive ele mesmo) de idiotas. De maneira bem sutil e charmosa é bem verdade – ninguém chega a se ofender – mas idiotas. Como os pudores são menores, fazem piadas-piadas-piadas e riem juntos-juntos-juntos. Tudo é divertido. Muito divertido. Logo no início do filme, há um comentário sobre o casal de astros principais que funciona como uma parábola de todo esse pensamento: “Ladies and gentlemen, when you look at this gorgeous couple, it’s no wonder they’re a household name all over the world… like bacon and eggs. Lockwood and Lamont!“. Para além do humor nonsense, essa frase resume – novamente de forma irônica – toda arbitrariedade comparativa de um sistema produtivo altamente etnocêntrico, sistema que tende a afirmar sempre que possível sua importância diante da história do cinema mundial. Hollywood gosta de mostrar não apenas sua face, ostentar não apenas sua influência – gosta de dizer, de assegurar, de se comparar a todo o momento (colocando-se como centro, óbvio).

Engraçado que ainda continuo achando a grande maioria dos musicais bobos e melosos-românticos demais (exceto, talvez, alguns como Sapatinhos Vermelhos (UK, 1948), de Michael Powell e Emeric Pressburger). O próprio Cantando na Chuva é bobalhão e excessivamente romântico-meloso, entretanto, já não enxergo isso como um problema a priori. Talvez eu tenha evoluído, de fato, no acordo diegético entre o cineasta e o espectador; tenha criado a pré-disposição para musicais (que antes, se dava como uma anti-disposição). Mas, além disso, há um detalhe ainda oculto. Nas produções contemporâneas, de Moulin Rouge a High School Musical, a montagem se porta de maneira extremamente agressiva, com cortes exagerados e exagerados. MTV pura. Não que eu seja contra esse tipo de edição, pelo contrário, não há preconceito algum nesse caso, afinal me criei nessa estética gravando videoclipes durante toda adolescência. Mas em Cantando na Chuva (e vários outros musicais entre as décadas de 30 e 60), a câmera deixa os atores dançarem, representarem e cantarem, porque de fato são dançarinos, atores e cantores – excepcionais nos três âmbitos. Essa me parece a primeira grande diferença. A câmera e o tratamento dos planos ao invés de esconder, se preocupar ou trucar uma inabilidade do ator tornando-o aparentemente hábil (o que também tem lá sua magia), toma uma postura de contemplação do ato. Assim, boa parte da responsabilidade é lançada ao intérprete (e ao diretor-coreógrafo, não esqueçamos), enquanto o enquadramento simplesmente busca o olhar mais privilegiado, uma otimização do show. O que já é um deleite aparte, pois convenhamos que alguns atores abusam do talento (o número de O’Connor ‘Make ‘em Laught é genial). E só para não fugir do clichê-mor é preciso dizer que Gene Kelly abusa mais que todos. Suas apresentações transpõem a idéia de virtuosismo técnico tão cobrada dos dançarinos, passando a explorar uma afirmação de vigor literalmente físico. Poucas vezes a desenvoltura, a técnica e a força caminharam tão bem a partir de um único corpo acrobático.

Um segundo ponto é a performance do elenco e a ação dos executivos sobre a obra. Gene Kelly é um produto e um ator / dançarino, Zac Efron é, por enquanto, apenas um produto. Sinto-me até meio idiota comparando qualidades artísticas tão discrepantes. No caso do primeiro a intervenção da figura do produtor se dá de maneira estrutural ao reunir os melhores profissionais da área para trabalharem juntos, e de maneira artística, afinal Arthur Freed é responsável pelas letras de quase todas as canções de Cantando na Chuva, canções escritas na transição do mudo para o sonoro num pedido / ordem de reciclagem da própria MGM. Foi daí que nasceu o roteiro. Isso deu uma liberdade enorme ao que Gene sabe fazer de melhor. Já no caso do segundo, a empresa Disney funciona como um Deus moral e publicitário que modifica do roteiro à escolha do diretor, cortando cenas ao bel prazer do marketing da franquia até se focar no elenco a partir de padrões meramente estéticos. E aqui não podemos esperar que Zac mostre o que sabe fazer de melhor, além de pentear seu cabelo milimetricamente sem erros ou aparecer num evento mais maquiado que a Cate Blanchett. Em terceiro lugar (quase que caio naquela ‘e não menos importante’), vale lembrar que o filme de Stanlen Donen e Gene Kelly resume muito bem uma característica dos musicais de sua época, no que se refere a como a cena é pensada para a dança e para a câmera, como os dançarinos se conectam diretamente com os recursos cinematográficos, sem menosprezarem seu próprio virtuosismo técnico. Isso só acrescenta. É importante notar também que, durante algumas apresentações cantadas, as personagens interpelam diretamente para a câmera, diretamente para o espectador, como se saíssem por um segundo do universo ao qual estão inseridos para fazerem um adendo urgente – que precisa ser feito e não pode esperar (como os que eu fico fazendo insistentemente através desses parênteses).

Por fim, assistir Cantando na Chuva será sempre como assistir, simultaneamente, três contextos históricos do filme-musical: o contexto da diegese fílmica, o contexto da produção do próprio filme e o contexto atual do espectador. Ou melhor, é assistir simultaneamente o primeiro contexto sob a ótica e desvios do segundo; o segundo sob a ótica e desvios do terceiro e o terceiro sob o grande dilema de analisar a si mesmo. O primeiro, vinculado à história do filme se passa num momento muito emblemático para o cinema no final da década de 20 do século passado: os anos do advento do som. Naturalmente são retratados anseios e mil questões, ainda que de forma caricatural, exagerada, referentes a esse processo: atores que não se adequaram; cineastas que não se adequaram; receios quanto à vulgaridade do novo recurso. É uma mudança brusca no modo de se fazer e pensar filmes por mexer, estritamente, na estrutura da linguagem. A passagem do mudo para o sonoro foi tema de diversos estudos por parte de cineastas e teóricos – entre eles Eisenstein, Pudovkin e Rudolph Arnheim. Assim, o filme está repleto de cenas em bastidores de estúdios inserindo esse espaço oculto (hoje já tão banalizado pela publicidade): fica uma sensação de alargamento do recorte da tela, no intuito de alcançar um recorte mais amplo. E quando Hollywood aprendeu a falar já começou cantando. No segundo momento, em 1952, quando o filme foi concebido e lançado, Hollywood estava no ápice de sua Era de Ouro dos musicais – iniciada depois da Segunda Grande Guerra depois de “um estudo que indicava que as comédias musicais eram as favoritas entre todos os tipos de histórias, de modo que a MGM reviveu o gênero. Com Gene Kellye e Fred Astaire como principais dançarinos, desafiou a concorrência da [recém lançada] televisão com belas e sofisticadas produções musicais em cores, duas e às vezes três das quais figuraram anualmente entre os maiores sucessos de bilheteria da indústria” (Sklar, 1975, p. 329). E repito: essa idéia de colocar dinheiro e arte em lados estritamente opostos, como se a presença do primeiro invalidasse a existência do segundo (e vice-versa) pode se tornar, dependendo do contexto aplicado, um conceito deveras equivocado. Ou melhor, um pré-conceito (rá).

Esse momento próspero em Hollywood prosseguiu firme antes decair no final da década de 50 / começo da década de 60. Até então foram produzidos os ditos melhores filmes do gênero de todos os tempos como Marujos do Amor (1945), Desfile de Páscoa (1948), Um Dia em Nova york (1949), Sinfonia de Paris (1951), o próprio Cantando na Chuva (1952), A Roda da Fortuna (1953), Cinderela em Paris (1957), Meias de Seda (1957), My Fair Lady (1964) ou A Noviça Rebelde (1965) entre outros (para mais detalhes dos bastidores, leia o conjunto de artigos de Ruy Castro que formam “Toró Mágico: Cantando na chuva”. Nada que eu tente escrever aqui vai chegar perto do trabalho de apuração que ele fez: quase chamando Gene Kelly de ‘brother’). No terceiro momento, hoje, só consigo enxergar que o musical se tornou uma seqüência de tentativas ‘produto pelo produto’ com toda uma apelação teenage: onde não importa a técnica, a história, as piadas, o cinema, nada. Basta uma seqüência de rostos bonitinhos, cortes, cortes, cortes, revistas, celebridades, adolescentes enlouquecidos. A única exceção são diretores famosos que resolvem brincar com o gênero, como os já citados Alain Resnais e Woody Allen e mais recentemente Tim Burton. O resultado nem sempre é dos melhores. Obviamente posso está sendo precipitado (e novamente preconceituoso) por desconhecer e não buscar (por pura falta de interesse) uma série de lançamentos, mas High School Musical é o símbolo maior dessa opinião. E, infelizmente, vi não só essa produção como sua sequência desastrosa. Há um vazio desconcertante. Só de pensar que estão preparando o número três da franquia, que milhões de dólares estão sendo investidos nessa bobagem, passo a sentir que aquela nostalgia ao qual me referi ironicamente no início do texto começa a me abater também: mas diferente do Rubens, não de maneira otimista.

Cantando na Chuva. EUA, 1952. Roteiro: Adolph Green e Betty Comden. Direção: Gene Kellye e Stanley Donen Produtor: Artur Freed. Elenco: Gene Kelly, Jean Hagen, Donald O’Connor, Debbie Reynolds, Cyd Charisse. 103 minutos.

Para Baixar: Cantando na Chuva

Referências bibliográficas:

CASTRO, Ruy. Um filme é para sempre. Cia das Letras, 2006.

SKLAR, Robert. História Social do Cinema Americano. São Paulo, SP: Cultrix, 1975.