Todo espaço urbano precisa ser reconhecido enquanto espaço estético através da relação que mantém com seus monumentos, não apenas esculturas pontuais ou painéis abandonados, não apenas num sentido superficial da obra de arte localizada nos bairros X, Y ou W, também, claro, mas ampliando o olhar para a cidade enquanto um conjunto arquitetônico a ser contemplado dos mais distintos pontos. Ou seja, destacando a própria cidade como ambiente integrado da paisagem que a envolve e da qual faz parte, afinal, um dos tópicos primordiais da discussão sobre qualidade de vida, para além dos serviços básicos ofertados, consiste na relação ativa, coletiva e democrática existente entre o desenvolvimento de um lugar e as pessoas que habitam esse mesmo lugar. Recife, ou a cidade que costumávamos chamar de Recife, vem sendo implodida e eu honestamente não acredito mais em volta, pois ao ceder em absoluto aos interesses das grandes construtoras, ela deixou de lado o valor histórico e estético de iniciativas anteriores e vem perdendo não tão gradualmente parte de sua memória: "destruir é mais rápido e barato que preservar". Just like that. Essa situação se agrava de tal modo que, atualmente, a cidade é citada em reuniões de planejamento, como exemplo a não ser seguido por outras capitais do Nordeste. Sorte a deles, porque Recife é uma terrinha cada vez mais hostil, está substituindo as nuances de décadas e séculos por um único modo de conceber edifícios - leia-se torres com mais de trinta andares - permeando-os com as mesmas pastilhas que comumente recobrimos nossos banheiros. Recife virou um banheirão careta e o trânsito - não estamos no trânsito, nós somos o trânsito - reflete como nunca se quis adequar um projeto de transporte público à demanda das vielas e ruas apertadas; as praças, calçadas e pontes ditam como a acessibilidade ainda é um assunto esquecido, fazendo com que o fulgor cultural e econômico tão festejado pelos turistas, empresários e políticos se confunda com a noção de lazer, algo que mais ou menos tarde termina se rendendo ao pragmatismo dos shoppings. Pior: mesmo entre a suposta militância defenda outra forma de conceber a cidade, a nostalgia engrandecida de um passado imaginário, que deveria resultar numa ação efetiva e agressiva contra a prefeiturabalcãoimobiliário, está dando lugar à uma indiferença do pacifismo de quem teve os laços afetivos minuciosamente cortados e costurados. Ao menos há um consenso entre os moradores: Recife, cidade que sempre se gabou por sua beleza, por ser a veneza brasileira, está ficando cada vez mais feia.
Acontece que nessa desordem que assola de maneira geral as cidades latino-americanas, painéis e esculturas espalhados pelo centro em largos, paredões e becos se afirmam como pontos de resistência, como não podem ser destruídos, apenas permanecem como ímpetos criativos em meio ao deserto. São resquícios de outrora em que Francisco Brennand, Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres e Abelardo da Hora produziram obras de caráter transversalmente público, localizadas em lugares como o Cinema São Luiz, o Aeroporto dos Guararapes ou o parque de esculturas onde fica a famosa pica de Brennand. No entanto, o poder executivo deixou de estimular nas últimas décadas esse tipo de atuação por artistas mais jovens (a exceção talvez seja as espontâneas e maravilhosas intervenções em grafite de Derlon Almeida, Galo de Souza e tantos outros) e boa parte das antigas existentes não recebem o tratamento necessário.
Uma das obras mais danificadas atualmente é o painel Batalha dos Guararapes (1961), contraditoriamente localizado na fedorenta Rua da Flores, que com seus 35 metros de comprimento se mostra completamente desfigurado e descolorido pelas goteiras de ares-condicionados e por ter se transformado num mictório a céu aberto, sofrendo com a ação corrosiva da urina. Aliás, a obra provavelmente vai ficar fora de um catálogo definitivo sobre o artista pernambucano, ainda em fase de produção e que será editado pelo pesquisador George Hermakol. Alguns menos (ou seriam mais?) ortodoxos acreditam que essas degradações nas obras fazem parte sui generis da proposta de arte pública ao ponto de defenderem uma não restauração e um não cuidado. Ok, beijos. Continuando: se fôssemos seguir o cafona circuito da poesia, com esculturas de escritores pernambucanos, descobriríamos que na Rua da Aurora "cortaram" a orelha de João Cabral de Melo Neto, arrancaram um pedaço dos óculos de Manuel Bandeira e na Rua do Bom Jesus furaram os olhos de Antônio Maria. Tadinhos. Por fim, existe certa conservação nos painéis que ocupam fachadas em prédios, distantes da ação predatória dos homens, tal qual o enorme florido assinado por Brennand, que cobre parte do edifício da loja Eletroshopping (antiga Arapuã) na rua do Sol. Mesmo faltando alguns azulejos e precisando de uma limpeza, o mural de 1968 quase se compara aos belos florais do Edifício Ana Regina, na Avenida Oliveira Lima. Ambas obras são provas de que as construções da cidade podem escapar da atual padronização, dotando a paisagem do encontro fértil entre dois campos que surgiram caminhando lado a lado: a arquitetura e as artes plásticas.
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