segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Coexistência e Transmutação: Resnais, Tarkovski

O Ano Passado em Marienbad (1961), de Alain Resnais
O Espelho (1974), de Andrei Tarkovski)

(Publicado originalmente no Dissenso)

Não há dúvida de que poderia escrever (e não só eu) um ensaio inteiro, apenas sobre os travellings paralelos em O Ano Passado em Marienbad (França / Itália, 1961), de Alain Resnais (e Alain-Robbe Grillet?), onde o movimento corta o movimento, onde a câmera percorre um espaço imutável, isolado (que pode ser em Marienbad, Baden-Salsa, Frederiksbad), entre corredores, salões, portas e corredores, capturando a coexistência de diferentes tempos, sonhos, memórias, projeções e delírios. Mas, sinceramente, depois do ensaio anterior, falar simplesmente sobre travellings se tornaria um tanto repetitivo. Ainda que aqui exista um diferencial muito claro: a câmera se move não apenas de um cômodo para outro, mas o faz, num mesmo plano-sequência, a partir do espaço-momento suspenso de onde o narrador X descreve o ambiente, ações, gestos e encontros diretamente para suas lembranças (ou lembranças-falsas); para seus sonhos (ou sonhos-inventados); para estados mentais ou desejos encobertos e revelados. E durante esse movimento vagaroso, esse mesmo narrador se encontra enquanto personagem X (ou enquanto narrador) dentro de sua própria história, direcionando suas palavras de maneira persuasiva para sua ouvinte/amante A (ela nega, confirma, hesita), reflexiva para si mesmo e assertiva para o espectador. Quando não inverte e mistura todas essas enunciações – o que torna tudo deliciosamente mais ambíguo.

Há uma síntese – numa descontinuidade aparentemente ilógica – onde todas essas formas de contar um encontro passado (ou um encontro passado fictício, projetado) se unem sob a efígie de uma única realidade. E claro que falar em realidade (a maioria falaria numa não-realidade) pode parecer uma contradição diante da experiência da obra de Resnais, entretanto, o próprio conceito de realidade se transforma. Quem nos dá as diretrizes nesse sentido é o próprio diretor no livro esgotado nas livrarias French Cinema, de Roy Armes: “realismo não consiste apenas em filmar nossa conversa, mas também em mostrar as imagens que aparecem na minha cabeça durante esse momento” (Armes, 1970, p. 123). Há uma série de sutilezas, como as mudanças repentinas no figurino da personagem feminina, que indicam alguns caminhos não seguros em O Ano passado em Marienbad, onde a visão externa dos personagens, o ambiente suntuoso e o imaginário particular estão a todo o momento dialogando: se interpenetram e se influenciam mutuamente. Se em Hiroshima, Mon Amour (França, 1959), seu filme anterior, a diferença entre o momento-presente e o momento-passado aparece bem demarcada, aqui essa linha se torna tênue o suficiente até desaparecer por completo (a idéia de continuum). Todos os tempos convergem em um só tempo. Alain Resnais reconstrói a memória se desfazendo dela como massa uniforme, pincelando da mesma maneira como os pintores cubistas concebiam o espaço do objeto: diferentes e confusas perspectivas numa única tela.


Podemos aprofundar esse pensamento em O espelho (União Soviética, 1974), de Andrei Tarkovski, onde também há essa idéia de coexistência, sendo aqui marcada pelo apontamento de uma vida à outra, de um único tempo convergido através de diferentes memórias. Uma série de elementos de períodos distintos (como a mãe velha que pertence ao tempo atual caminhando com os filhos novos de uma época já transcorrida) são colocados em convivência, criando imagens que não são nem completamente passado, nem completamente presente, mas os dois de forma simultânea. Essas memórias se misturam formando um reflexo eternamente distorcido (e em um eterno processo de distorção). Trata-se de uma espécie de transmutação a partir de um sonho ou flerte com o passado; das sobreposições de um tempo por outro, como uma lembrança modificada pelo presente. O pai se torna o filho em suas memórias da guerra. A mulher se torna a mãe nas lembranças de infância do marido. O filho sente ter vivido anteriormente (‘déjà vu’) numa casa em que visita pela primeira vez. Também não há dúvida que poderia escrever (e não só eu) um ensaio inteiro sobre os travellings dessa obra (ou de toda filmografia do cineasta russo), afinal já se tornou clássico discorrer linhas e linhas sobre seus longos planos-sequência. Não quero, por ora, repetir esses chistes.

De fato, os planos de Tarkovski não resumem seu teor reflexivo, apenas pelo tempo literal de duração (podemos aqui pontuar, inclusive, experiências mais ousadas nesse sentido como Festim Diabólico (EUA, 1948), de Alfred Hitchcock ou Arca Russa (Rússia / Alemanha, 2002), de Aleksandr Sokúrov), mas por possuírem e alargarem um tempo espiritual próprio, revelando uma expressão da vida, para além da ilustração. Isso é bem indicado pelo intimismo autobiográfico e metafísico das imagens, pela transformação sucessiva e não determinante da fotografia, pela inserção de documentários antigos russos e estrangeiros ou mesmo através das trucagens simples, como a variação para mais ou para menos fotogramas por segundo (que se torna quase imperceptível, mas sensível – em especial nos longos travellings). A imagem está no tempo e tem o tempo dentro dela. Há em O espelho uma série de cenas naturalistas, que se transmutam em metáforas e cenas metafóricas que se transmutam em naturais: a rajada de vento que balança o gramado é apenas vento e não é; a mulher que levita sobre a cama é a representação poética de um estado interior banal e não é. Tarkovski em seu livro Esculpir o tempo (obrigatório a qualquer amante da arte cinematográfica e infelizmente também esgotado nas livrarias) faz referência ao haicai, como uma fonte de inspiração estética ao afirmar que esse tipo de poesia japonesa “cultiva suas imagens de tal forma que elas nada significam para além de si mesmas, ao mesmo tempo que, por expressarem tanto, torna-se impossível apreender seu significado final” (Tarkovski, 1990, p. 123 / 124).


Tanto Marienbad, como O espelho suscitam uma idéia de labirinto, que transcende as estáticas barreiras impostas classicamente ao tempo (e suas indeterminações) e ao espaço (e seus desdobramentos) – sem descartar a complexidade dos diferentes estados de consciência. Para o espectador tentado a encontrar uma delimitação racional nessas obras, procurando incessantemente uma saída qualquer, uma solução fácil não vai encontrar outra coisa, senão uma seqüência de paredes de concreto. Corredores, portas, salões e corredores. Não precisamos de um guia prático. Nesse sentido, é muito simples – quase cômodo – taxar essas duas produções de impenetráveis: o problema não está tanto nas obras (e como está), mas na maneira de percorrê-las. Akira Kurosawa, certa vez – escrito disponível integralmente no DVD de extras de O espelho – respondeu algumas críticas à obra de Tarkovski (e que coloco aqui também para Resnais) afirmando que ‘temos de ter consciência da maneira fragmentada, com o qual nos relacionamos com nossas próprias lembranças’, sobrepondo fatos, esquecendo detalhes, ressaltando detalhes, distorcendo histórias, formulando descontinuamente nosso próprio labirinto. Natural que todos os coadjuvantes se tornem zumbis. Ao invés de justificar ou explicar os labirintos, podemos nos focar num embate, num meio de confrontá-los, compará-los, torná-los nossos durante a projeção (ou não-projeção). O mesmo se dá quando três amigos diante de uma mesma estátua criam três histórias diferentes. Há como separar o que é estátua de quem sou eu? É uma pena que parte dos verdadeiros amantes do cinema se tornem estritamente técnicos, perdendo parte da percepção primitiva tão cara a filmes como esses: contam minuciosamente os segundos dos travellings ao invés de montarem e desmontarem as horas em seus relógios.

Esqueçamos a razão cartesiana e o tempo newtoniano como parâmetros de verdade. Como podemos colocar os critérios antes das obras se o próprio processo de criação segue caminhos bem peculiares e não programados: Tarkovski acrescentou várias cenas durante as filmagens, com todo material pronto realizou cerca de 20 cortes diferentes, além de esconder dos atores durante a produção uma idéia de conjunto do próprio filme (fazendo com que trabalhassem independentemente cada cena, sem saber os caminhos seguintes de suas personagens). Mesmo me arriscando a criar um estigma desnecessário, é preciso ressaltar que tanto O espelho quanto Marienbad são filmes-ruptura. Não que iniciem algum movimento específico e glamouroso. Nada disso. Mas por firmarem densamente uma desestabilização da narrativa clássica, do tempo clássico, do espaço clássico (dos critérios clássicos). Ambas as produções permanecem suspensas, causando impactos e novos impactos até mesmo nos espectadores contemporâneos, antenados a meia dúzia de desconstruções diárias. Acredito que apenas David Lynch consiga causar semelhante impacto atualmente. Não à toa ambos os filmes inspiraram uma série de textos e reações (como cartas que o cineasta russo recebeu), pouco preocupadas em discutir um dito hermetismo formal e vazio (que foi reforçado por parte dos críticos cheios de critérios), para desenvolverem linhas extremamente intimistas, que apesar de se sustentarem numa subjetividade imensa causam mais impacto reflexivo que qualquer conjunto de palavras secas (ou padrões jornalísticos). “O espelho não é um filme sobre mim, mas sobre meus sentimentos” poderia dizer (e escreveu) Tarkovski e poderia escrever você. Existe, de fato, um pudor diante dessa possibilidade da auto-ficcão: parece difícil entender esse caminho apenas como uma forma de refletir sobre situações muito amplas, a partir de casos específicos e híbridos (acontecidos e não-acontecidos). É como falar de toda vida, a partir de uma simples vida.


A representação desse pensamento se dá através de uma carta de uma espectadora de Gorki ao diretor russo: “Obrigado por O espelho. Tive uma infância exatamente assim, mas você como pode saber disso? Havia o mesmo vento e a mesma tempestade… ‘Galka, ponha o gato para fora‘, gritava minha avó… O quarto estava escuro… e a lamparina a querosene também se apagou e o sentimento da volta de minha mãe enchia-me a alma… E com que beleza você mostra o despertar da consciência de uma criança, dos seus pensamentos! E, meu Deus, como é verdadeiro… nós, de fato, não conhecemos o rosto das nossas mães. E como é simples… Você sabe, no escuro daquele cinema, olhando para aquele pedaço de tela, iluminada pelo seu talento, senti pela primeira vez na vida que não estava sozinha…” (Tarkovski, 1990, p. 5). Alguns críticos e até amigos acusaram Tarkovski de seu filme ser apenas uma insípida viagem ao próprio ego (as autoficções geralmente são taxadas de ‘certa literatura’ pejorativamente, assim como no jornalismo se busca cada vez mais uma impessoalidade nos textos). Parte da equipe técnica – previamente formada – se negou a participar da produção. E agora me pergunto: o que sobra dessas acusações premeditadas diante das palavras tão sinceras da carta aqui reproduzida ou da própria experiência fílmica? Não sobra nada. Todos esses comentários – cheios de critérios – se esvaziam.

É óbvio que também não ficarei (e não só eu) na percepção primitiva para sempre – acreditar nisso não passa de uma utopia idiota. Mas aproximar um discurso teórico, de uma experiência pessoal poética, distancia qualquer escrito da chatice do jornalismo diário, da leitura que vai para o cesto de lixo no dia seguinte. Depois desse adendo, sigamos em frente: apesar dos dois filmes terem como questão central a memória (o próprio Resnais é referenciado comumente como cineasta da memória e Tarkovski não estaria tão distante desse título – ou rótulo), não é possível perceber a utilização do recurso narrativo dos flashbacks para percorrer o passado, já que não existe um tempo-referência fixo, mas uma coexistência e transmutação em diferentes ramos. O próprio flashback – que nos primórdios do cinema aparecia como uma transgressão – se configura atualmente como um procedimento convencional (e até didático), pois demarca estritamente em pontos antagônicos o passado, o presente e o futuro, colocando na passagem entre eles uma neblina, um colorido que vira preto e branco, referências óbvias a mudança de tempo: “como se houvesse um leitreiro: atenção, lembrança!” ironiza Gilles Deleuze, em seu livro A imagem-tempo (obra que apesar de não referenciada até agora, está diluída em todo esse texto). O filósofo francês desenvolve um confronto entre a imagem-movimento e a imagem-tempo, essa última tendo como marca essencial a indiscernibilidade de pólos tidos anteriormente como opostos: não serão buscadas situações ópticas e sonoras puras do objetivo ou do subjetivo; da realidade ou do imaginário; do físico ou do mental, mas uma série de opsignos e sonsignos – como ele mesmo nomeia – responsáveis pela comunicação estreita entre esse antagonismo e responsáveis para que toda essa estrutura maniqueísta se esgote (tendo então os hyalosigno). Penso no jogo presente no filme de Resnais onde o convidado sempre perde para o jogador experiente e passa a tentar explicar suas derrotas com “quem começa ganha” ou no oposto “quem não começa ganha” até se dar conta que seu adversário ganha todas – indiferentemente de quem começou. O jogo não era impenetrável ou impossível de ser ganho, apenas os caminhos escolhidos pelo iniciante é que não revelavam sua lógica. O mesmo perigo surge diante de nós e temos de ser cautelosos para não passar várias rodadas sem sair do lugar.

O Ano Passado em Marienbad, O espelho e mais recentemente 2046 (China / França / Alemanha / Hong Kong, 2004), de Wong Kar-wai e de forma até mais radical Império dos Sonhos (EUA, 2007), de David Lynch funcionam como um grande movimento destoante da narrativa clássica, por apagarem o pontilhado e as placas de aviso entre todas as fronteiras de imagens-sonhos, imagens-presente, imagens-lembrança (e no caso de Lynch, entre realidade e ficção cinematográfica). O que vemos não é mais um encadeamento de fatos previsíveis e racionais, nem, como pontua Deleuze, “o curso empírico do tempo como sucessão de presentes, nem sua representação indireta como intervalo ou como todo, é sua apresentação direta, seu desdobramento constitutivo em presente que passa e passado que se conserva, a estrita contemporaneidade do presente com o passado que ele será, do passado com o presente que ele foi” (Deleuze, 2005, p. 325). É engraçado lembrar que apesar de toda constituição anti-narrativa, tanto Tarkovski, quanto Resnais recorrem a um rigor técnico e uma beleza plástica imensa: a fotografia em Marienbad – cujo todo ambiente remete à uma cultura clássica – ficou sob a supervisão de Sacha Vierny, que trabalhara com Resnais desde Noite e Neblina (França, 1956) e que mais tarde assumiria a mesma função nos filmes do Peter Greenaway. Os dois filmes parecem coexistir numa única suspensão, aparte da forma tradicional de se contar uma história, distante da montagem que coloca presentes sucedidos por presentes até o final feliz mais óbvio. Compartilham, inclusive, de um denso viés literário: em Marienbad, através de Alain-Robbe Grillet, com seu texto marcado por características do Nouveau Roman (descrição, repetição…) e em O espelho, através de Arseni Tarkovski – pai do diretor – que declama seus próprios poemas em vários momentos do filme. Nesse sentido, (e mesmo me colocando como responsável por essa mediação) ambas as obras criam pontos infinitos de convergência, de entrada e saída entre elas, causando após sessões seguidas e seguidas, uma possível transmutação. O espelho parece cada vez mais conter um pouco de Marienbad e Marienbad parece cada vez mais conter um pouco d’O espelho. Permanecem suspensos e calmos à espera de um espectador desavisado.

O Ano Passado em Marienbad. França / Itália, 1961. Direção: Alain Resnais. Roteiro: Alain-Robbe Grillet Fotografia: Sacha Vierny. Trilha Sonora: Francis Seyrig Elenco: Delphine Seyrig, Giorgio Albertazzi, Sacha Pitoëff. 94 minutos.

O Espelho União Soviética, 1974. Direção: Andrei Tarkovski. Roteiro: Aleksandr Misharin e Andrei Tarkovski. Fotografia: Georgi Rerberg. Trilha Sonora: Eduard Artemyev Elenco: Margarita Terekhova, Ignat Daniltsev, Larisa Tarkovskaya, Alla Demidova, Anatoli Solonitsy. 108 minutos.


Para Baixar: O Espelho.

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