quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Movies from an alternate universe

Sempre que chegamos ao cinema, naqueles momentos anteriores à entrada na sala ou ao início do próprio filme, comprar pipoca, não comprar pipoca, a pipoca está cara, somos bombardeados por uma série de elementos que despertam nossa curiosidade para os próximos lançamentos (muitos dos quais terminam nem estreando exatamente por ali). Se por um lado existem os trailers que foram gradualmente inseridos nos programas como resposta a essa demanda do mercado em produzir expectativas, por outro, mesmo sem o anexo da sinopse ou grandes informações - geralmente surgem com frases de efeito nunca escritas em qualquer magazine - os pôsteres que ocupam corredores costumam roubar alguns minutos de nossas breves vidas. Os bonitos e os feios. Decerto, nem sempre reconhecemos a graça desse objeto popularizado durante os primórdios da modernidade, muitos consideram apenas material massivo de divulgação sem conceito algum, no entanto, existem alguns projetos como o "Movies from an alternate universe", que batem firme o pé no sentido de apropriarem um contexto criativo e apresentarem uma intimação estética. Desenvolvida simultaneamente e não conjuntamente - houve até acusações de plágio entre eles - por três ilustradores norte-americanos, Sean Hartter, Thomas Perkins e Peter Stults, a iniciativa brinca com o pensamento "de como as coisas poderiam ter sido" ao produzir pôsteres para filmes contemporâneos quebrando o marco histórico, deslocando temporalmente referências e elementos visuais, usando atores de outras épocas e aproveitando o gancho para reler e transformar a noção de gênero de cada obra. Aliás, relembrando meus velhos tempos quando copiava os DVDs das locadores e produzia capinhas personalizadas, vale a pena conhecer também o projeto de Stults Fake Criterion Covers. Resta agora apenas a vontade de colocar vários desses no meu quarto.

















sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Uma tragédia americana em Moscou


Mesmo com uma queda pelo gênero, não preciso respirar duas ou três vezes antes de dizer que alguns filmes, especialmente norte-americanos, na sua pretensão de criar uma narrativa de ficção científica com bons efeitos, dosando o ritmo com pitadas de um terror inconsistente, não fazem nada além de revelar o humor involuntário das imagens, de maneira que elementos narrativos como o suspense se veem naturalmente rendidos à comédia. Às vezes é a intenção, às vezes não. No caso de A Hora da Escuridão que apesar de dirigido por Chris Gorak está sendo vendido como uma produção do precocemente visionário (?) Timur Bekmambetov, essa tendência aparece por meio de uma invasão alienígena clean, onde a maior parte da população é dizimada por seres eletromagnéticos invisíveis (ou seja, economia de vilão), corpos são inteiramente desintegrados (ou seja, economia de figurantes), fazendo com que as ruas não tenham uma mancha de sangue (ou seja, economia de efeitos), um resquício de humanidade (economia, economia, economia), apenas poeira e vento. Como inexiste qualquer resquício de tensão, os romances, amizades e as relações são frígidas, as mortes em sequência dos personagens são tomadas como perdas nulas, de modo que é possível até esquecer quem morreu e quem ainda continua vivo, afinal não se firma uma mínima empatia entre os espectadores e o elenco.

O filme traz no papel principal um Emilie Hirsch bem consciente do constrangimento em que está metido,  quase podemos ver um cheque refletido no fundo de seus olhos, pois se não bastasse a negação dramática fingida de intensidade dramática, a história ainda remexe em nada menos que o ranço ocidental dos tempos da Guerra Fria: durante a invasão, acompanhamos os passos de quatro turistas norte-americanos e um sueco sobreviventes na Moscou contemporânea, tudo de ruim que acontece, alguém solta a expressão ah, Moscou, formalizando ainda mais o fetiche de fazer um filme-catástrofe na capital da ex-grande inimiga. A cidade agora está inundada de propagandas por todos os lados, a câmera registra essa presença como um troféu mesmo que sobreviventes secundários russos revelem uma nostalgia pelo conflito, de modo que entre um merchandising e outro, a impressão que fica é a de que o diretor quer afirmar pelo caminho mais frágil e com um delay considerável uma vitória do sonho capitalista e do american way of life. Aliás, nada mais norte-americano bunda-mole que contar uma história em que numa cidade estrangeira de milhões sobrevivam justamente quatro norte-americanos. Por fim, vale apenas ressaltar como cereja do bolo, que, como vem se tornando recorrente na indústria cinematográfica, o 3D serve meramente para ofuscar as cores do filme e encarecer a sessão, utilizando pouquíssimo a interface como proposta estética.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

O artista e o curador


Quando um sabichão resolve discutir sobre arte contemporânea, tocando a ponta do bigode e estruturando seus argumentos a partir de expressões como intenção do artista, território de afetos ou potências invisíveis, certamente trinta e quatro mil gansos morrem no paraíso. E continuarão morrendo, afinal desde que assumi o ofício de escrever sobre artes visuais há cerca de sete meses, não demorei muito para perceber - e vez ou outra se lambuzar em - todos os cacoetes e vícios típicos do campo, algo que o projeto Fumografia do coletivo Mau Agouro já havia antecipado uma década antes. Trata-se de um universo que parte dos textos curatoriais megalômanos que pouco transcendem um vocabulário específico, passando pelo discurso quase decoradinho do artista institucionalizado pela justificativa de editais até chegar na preguiça reprodutiva dos críticos especializados ou não. Acontece que a arte contemporânea, expressão já confusa por esse recorte temporal-qualquer-coisa-que-pode-ser-para-sempre, sofre do mal da explicação e por mais que exista um subtexto sobre a interpretação livre, sobre a não necessidade de entender, inúmeras obras produzidas todos os dias soam simplistas diante dos projetos discursivos que as antecedem, formatando um contexto em que artistas carregam consigo o desespero de serem adotados e explicados - até para si próprios - por um curador com uma varinha de condão. Todos querem seu ready-made, mas definitivamente o ready-made não é para qualquer um. 

O apatetado insight recebeu algum estímulo depois que visitei a exposição CONTRA_USO, assinada pelo pernambucano Márcio Almeida - que não é meu irmão, primo, tio, nem nada - mas cujo conceito-invólucro fundamentado pelo curador carioca Marcelo Campos, que anda fazendo uma curadoria besta aqui pelo Recife, determinou o caminho semântico dos vinte e oito trabalhos apresentados. "Sua produção artística articula materiais, métodos e conceitos que esgarçam as fronteiras disciplinares, ampliando ou aplicando o sentido de “arte”, entre aspas, em eventos do uso comum. Olha-se a cidade e a atenção recai sobre a própria indisciplinaridade gerada por aqueles que transgridem as regras, que abrem caminhos enviesados, que a ocupam à força, em vez de aceitar a regularidade dos traçados mais oficiais". O texto de abertura procura apontar as fotografias, pinturas, vídeos e esculturas-instalações como vislumbres de um registro, seja dos momentos 'criativos' de descanso dos trabalhadores de um prédio, seja dos objetos que deslocam sua funcionalidade para atingir uma ligeira transgressão. Claro que a partir desse ponto poderíamos citar o livro A Invenção do Cotidiano, de Michel de Certeau, destacando seus conceitos de estratégia e tática. O primeiro pode ser traduzido através das ferramentas que o sistema de ordem utiliza para impor sua hegemonia e manipular relações de força, enquanto o segundo se resumiria às ações pontuais dos subalternos, que na impossibilidade de virarem o jogo, apropriam destas mesmas ferramentas no intuito de fraturarem a opressão.

O problema é que a exposição só acontece através do texto, usa do curador como via de explicação rebuscada na tentativa de replicar a discussão por meio das obras, de forma que fora os fios que montam um macaco, tradicional meio de roubar luz usados por residentes e comerciantes, ou mesmo o carrinho de compras inundado por um monte de areia, é abissal a distância entre a materialidade exposta, a artimanha por conexão do curador, os argumentos fundadores do francês ou mesmo a aplicação em espaços urbanos do sociólogo Rogério Proença. Há uma sensibilidade trôpega na adaptação de um sistema sociológico que reflete sobre a forma como ocupamos o espaço e a maneira como apropriamos as tecnologia do cotidiano, deixando uma clara sensação de que a exposição está nivelando por baixo. De qualquer modo, a iniciativa procura dar continuidade a um projeto bem mais consistente e independente da palavra do especialista, chamado Entre o Novo e o Nada, uma ação realizada em 2006, constituída pela negociação de um barraco numa comunidade pobre da região metropolitana por uma casa nova de alvenaria, comprada com o dinheiro recebido pelo artista do 43º Salão das Artes Plásticas de Pernambuco. Segundo Márcio, "essa proposta tratava muito mais das perdas que dos ganhos, afinal apenas durante ou depois do processo é que os moradores se dariam conta das redes de amigos, vizinhos e lembranças que deixariam para trás". Ainda assim, produziu um interessante manual de construção, Fast-House, onde estabelece um paradoxo entre a linguagem formalizada do escrito e a futura moradia improvisada com pedaços de madeira encontrados no meio da rua.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Querida, Encolhi as Crianças


(Publicado originalmente no Filmologia)

Parecia que toda semana passava a chamada de Querida, Encolhi as Crianças – locutor berrando RICK MORANIS - e mesmo quando não arrumava tempo para assistir, dava um jeito de dar ao menos uma espiada depois da soneca, afinal quem nunca quis desproporcionalizar o mundo inteiro, especialmente vivendo uma aventura intensa sem precisar sair do jardim da própria casa? “Nós agora temos oito milímetros e estamos a vinte metros de casa, ou seja, estamos a 5km e cem metros de distância”. Essa frase resume um pouco o espírito da coisa, desse universo-engenhoca, que transforma um ambiente inócuo de nossas vidas, nosso jardim, numa espécie de floresta sagrada e misteriosa, dando uma nova dimensão aos encontros com formigas, biscoitos, abelhas, escorpiões e plantas. Entre uma ofensa infantil e outra, “adotado” ou “espero que seu rosto apareça na lista de desaparecidos”, os garotos terminam dormindo numa peça de lego azul. Mas o fato é que Querida, Encolhi as Crianças nada mais é que uma pequena fábula sobre o sentimento de invisibilidade dos filhos em relação aos pais: o primeiro casal simplesmente ignora a existência dos pequenos, o segundo vive de depositar suas frustrações sobre eles. Natural que desapareçam, vivam intensamente, conheçam o pesar da morte, os pais passem horas procurando com lupas e ao final, quando os infantes ressurgem, o final feliz vem no simples ato dos pais entenderem os desejos de seus filhos. Ele não é pequeno demais para o time de futebol, aliás, pouco importa o time de futebol.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Jurassic Park

(Publicado originalmente no Filmologia)

Ainda que a ênfase não sirva ao empenho, vale a pena arriscar. Quando estava nos trâmites finais da minha dissertação de mestrado, naqueles últimos suspiros da introdução, cerrando os vícios de linguagem, decidindo epígrafe e derivados, terminei por traçar uma dedicatória ao meu pai, basicamente agradecendo por ele ter patrocinado minha vasta coleção de dinossauros de plástico durante a infância e por, atendendo aos meus melindrosos pedidos, ter me levado à estreia de Jurassic Park, aos meus oito anos, conseguindo ingressos mesmo quando o bilheteiro tinha nos avisado que a sala estava lotada. Certamente tinha ido ao cinema duas ou três outras vezes antes, numa deles inclusive para assistir uma comédia péssima com Whoopi Goldberg no São Luiz, mas o caso é que o blockbuster dirigido por Spielberg, o primeiro a articular de forma satisfatória um lançamento simultâneo a nível mundial em cidades grandes e periféricas, foi definitivamente o primeiro filme que desejei ver no cinema, e não apenas ver, ver na estreia, e não importava apenas a estreia, importava acumular durante os meses anteriores e posteriores o máximo possível de recortes de jornais e revistas com futilidades e curiosidades sobre a produção. Talvez tenha lido minha primeira crítica enquanto um leitor de crítica nessa época, ao mesmo tempo em que silenciosamente esboçava um devaneio cinéfilo ou plano pueril no intuito de me tornar um famoso paleontólogo, chegando ao cúmulo da petulância de procurar possíveis universidades para estudar. Parecia predestinação naqueles idos da infância e terminar como jornalista só pode ser de uma ironia de muito mau gosto.

Eu sei que os mais velhos vão insistir que tudo isso é resultado de uma manipulação midiática que se proliferava por todos os campos do consumo (quem não lembra dos dinossauros nos shoppings?), mas fui dos que entrou de cabeça no oba-oba dos dinossauros e como meu pai vivia viajando, estabeleci como regra básica para não virar um filho traumatizado sem presença paterna, a condição dele trazer permanentemente um modelo de plástico para mim. Nem precisava ser articulado, nem nada e, no final das contas, ele cumpriu satisfatoriamente sua função. Além disso, ele patrocinou a compra da coleção completa da revista “Dinossauros”, nada menos que 52 exemplares, aquela que vinha com um T-Rex, esqueleto e carne, para montar, além das inúmeras seções, os perfis dos dinos, a paisagem 3D, uma reprodução de um dia na pré-história, além das partes finais que vinham inundadas de curiosidades. Eu lia e relia dezenas de vezes, cheguei a promover dentro do meu quarto, só para mim mesmo, pequenas feiras de ciências, organizada a partir dos perfis dos dinossauros, separando, por exemplo, todos os carnívoros até 3 metros num dia, os de 3 a 9 no outro dia e no fim de semana, os que tinham mais de 9 metros de comprimento. Resumindo: eu era absolutamente fascinado pelos animais pré-históricos – recentemente resolvi me desfazer desse fardo infantil, doando tudo para meu sobrinho, igual a quando Woody é passado a nova dona em Toy Story 3, ficando com o mesmo sentimento de Andy – e Jurassic Park antes de um dos melhores filmes de aventura e suspense de todos os tempos, era um marco no campo dos efeitos especiais, tornando obsoleto automaticamente todo trabalho de ninguém menos que Ray Harryhausen (resgatado no nosso imaginário apenas por uma nostalgia do caráter artesanal de sua técnica).

Bem que agora poderia começar a falar exclusivamente do filme, mas o devaneio de quem caminha pelos arredores geralmente me seduz: aos oito anos, ainda havia em minha mente uma camada indiscernível entre o estatuto da fantasia e o da realidade, de modo que quando entrei na sala de cinema para assistir Jurassic Park – e embriagado pelo debate técnico e ético da ciência que muitos identificam como a parte burocrática do filme – senti que nunca estive tão perto de vê-los de verdade, que pela primeira vez estava diante de uma leitura de comportamento e textura animal tal qual eu imaginava. Spielberg deu um tiro certeiro na minha cara, especialmente porque sempre detestei a antropomorfização presente em Família Dinossauro ou mesmo no desenho Em Busca do Vale Encantado, sentia até como uma falta de respeito aos dinossauros essa transformação em família americana ou em fofura infantil. Em Jurassic Park, os animais tinham um volume nunca antes visto – e até hoje me parece um paradigma ainda inatingível inclusive pelas continuações – onde atores e os dinossauros comungavam da mesma aparência, de serem feitos de carne, de tal maneira que sentia a respiração da triceratops doente, a grandiosidade respeitável dos brachiosaurus, gelava com as pisadas do T-rex na famosa sequência do copo d’água e da lanterna no olho, delirava com a manada de gallimimus correndo como num balé e literalmente segurava as lágrimas quando as unhas dos velociraptors (que pelo tamanho são na realidade Deinonychus) batiam com uma regularidade terrível no chão da cozinha. Jurassic Park era talvez o filme que mais queria “viver”, seja como paleontólogo enjoado, seja como lunático falando sobre a teoria do caos, seja como criança e muito porque o diretor tinha mudado completamente a estratégia usada de esconder o monstro como em Tubarão: aqui eles estão ao nosso lado o tempo todo.

E tudo isso por causa de um mosquito recolhido num âmbar…

Vete al Diablo (Brasil / Argentina, 2009), de Federico Lamas

Vete al Diablo / Go to Hell (shortfilm) from Federico Lamas on Vimeo.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Arte Pública?

Todo espaço urbano precisa ser reconhecido enquanto espaço estético através da relação que mantém com seus monumentos, não apenas esculturas pontuais ou painéis abandonados, não apenas num sentido superficial da obra de arte localizada nos bairros X, Y ou W, também, claro, mas ampliando o olhar para a cidade enquanto um conjunto arquitetônico a ser contemplado dos mais distintos pontos. Ou seja, destacando a própria cidade como ambiente integrado da paisagem que a envolve e da qual faz parte, afinal, um dos tópicos primordiais da discussão sobre qualidade de vida, para além dos serviços básicos ofertados, consiste na relação ativa, coletiva e democrática existente entre o desenvolvimento de um lugar e as pessoas que habitam esse mesmo lugar. Recife, ou a cidade que costumávamos chamar de Recife, vem sendo implodida e eu honestamente não acredito mais em volta, pois ao ceder em absoluto aos interesses das grandes construtoras, ela deixou de lado o valor histórico e estético de iniciativas anteriores e vem perdendo não tão gradualmente parte de sua memória: "destruir é mais rápido e barato que preservar". Just like that. Essa situação se agrava de tal modo que, atualmente, a cidade é citada em reuniões de planejamento, como exemplo a não ser seguido por outras capitais do Nordeste. Sorte a deles, porque Recife é uma terrinha cada vez mais hostil, está substituindo as nuances de décadas e séculos por um único modo de conceber edifícios - leia-se torres com mais de trinta andares - permeando-os com as mesmas pastilhas que comumente recobrimos nossos banheiros. Recife virou um banheirão careta e o trânsito - não estamos no trânsito, nós somos o trânsito - reflete como nunca se quis adequar um projeto de transporte público à demanda das vielas e ruas apertadas; as praças, calçadas e pontes ditam como a acessibilidade ainda é um assunto esquecido, fazendo com que o fulgor cultural e econômico tão festejado pelos turistas, empresários e políticos se confunda com a noção de lazer, algo que mais ou menos tarde termina se rendendo ao pragmatismo dos shoppings. Pior: mesmo entre a suposta militância defenda outra forma de conceber a cidade, a nostalgia engrandecida de um passado imaginário, que deveria resultar numa ação efetiva e agressiva contra a prefeiturabalcãoimobiliário, está dando lugar à uma indiferença do pacifismo de quem teve os laços afetivos minuciosamente cortados e costurados. Ao menos há um consenso entre os moradores: Recife, cidade que sempre se gabou por sua beleza, por ser a veneza brasileira, está ficando cada vez mais feia. 

Acontece que nessa desordem que assola de maneira geral as cidades latino-americanas, painéis e esculturas espalhados pelo centro em largos, paredões e becos se afirmam como pontos de resistência, como não podem ser destruídos, apenas permanecem como ímpetos criativos em meio ao deserto. São resquícios de outrora em que Francisco Brennand, Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres e Abelardo da Hora  produziram obras de caráter transversalmente público, localizadas em lugares como o Cinema São Luiz, o Aeroporto dos Guararapes ou o parque de esculturas onde fica a famosa pica de Brennand. No entanto, o poder executivo deixou de estimular nas últimas décadas esse tipo de atuação por artistas mais jovens (a exceção talvez seja as espontâneas e maravilhosas intervenções em grafite de Derlon Almeida, Galo de Souza e tantos outros) e boa parte das antigas existentes não recebem o tratamento necessário. Uma das obras mais danificadas atualmente é o painel Batalha dos Guararapes (1961), contraditoriamente localizado na fedorenta Rua da Flores, que com seus 35 metros de comprimento se mostra completamente desfigurado e descolorido pelas goteiras de ares-condicionados e por ter se transformado num mictório a céu aberto, sofrendo com a ação corrosiva da urina. Aliás, a obra provavelmente vai ficar fora de um catálogo definitivo sobre o artista pernambucano, ainda em fase de produção e que será editado pelo pesquisador George Hermakol. Alguns menos (ou seriam mais?) ortodoxos acreditam que essas degradações nas obras fazem parte sui generis da proposta de arte pública ao ponto de defenderem uma não restauração e um não cuidado. Ok, beijos. Continuando: se fôssemos seguir o cafona circuito da poesia, com esculturas de escritores pernambucanos, descobriríamos que na Rua da Aurora "cortaram" a orelha de João Cabral de Melo Neto, arrancaram um pedaço dos óculos de Manuel Bandeira e na Rua do Bom Jesus furaram os olhos de Antônio Maria. Tadinhos. Por fim, existe certa conservação nos painéis que ocupam fachadas em prédios, distantes da ação predatória dos homens, tal qual o enorme florido assinado por Brennand, que cobre parte do edifício da loja Eletroshopping (antiga Arapuã) na rua do Sol. Mesmo faltando alguns azulejos e precisando de uma limpeza, o mural de 1968 quase se compara aos belos florais do Edifício Ana Regina, na Avenida Oliveira Lima. Ambas obras são provas de que as construções da cidade podem escapar da atual padronização, dotando a paisagem do encontro fértil entre dois campos que surgiram caminhando lado a lado: a arquitetura e as artes plásticas.

Enchente, Quem Salvará Nossos Filhos?

(Publicado originalmente no Filmologia)

Desde a primeira vez que escutei falar sobre Enchente, minha apreensão costumava ganhar contornos épicos desde a propaganda que soturnamente reforçava o título, Quem Salvará Nossos Filhos?, como se o locutor estivesse me interpelando, enquanto espectador-operação-de-resgate, a acalentar e compartilhar o luto com pais, mães, irmãos, sobreviventes e familiares desesperados, cada qual trincado entre a esperança, a falta de informação e o golpe de misericórdia. Decerto, toda a narrativa trágica do ônibus com um grupo de crianças evangélicas atingido pela fúria do rio, depois de uma noite de tempestade, seguido dos inúmeros infantes arrastados pelas águas, tentando se agarrar a árvores, galhos e troncos, circunscreve a condição do ser humano em sua luta primária pela sobrevivência, tecendo um limite que os leva à desistência, numa situação solidária e poética, associada ao sentimento avassalador de que todos precisam cuidar de todos, especialmente os mais velhos dos mais novos, os mais fortes dos mais debilitados. Ainda assim, como um bom herege desde pequeno e pelo filme ser “baseado em fatos reais”, sentia uma tranquilidade mórbida de que, no final das contas, a fúria da natureza e a crueldade dos homens não faria diferença entre crentes e não crentes. Todos estavam, afinal, condenados.

O filme também foi provavelmente uma das minhas primeiras experiências com a estética caseira incorporada em meio às “imagens de cinema”, emulando uma “compaixão sensacionalista” do telejornalismo que no caso de Enchente – Quem Salvará Nossos Filhos se concretiza em heroísmo e culpa (muita culpa). Essa ontologia híbrida da produção audiovisual remete-me diretamente, talvez por um critério apenas cronológico, às reportagens sobre a Guerra Civil Iugoslava (1991-2001), que diferente da Guerra do Golfo onde tudo era distante, tudo era videogame, víamos os jornalistas em meio às batalhas, pessoas sendo atingidas na frente das telas, os câmeras fugindo das balas, um som insuportável de explosões que finalmente abriu meus olhos para o verdadeiro aspecto de um conflito bélico. O filme de Chris Thomson aposta nessa aproximação estratégica e além disso, começa com cenas de filmagens caseiras, dos pais se despedindo de seus filhos antes de partirem para o acampamento, alguns deles abraçando suas crias pela última vez, como se estivessem ali, diante de nossos olhos, talhando epitáfios involuntários.

O instinto de sobrevivência dos jovens se infiltra em nosso próprio instinto de espectador, de forma que o processo de identificação se divide em dois caminhos. O primeiro é o próprio caráter de tragédia que está em jogo, da força das águas carregarem uma grandiloqüência tal que quando o resgate se inicia, sentimos o mesmo frio na barriga das tragédias reais (que sempre são em devir as nossas próprias tragédias). Enchente ao lado de O Resgate de Jéssica nos ensinou a intensidade do gênero, de como os filmes-catástrofe podiam ser feitos com baixo orçamento, mantendo a dimensão do fim irrecuperável como um punctum vertiginoso. O segundo caminho não é bem uma empatia que desenvolvemos pelas personagens em si, afinal acompanhamos apenas o último dia de comunhão no acampamento, as apresentações são bastante breves, mas ainda assim logo somos enlaçados pela ternura presente nas relações de amizade ou familiaridade que possuem. Por isso, o filme nos causa tanta dor: o tempo todo ouvimos notícias de alguém morreu, mas esse recebimento ganha um patamar pessoal, próximo, íntimo, absolutamente diferente de Independence Day ou 2012 em que um morto, dois ou dez milhões não fazem a mínima diferença.

Portanto, repito aqui uma passagem que já postei anteriormente de Brenda, em algum episódio ainda da primeira temporada de Six Feet Under, que num diálogo sem grandes pretensões comentou que quando você perde um cônjuge, se torna viúvo ou viúva, quando é criança e perde o pai, se torna órfão de pai, quando é criança e perde a mãe, órfão de mãe, mas quando você perde um filho, a dor é tão terrível que não existe um nome. Enchente se torna ainda mais impactante porque acompanha essa “dura espera por informações” por parte dos pais, esse limbo de não saberem se seus rebentos estão vivos ou mortos, metricamente entrecortado pelas crianças a todo custo tentando sobreviver. Quando chegam alguns resgatados pelo helicóptero, as mães daquele condado rural conservador olham apreensivas, apertando os braços de seus maridos, torneando uma tensão que faz do som das hélices uma marca permanente do encontro ou da decepção: “enquanto eu viver, esse som vai estar no meu coração”. Além disso, enquanto famílias se reencontram, outras passam a encorpar uma inveja incontrolável, quase como se a felicidade dos outros tornasse o contexto ainda mais terrível, num pressuposto de que “quanto mais sobreviventes de outras famílias, menos sobreviventes da minha".

O organograma de personagens e tramas procura firmar a tradicional diversidade arquetípica dos adolescentes. Temos o irmão mais velho que cuida das irmãs mais novas; ele sobrevive, mas as garotas não; quando chega ao hospital que está recebendo os vitimados, ainda busca suas irmãs, no entanto, o que encontra é um olhar de culpa e severidade do seu pai. Temos o malandro que quebra o coração das garotas apaixonadas, mas no meio do cataclisma, sacrifica acintosamente a própria vida para salvar o amigo que estava com a perna quebrada. Entre sacrifícios e despedidas, a narrativa inteira é permeada por frases desesperadas, conversas sobre a morte ou recados para além-vida: “a gente te salva”; “se eu não me salvar, o que vai dizer aos meus pais?”; “a gente vai morrer”; “alguém nos ajude”; “fala para minha mãe e para meu pai que encontro eles lá no céu”; “ela não vai se salvar, ela é muito pequena”; “se não fosse por você, eu estaria morta”, “a culpa não foi sua”, “elas não conseguiram se salvar”. Fica a imensa sensação de perda, um vazio definido por uma melancólica mãe: “com o filho você está sempre na expectativa de alguma coisa. Você carrega ela por nove meses e fica louca para que nasça logo. Quando dizem mamãe pela primeira vez, você quase desmaia. Lembra quando ela começou a engatinhar? E andar? E pedalar? Sempre pedindo mais. Eu quero voltar. Eu quero sentar ao lado do berço das minhas filhas e olhá-las dormir. Tem um cheiro tão bom. Tonya era tão pequena. Deus queira que não tenha sofrido”.