terça-feira, 29 de dezembro de 2009

São Luiz

"Para essa sessão, que se realizará à meia-noite do dia 3 de outubro, no cinema São Luiz, serão distribuídos convites especiais às figuras de projeção em nossos meios artísticos e às autoridades. Às 22 horas, no salão de honra do Grande Hotel, a Prefeitura oferecerá um coquetel aos artistas e diretores do filme e às autoridades". (JC, 29/set/53, p.4)


A primeira vez que fui ao cinema, nos primeiros anos da década de 90, foi justamente ao São Luiz para assistir alguma comédia romântica com a Whoopi Goldberg, que sequer lembro o nome agora, mas que meu pai, um defensor ferrenho do velho Arraes, tinha me levado não pelo filme, mas para eu conhecer 'o cinema mais importante da cidade'. Ele frequentava mais pelo valor afetivo com o espaço do que propriamente pela programação. Mesmo só tendo faíscas de lembranças dessa época, como uma festa em que me fantasiaram de Rambo ou uma briga que arrumei no São João do colégio por bater num menino no meio da quadrilha, mantenho guardadas vagas imagens daquele dia. Não lembro como fui, como voltei, mas lembro em detalhes dentro do cinema, especialmente os vitrais, pois não parava de olhá-los e continuariam a me fascinar várias e várias vezes durante a adolescência até o fechamento. A última vez que estive no cinema da Rua da Aurora foi num show de Jorge Mautner: lembro que, após o show, me mantive sentado com duas outras pessoas olhando a tela branca por um longo tempo, enquanto os outros se dirigiam para uma rave no primeira andar. Os vitrais estavam apagados. Talvez estivesse me despedindo. Depois disso, vi apenas por fora o cinema numa reforma que não parecia ter fim.

Daí finalmente, depois de um mundo de adiamentos, de toda indecisão possível, do quase risco de não dar em nada, graças ao empenho da Fundarpe, empenho louvável, o cinema São Luiz foi reinaugurado com uma cerimônia de deixar as celebridades de hollywood inundadas de inveja. O filme escolhido para ser exibido na ocasião foi Baile Perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, clássico absoluto da galerê oldschool do cinema de retomada. Trata-se na verdade de um ensaio, afinal deixando o glamour de lado e se dando conta que o champagne é sidra, o cinema São Luiz foi reinaugurado mais ou menos, afinal, ontem, foi apenas a reinauguração para convidados, vips, autoridades, jornalistas e ceninha cultural da cidade em geral - isso inclui toda aquela galerinha que você encontra em todo canto, que não faz ideia de quem seja, especialista em fazer amigos e que sempre dá um jeitinho de entrar. A reinauguração pra mundiça do meu Recife vai ser só no dia 12 do próximo ano. Tentarei ir como um bom suburbano que sou: estou curioso pra ver o público de fato. No entanto, preciso dizer que a reinauguração só estará completa quando a sala arrancar de si o fantasma de palanque político, palanque que se repete sistematicamente ao longo das décadas e adquirir um projetor digital. É imprescindível ambas as coisas.

Enfim, aproveitando a pompa do evento, o clima premiere que se abateu sobre a cidade e desejando sinceramente longa vida ao cinema mais bonito que já entrei, lembrei - força da expressão - de um outro evento ocorrido no mesmo local no dia 03 de outubro de 1953, pouco mais de um ano depois de sua abertura em 6 de setembro de 1952. Na ocasião, estreava o filme O Canto do Mar, de Alberto Cavalcanti, cuja produção fora toda realizada em nosso estado, com participação de 'profissionais da região', gerando polêmicas e expectativas, pondo em questão até a sexualidade do diretor, briguinhas entre os cronistas dos principais jornais, todo um rebuliço digno de novela em horário nobre. Para se ter uma ideia do vuco-vuco na província, "momentos antes da pré-estréia, o deputado José Santana foi assassinado na calçada do cinema, quando chegava para assistir ao filme. Motivo do crime: brigas políticas no clã dos Santana, natural da cidade de Flores, no interior do estado, que devido às violentas intrigas da família passa a ser conhecida como a 'Coréia do sertão''. Vejamos o que foi publicado em alguns dos periódicos nos dias que se seguiram à sessão, um pouco cruéis, convenhamos, mas que mesmo sendo da época em que Jomard participava de um cineclube católico e que as pessoas caminhavam pelas ruas, não pelos shoppings, acredito que, de alguma forma, têm muito a nos dizer:

"Como acontecimento social, o lançamento de O Canto do Mar confirmou as expectativas. Como filme, deixa muito a desejar" (Carlos Frederico, DN, 05/out/53, p.6)

"Não condenaríamos os atores porque seus fracos desempenhos deveram-se a Cavalcanti que não criou tipos convincentes, mas condenaríamos, com rigidez, o senhor Hermilo Borba Filho, autor dos diálogos, mal feitos, monótonos, sem inspiração (tal qual suas peças teatrais). Da montagem nem é bom se falar: uma lástima. Somente absorveríamos o fotógrafo Cyril Arapoff" (Ângelo de Agostini, JP, 08/out/53,p.4)

"Pernambuco, este estado cheio de tão belas e puras tradições, serviu de cenário para um filme dirigido por Alberto Cavalcanti. O Canto do Mar imergiu nos seus maracatus, percorreu xangôs e apresentou o frevo. fotografou nossas praias. Mostrou igrejas 'grávidas de ouro'. E também a miséria do povo sertanejo, a terra seca e suas paisagens mais tristes. Focalizou tudo isso como numa sucessão de cartões postais que a gente manda para uma pessoa muito distante daqui com uma dedicatória mais ou menos assim: 'aí vão os costumes populares e a terra pernambucana'. Nada mais" (Paulo Fernando Craveiro, DN, 07/out/53, p.3).

"Não há meio termo nas opiniões sobre O Canto do Mar. Para uns, foi a segunda tragédia do São Luiz, sendo a outra a morte do deputado sertanejo; ou que a bala que matou o deputado Santana, pegou casualmente o representante petebista, dirigida que fora, não contra ele, e sim contra Cavalcanti. Para outros, trata-se de uma obra-prima; das tais que o sujeito, depois de fazê-la, vai dormir nos braços da posterioridade (L., DP, 07/0ut/53, p.6)

"Durante uma semana não se falava em outra coisa no Recife. Cartazes. Faixas. Convites. E, finalmente, o filme começa a rodar; o São Luiz super lotado, pessoas em pé, sentadas pelos degraus do balcão, estava vitorioso o cineasta Alberto Cavalcanti. Aparecem as primeiras imagens do alto sertão. A seca. Os esqueletos de animais. Vem o narrador. Não era necessário o narrador, mas o sr. Cavalcanti caprichosamente, achou o contrário; e provocou os primeiros bocejos na platéia" (Duarte Neto, FM, 08/out/53, p.4)

"Bumba-meu-boi, xangô, frevo, maracatu, etc, a película é extremamente valiosa. Estamos, pois, diante de uma obra cinematográfica essencialmente honesta, bem diferente de outras que, ao retratar os nossos costumes, enveredam por caminhos falsos e pretensiosos. A direção de Cavalcanti, crua e vigorosa, soube tirar o máximo de todos os atores" (Jomard Muniz de Britto, DP, 11/out/53)

"Em verdade, o zabumbamento que precedeu a exibição de O Canto do Mar foi excessivo para ele. Também não merecia a depreciação dada pela Prefeitura, com aquela enxurrada de letras minúsculas num convite bem impresso" (Mário Melo, JC, 11/out/53)

"O Recife tem destas coisas surpreendentes. A noite de sábado foi marcada por duas tragédias terríveis. Uma, lá fora, na calçada do cinema, onde tombou um deputado com a cabeça esmigalhada por uma bala misteriosa. A outra, foi a exibição do filme O Canto do Mar. Ambas, quase na mesma hora e com uma semelhança de motivos telúricos que nos dá o que pensar. O filme começa no sertão e se espapaça para praia. A outra tragédia, dizem os jornais, também teve origem no sertão e terminou em pleno coração do Recife" (Aderbal Jurema, JC, 11/out/53).

"Todos nós que nos dirigimos aquela noite de sábado ao Cinema São Luiz (desde os beneficiados pela política do DDC até os 'sem convite' que de uma maneira ou de outra conseguiram penetrar no cinema; e este foi o caso aqui do cronista), estávamos crentes de que afinal chegara a hora de enchermos a boca para falarmos sem constragimentos e sem medos sobre o cinema brasileiro". (Luiz Felipe, FM, 15/out/53)

"Dos 450 convites impressos, dez ficaram com Cavalcanti e o resto, com exceção do de mais uns poucos que foram dirigidos a quem realmente tinha direito, foi transformado em prenda eleitoral. No mínimo dois vereadores serão eleitos por intermédio daqueles convites e mais dois filmes desses e a campanha para a sucessão governamental estará assegurada" (Alexandrino Rocha, FM/08/out/53).

Para mais informações ver: ARAÚJO, Luciana. A Crônica de Cinema do Recife dos Anos 50. Recife: FUNDARPE; 1997.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Dedicatória

Ao meu pai (in memoriam), por ter patrocinado minha vasta coleção de dinossauros de plástico durante a infância e por, atendendo aos meus melindrosos pedidos, ter me levado à estréia de Jurassic Park, aos meus oito anos, conseguindo ingressos mesmo quando o bilheteiro tinha nos avisado que a sala estava lotada.

A minha mãe, por, há muito, muito tempo, quando eu não passava de um garoto, ter me contado inúmeras histórias incríveis de amor e guerra, sempre distorcendo os detalhes ao prazer de sua imaginação, mas cujos motes partiam de filmes italianos, franceses e americanos que tanto gostava. Um dia, resolvi vê-los.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Ausência

E só para dar uma satisfação de minha ausência, não abandonei o blog, não ainda, acontece que estou escrevendo finalmente a minha dissertação de mestrado, que atualmente se chama Consumo Cinéfilo e o Prazer da Raridade, talvez faça um post em janeiro com trechos, mas a questão é que preciso terminá-la, a dissertação, até o início de fevereiro pra dar tempo de mandar pra revisão. Ou seja, desespero pra que te quero. Estou sonhando quase todos os dias com perseguição e um amigo me disse que isso significa que meu inconsciente está me dizendo que não vai dar tempo. Daí virou uma questão de honra, preciso conseguir terminar e mostrar quem é que manda nessa cabeça aqui. De qualquer forma, só sei que já fugi de helicópteros em arranha-céus, usei até lança míssil de uma varanda; já fugi de badboys cariocas em cidades condomínios, de insetos em hospitais contaminados e de mulheres a beira de um ataque de nervos dentro de um shopping em liquidação. Ok, até que estou me divertindo.

Many Happy Returns (Reino Unido, 1997), de Marjut Rimminen



Nada como um bom trauma de infância.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Várzea-Derby; Derby-Várzea


Por uns bons anos, peguei ônibus todo santo dia para ir ao colégio, de forma que cerca de um décimo do meu tempo diário se passava dentro do cdu/várzea centro-subúrbio ou do cdu/várzea subúrbio-centro. Eventualmente pegava um cdu/boa viagem/caxangá na volta. Nunca na ida. Seja como for, ou melhor, sendo otimista, cada viagem devia durar cerca de quarenta minutos, o que dava uma hora e meia contando com a volta. Daí pra fazer o drama, em uma semana permanecia no mínimo 8 horas dentro de um ônibus; em um mês, 32 horas, em um ano, hmmm, digamos que 320 horas para compensar o uso diletante nos meses de dezembro e janeiro. Pois é, são mais de 13 dias inteiros. Entretanto, antes que alguém comece a reclamar da vida, dizendo que mora em São Paulo e passa 78959050950495 horas dentro de um ônibus ou do carro ou sei lá, que enfrenta quilômetros de trânsito, que mora em Piedade e estuda em Olinda, que a rotina é um inferno, comecei esse post só para dizer que passei a maior parte desse meu tempo observando as pessoas: olhava as roupas, os tiques, os gestos, a impaciência, quem levava sacola, quem fingia sono para não carregá-las, a forma de falar, sobre o que falavam, a altura da voz, o corte de cabelo, a cor dos olhos, o sorriso, a grossura da batata da perna, as relações quando estavam em grupo e claro, o corpo por debaixo das roupas. Havia todo um clima de quem tinha acabado de deixar a supervisão familiar e estava aprendendo a lidar com o mundo, num misto de impacto, encantamento e incerteza, mas usando de truques infantis para conseguir se safar.

Eventualmente reconhecia uma ou outra pessoa, que sempre pegava no mesmo horário que eu, muitas das quais nunca troquei uma palavra, só compartilhávamos o mesmo espaço, a mesma efeméride, o mesmo tédio. Conseguia até captar certas recorrências de comportamento nesses casos. Parece besteira, mas nunca consegui lidar direito com a sensação de estar perdendo tempo: mesmo parado, em pé, sentindo cheiro de suor seco misturado ao bafo da cidade, tinha que estar com a cabeça a mil. Nesse sentido, foi graças aos ônibus médio vazios, ou seja, os que davam pra sentar, que pude estudar para o vestibular: durante o último ano do ensino médio, virou um ritual, estudava da hora que entrava até a hora que descia, até porque em casa, lia livros, escrevia umas toscas poesias de amor ou fazia pesquisas - não existia o google, mas existia a barsa - sobre assuntos que me interessavam, mas que não podiam ser tratados como conteúdo de uma prova. Eram puro devaneio pessoal: uma clara obsessão pelas guerras da humanidade aqui, uma nóia em assistir os clássicos do cinema até a metade do século XX ali, um lamento por não ter como me tornar paleontólogo. Meus cadernos da época são verdadeiros tratados sobre a digressão juvenil: frases e mais frases tradutoras de um instante em meio a equações que já não me dizem nada. De qualquer forma, na maior parte do tempo que passava dentro dos ônibus, obviamente não estava estudando coisa alguma, daí me entregava ao deleite da observação: sentava na janela, olhava os transeuntes, escutava as conversas dos outros pela metade, piscava o olho para quem passava em pé nos coletivos que seguiam o caminho contrário. Entre um olhar e outro, entre uma frase pela metade e outra criava micronarrativas, procurando saber para onde as pessoas estavam indo ou de que fim de relacionamento tinha acabado de sair. Todo dia chegava em casa com uma criação mais absurda que a outra, mas não se sintam traídos, não foi assim que comecei a escrever os primeiros contos.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Método

"Geralmente, começo as minhas lições sobre o Método Científico dizendo aos meus alunos que o método científico não existe. Acrescento que tenho obrigação de saber isso, tendo eu sido, durante certo tempo pelo menos, o único professor dessa inexistente disciplina em toda a Comunidade Britânica. Há vários sentidos para afirmar que minha disciplina não existe, e vou mencionar alguns deles. Em primeiro lugar, minha disciplina não existe porque, geralmente, as disciplinas não existem. Não há disciplinas; não há ramos do saber, ou melhor, da investigação: apenas existem problemas e o impulso de resolvê-los. Uma ciência como a botânica ou a química (ou digamos a físicoquímica ou a eletroquímica) são, asseguro, uma mera unidade administrativa.

[...]

E se tomando a inexistência das disciplinas, entretanto, o Método Científico ocupa uma posição peculiar ao ser incluída como menos existente que as outras disciplinas já inexistentes.

[...]

Acredito que não há mais que um caminho para a ciência e para a filosofia: encontrar um problema, ver a sua beleza e apaixonar-se por ele; casar-se com ele, viver feliz até que a morte os separe, a não ser que encontre um problema mais interessante ou, ao menos, naturalmente, que obtenha uma solução. Mas ainda que encontre uma solução, pode descobrir, então, para sua satisfação, a existência de toda uma família de encantadores, se bem que talvez difíceis, problemas-filhos, para cujo bem-estar podes trabalhar, com um objetivo, até o fim de seus dias".

Karl R. Popper,
Acerca da Inexistência do Método Científico - Conferência proferida na reunião de The Fellows of the Center for Advanced Study in the Behavioral Sciences em Stanford. Novembro, 1956.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

comédia romântica de baixo orçamento

Certa vez, perto dos trinta, Verinha se deu conta que sempre se apaixonava nos últimos meses do ano, outubro, novembro, meses que escancaravam os errantes finais de ciclos, ansiedade, universidade, mudanças de visual, arrependimentos, consumismo, listas dos piores, despedidas, desespero, projetos, nostalgia. Tinha a impressão dúbia de que a partir de setembro rolava o alinhamento cósmico em que as pessoas atraentes saíam de suas tocas, enquanto que ela se desfazia de suas paredes, muros e armaduras, provavelmente por, justamente nessa época, perceber a melancolia restrita aos domingos se alastrar aos outros dias. Era preciso amenizar o clima pesado, esquecer os protocolos do horóscopo e havia certo desespero-carmem-maura nisso. Na falta de outra escolha, aproveitava o fervor o quanto podia, vivia toda a vida em quatro ou cinco dias, mas bem confessava que de fato não durava muito. Antes do Natal já tinha certeza do fracasso, se lançava na farra familiar, virava a noite bebendo, comendo, reclamando e fugindo das perguntas anuais das tias velhas. Eventualmente amanhecia o dia embriagada assistindo Procurando Nemo e chorava horas após erguer e derrubar uma montanha de latinhas de cerveja. Abria o olho esquerdo, pois o direito estava grudado de remela, e pedia a Deus para não estar caída nua dentro do banheiro.

Desde os vinte e cinco, Verinha decidira trocar a auto ajuda que ganhava como brinde da paquera com o dono da banca de revista pelas composições barra-pesada do Paulo Vanzolini. Sentia desde então uma vertigem terrível, um medo por antecedência, como se o corpo rígido, de forma autônoma, antevisse e se protegesse para o ano que estava por vir. Todavia, quando pensava na contagem regressiva puxada pelo Faustão, quando tinha pesadelos onde ficava trancada num aposento com todos os artistas do show da virada, se tornava permissiva só pelo medo de ficar sozinha. Se pudesse fazer um testemunho de sua condição, escreveria em alguma pedra fina que enxergava a si como se estivesse presa a um labirinto de corredores novos, que apesar de levarem naturalmente a caminhos desconhecidos, eram feitos de azulejos e dores antigas, labirinto que se projetava a partir do vício de quem se encontra entre o amor platônico que doa a um e o amor hedonista que espera receber de outros mil. A própria vive pensando em desistir, mas na hora do gatinho, Verinha, mesmo tendo vivido todas decepções amorosas, mesmo se envergonhando da vontade de escrever melodramas cinquentões, sente o peso das olheiras e termina admitindo que espera ansiosa a chegada do reveillon em que terá a oportunidade de, vestida de vermelho, abdicar dos mil para encaixar seu corpo no abraço quente de apenas um.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Nego Fugido (Brasil, 2009), de Cláudio Marques e Marília Hughes


Há uma breve passagem em Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, livro de cabeceira de sete dentre dez adolescentes nerds, em que as personagens dos civilizados Bernard Marx, o angustiado protagonista, e Lenina, sua acompanhante momentânea, decidem visitar uma reserva de selvagens - espaço remanescente de uma cultura passada, mantido simplesmente a caráter arqueológico, quase como uma lembrança - ou materialidade hipnopédica - dos motivos pelos quais os homens decidiram pela racionalidade extrema a serviço da civilização. A reserva é um lugar cercado por arames elétricos em que animais e homens convivem, onde estes últimos ainda se comportam como vivíparos, constituindo laços familiares, se dedicando aos cultos, aos mitos e à religião, caçando e sendo caçados, completamente distantes (ou ausentes) da distopia sobre o qual o livro se debruça (e, obviamente, ironiza). Só para os desavisados não ficarem boiando, é preciso dizer que Huxley destrincha uma sociedade ultramoderna que conseguiu vencer a infelicidade, não só abdicando da verdade, da arte e controlando minuciosamente a ciência, mas erguendo o fordismo como ideologia dominante e baseando sua hierarquia num método de predestinação social imputada em bebês gerados em laboratório. Cada um é obrigatoriamente para o que nasce, não existem insatisfeitos nos diversos patamares da estrutura social e, para usar dos termos corretos, os indivíduos não mais nascem de barrigas e sim, decantam de frascos em frascos. Além disso, os amantes são conquistados sem flerte, de maneira estritamente pragmática, e trocados regularmente, determinando o fim das vicissitudes do amor, do ciúme e afins, de modo que caso sejam acometidos por uma paixão violenta são expostos a um tratamento de choque.

Todos prosseguem suas vidas levemente dopados, consumindo incessantemente uma pílula sem ressaca chamada soma: o substituto ideal do álcool e do cristianismo, a alienação saudável e sem culpa. Como frutos deste contexto, Bernard e Lenina decidem visitar a reserva: ele buscando uma resposta por estar angustiado numa sociedade perfeita, ela querendo um entretenimento fugaz através da aproximação com o exótico. Após um sucinto city tour no pueblo, ambos são convocados a permanecerem numa praça onde será realizado um ritual do qual desconhecem qualquer princípio. Inicialmente Lenina mostra um tremendo interesse, sente-se bem e acolhida com o som dos tambores, fecha os olhos, imagina o Brave New World ao qual pertence, mas vai mudando a expressão a medida que o ritmo acelera, se tornando mais frenético, carregado de um tom sombrio pouco melodioso. Em seguida aparecem figuras mascaradas e pintadas ao ponto de perderem qualquer semelhança com o corpo humano e o ritual vertiginosamente se distancia do límpido universo da mulher: surgem oferendas religiosas, animais peçonhentos arremessados, um jesus crucificado é erguido, o candomblé reverenciado, os participantes se entregam aos gritos de horror. Por fim, temos a nudez de um jovem rapaz, a dor e devoção que o leva até o sacrifício banhado de sangue em troca da fartura na próxima colheita. Rapidamente, o olhar de ambos forasteiros retorna à moral e parâmetros de seu mundo plastificado e asséptico, todos os gestos e imagens são traduzidos como ofensas à vitória da civilização. Lenina esconde o rosto com as mãos, soluça, estremece: quase sem ar pelo absoluto não costume do sofrer, sente falta de sua dose diária de soma. Havia esquecido as pílulas na pousada.

Pois é, me prolonguei em todo esse epílogo, quase como um saltador que não cansa do trampolim, só para assumir que quando assisti ao curta Nego Fugido, de Cláudio Marques e Marília Hughes me senti arremessado para dentro desta passagem do livro de Huxley, sem perder de vista os inúmeros amigos e documentaristas que direcionam seus olhares curiosos ao mundo que lhes é estranho, exótico, a tudo que para o Eu se metamorfoseia enquanto Outro. Ora se banham num proto-assistencialismo culpa burguesa, ora procuram reinventar ou referendar os cacoetes do registro da alteridade. O filme retrata a interação de dois jovens brancos de classe média, ele é ator, ela carrega uma câmera nas mãos, no povoado de Acupe, no município de Santo Amaro da Purificação no Recôncavo Baiano, durante a apresentação do Nego Fugido, manifestação popular existente desde o século XIX, que procura recriar as lutas da resistência negra contra o regime escravocrata. Uma espécie de teatro de rua de forte repasse histórico oral. O rapaz é impelido a participar da manifestação, pintar o rosto, se misturar ao Outro pedindo dinheiro às sinhás para comprar cartas de alforria. Pelo que consta, a apresentação, apesar de remeter a uma tradição que questiona as consequências da abolição desvinculada de políticas públicas, passou, de fato, por algumas reformulações turísticas amenizantes, o que é plenamente plausível numa sociedade consumista, ainda que os arianos suassunas da vida esperneiem com indignação. Daí são esculpidas duas posturas, a do rapaz que se envolve com a manifestação, de modo a negar sua presença de estrangeiro, problematizando a distância entre o eu e o outro e vislumbrando os limites da interação, interpenetração e falseamento, e a da menina, que afirma seu Eu e firma distância, se assustando com o Outro ao ponto de criar uma repulsa a tudo que acontece a sua frente. Assume, resignada, seu próprio preconceito.

Para além do que já foi esboçado, talvez o aspecto dialógico que tenha se imposto em meus olhos como punctum de Barthes seja o fato do curta ser bastante astuto em seu papel de ficcionalizar a documentação e documentar a ficção. É por este estreito e perigoso caminho que me aparece a reflexão mais importante, afinal, para além das duas personagens, há um terceiro elemento presente, a equipe, que neste caso parece abandonar completamente a velha ilusão cinematográfica do apagamento. No filme, a mediação para com o espectador é regida num interminável direcionamento do campo, do fora de campo e do contracampo virado para a câmera. Todos interligados por uma montagem peculiar: a relação de olhares das personagens ficcionais, dos atores reais do teatro, do espectador e da equipe assumem uma dimensão extremamente complexificada, onde o ritmo de 'cortes' intensos e violentos adensam a instabilidade das posições de cada um, possibilitando pequenas fugas de atitude. Seja como for, ao final, todos parecem se encarar veemente. Resta apenas uma pergunta no enlace desta teia, pois fiquei matutando com qual das posturas das personagens criadas a equipe se identifica mais, qual das duas elege como espaço de fuga primeiro, levando em conta que a escolha da manifestação de Acupe, independentemente das pré-relações, também os coloca como forasteiros. Posso supor uma solução equivocada: a existência em si de Nego Fugido enquanto curtametragem parece nos responder que provavelmente todas as posições são assumidas simultaneamente e de forma autoconsciente, de modo que a fuga da equipe se transmite por meio do olhar desconfiado da garota, da língua vermelha pintada do rapaz, da câmera nervosa, do espectador intrigado. Sem dúvida, todos envolvidos neste projeto deviam saber que "pra filmar aqui tem que ter money, money sinhá!!” e, acredito que, ao final do filme, todos ficamos sabendo também.

Amante

Desde que começou a escrever sobre cinema, pensa na crítica como uma arte do encontro, do encontro fortuito, não agendado, o que traduz um caráter literário de crônica em praticamente tudo o que escreve, pois sempre termina misturando quem era no sentindo amplo e quem estava sendo no sentido micro para melhor entender dentro da cabeça o filme com o qual se deparou. De fato, nada contra, mas ele nunca foi muito da turma da terapia, era pobre, morava longe, não tinha grana, daí jamais quis se autoinstituir como terapeuta que coloca uma obra de arte no divã e a analisa clinicamente. Se pudesse escolher uma dimensão, escolheria a do amante sempre confuso sobre a duração da noite de prazer, sem saber se o encontro continuará encontro por semanas, anos, décadas ou se, sendo o último, cessará em poucas horas. Não hesita: se entrega, ama, inventa e mente. No outro dia, se for o caso, veste a roupa e vai embora.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

O Overmundo como parâmetro de uma crítica digital?

(Ensaio publicado originalmente no livro coletivo 'Protocolos Críticos', 304 pags, São Paulo - Iluminuras: Itaú Cultural, 2008. ISBN: 9788573212976. O livro é resultado do projeto Rumos Literatura 2007/2008, conta com 16 ensaios sobre os mais diversos assuntos do campo literário - autores, temas em comum, crítica - e pode ser comprado na Livraria Saraiva variando o valor entre R$30,00 e R$35,00)

Ao curso dos grandes períodos históricos, juntamente com o modo de existência das comunidades humanas, modifica-se também seu modo de sentir e de perceber. A forma orgânica que a sensibilidade humana assume – o meio no qual ela se realiza – não depende apenas da natureza, mas também da história”.

Walter Benjamin,
em ‘A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica’.

Ninguém ampara o cavaleiro do mundo delirante

Só o título definitivo do presente ensaio ter passado de afirmação – quando minha idéia era apenas um projeto – para dúvida, já diz o bastante sobre as mistificações e desmistificações metodológicas de uma pesquisa. Um ponto de vista nos impulsiona para depois ser desconstruído. O título assertivo me jogaria num deslumbramento primeiro, que existia e me trouxe até aqui, mas que nesse momento associo a uma cordialidade que o próprio Overmundo precisa evitar. Por isso a dúvida. Seja como for, antes de adentrarmos no perigoso reino da vanguarda ou monarquia colaborativa, é preciso fazer um rápido apanhado e dizer – correndo o risco de ser ‘levyano¹’ – que a cada dia se torna mais difícil discorrer sobre a cultura contemporânea e seus desdobramentos, sem relacioná-la com o paralelo desenvolvimento tecnológico. Parece até papo repetido. Assim sendo, é importante registrarmos, até a título de testemunho, as possibilidades nascentes com a convergência digital – um fenômeno aclamado ora promissor, ora alienante – que vem, e é claro que vem, influindo em diversos patamares do cotidiano, na comunicação agora massiva, dual e personal, e em tudo que ainda chamamos de arte.

Além de tomarmos como irreversível, esse processo se insere numa era de fragmentos – chamada de pós-modernidade por uns e de modernidade cansada por outros. Temos profundos diálogos entre linguagens, hibridização de formas e a dispersão de antigas fronteiras. A convergência não está sozinha. Antes tínhamos as belas artes, agora falamos em novas artes: tecno-arte, bio-arte, arte-crime. Antes tínhamos as disciplinas e o anseio acadêmico de se estabelecer enquanto disciplina; agora a interdisciplinaridade rompe as fronteiras da academia. “Abra os olhos e verá a inevitável marca na história”, dizia uma das pichações de Rafael Augustaitiz ao apresentar sua conclusão de curso, através da intervenção e invasão do centro universitário em que estudava. De fato, a própria noção de fronteira e de um modus operandis específico, que diferenciava a gestação do artista das telas de outro das folhas, ou mesmo que formatava a transgressão do artista como distinta da de um criminoso se dilui nesse contexto, fazendo da literatura, imagem; do cinema, palavra; da pintura, performance. Isso reverbera no perfil do crítico – que pode insurgir sem ser artista, acadêmico ou jornalista – e nos perfis de críticas que se distanciam de um 'único' ideal: crítica genética, biográfica, impressionista, visual, estrutural e semiótica se misturam. Tudo é permitido. E não que não fosse antes: precisamos saber dosar o excesso de visibilidade do presente para que ele não se torne a perda de um passado, pontuando sempre que necessário o novo, mas sem nunca perder de vista a história. Essa mediação é imprescindível: mesmo jovens e com pouca lembrança já lemos Haroldo, Tarkovski e Glauber, vimos Truffaut, Warhol e Pasolini, dançamos com Jomard e admiramos a transmutação artística recorrente em Greenaway (ou deveria dizer Lynch?). Pois é, sabemos que Adão, Eva e um criacionismo inédito não estão entre nós.

Mas, deixando de lado ressalvas iniciais, se partimos da interseção e mútua-influência entre a cultura e a tecnologia, observaremos como a produção textual em circulação no ciberespaço vem sofrendo suas metamorfoses. Ainda discretas, mas metamorfoses. Pra começar, temos de levar em conta a possibilidade multiforme de expressão diante de uma tela – apesar das já multiformes não diante de uma tela – que reinstituem a ‘palavra’ escrita como apenas ‘uma’ ferramenta, não mais como ‘A’ ferramenta única e exclusiva de comunicação. Sequer podemos considerar que o uso da palavra na internet continua o mesmo, já que há uma liberdade quanto à publicação de ‘conteúdo’, expurgando assim qualquer censura ideológica ao teor e normativa ao tom: as abreviaturas, a oralidade, gírias unidas a academicismo e o caráter hiperpessoal dos blogs se destacam. É batata e não há como ter controle. Desde que aderimos ao vigésimo primeiro século, não é preciso ser especialista para postar em circulação global imagens, sons, vídeos, links, emoticons ou qualquer outro recurso. Somos, ao menos em tese, escritores/produtores e leitores/consumidores globais.

Isso nos leva a pensar que basta uma conexão e uma vontade de se expressar para que estejamos aptos a nos tornar artistas, críticos ou jornalistas. Mesmo em literatura essa ideia não é nova. Desde o século XVII, o homem – principalmente os homens de letras das colônias e províncias – já atentava para a importância da construção de prelos simplificados. O domínio completo da técnica de impressão de um livro, do início ao fim, tornava-o não só um ‘autor a mais’ lançado, mas seu próprio editor: um senhor de sua obra (EISENSTEIN, E; 1998; P. 120/121). Atualmente, com as tecnologias digitais, essa produção completa de conteúdo se associa diretamente ao processo da colaboração e ao da interatividade, constituindo portais coletivos, hierarquizados horizontalmente o quão o capitalismo tardio permite e se apropria. O conselho administrativo / financeiro continua, os editores se tornam raros e um mar de repórteres é constituído. Todos podem ser críticos (de boteco, mas críticos). A edição se torna sugestão. Já se fala, inclusive, num jornalismo open source que é claramente uma adequação empresarial aos novos tempos. Quem não muda sua organização é atropelado pelo trem e hoje a tendência é justamente o contrário do que se via na antiga lógica de emissão única para recepção múltipla: interfaces inteligentes que capacitem o usuário como produtor de opinião e informação diante de uma janela de opções midiáticas. A crítica da crítica ganha uma via oficial.

Outras fronteiras são colocadas em xeque, afinal esse aparente caráter autônomo do internauta, uma flanerie ligada a um ‘do it yourself’ tecnológico, não funciona apenas como uma liberdade nunca antes sentida, mas como uma tendência autofágica, que cresce enquanto se devora. Não só a percepção multiforme e a expressão multiforme se assumem como objeto (e ler isso numa folha de papel soa um tanto picareta), pois o ponto central do regime colaborativo – que nos lembra a cooperação científica do início da era Moderna, que uniu diferentes saberes e diferentes visões sobre saberes na constituição de grandes sistemas – se funda na heterogeneidade de premissas, no multiculturalismo ante o eurocentrismo e no abalo da distância essencial e simbólica entre o autor e o seu leitor. Ambos se tornam líquidos, invertem-se, colocam-se um no lugar do outro até se fundirem num só. Ultrapassa-se aqui a noção de complementaridade veiculada preponderantemente no interior do sistema literário, atingindo o nível da confusão entre os papéis. O autor escreve e o leitor escreve por cima.

O menos burocraticamente possível, temos a potencial leitura, antes dita passiva, agora descontínua, pronta a se converter numa escrita, numa resposta, numa mudança de foco. Isso não gera necessariamente uma escrita potencial, pois o excesso de opiniões termina por questionar a própria legitimidade da crítica como uma ferramenta de legitimação. Temos a crítica assumidamente hiperpessoal, mas temos a crítica anônima; temos a crítica que disponibiliza o objeto criticado, mas há uma epidemia de opiniões uniformes. Existem sim contradições. É um momento de diálogo e de ‘crise’, mas como nos ensina o mestre Lourival Holanda, melhor que seja de crise mesmo, porque a crise nega a estagnação do pensamento em favor da transformação. Nesse sentido que devemos seguir. Pelo bem ou pelo mal, a literatura e a crítica literária postas em debate na internet encontram uma diversidade de pontos de vista, uma divulgação que torna a visualização desvinculada do mainstream. Os conglomerados comerciais são substituídos por pessoas, as pautas unilaterais por propostas individuais; estatutos rígidos se quebram, abandonam seus postos antagônicos para se tornarem um tudo ao mesmo tempo aqui agora. Ponderar o que vale e o que não vale a pena em meio a esse pandemônio, em meio a essa ‘hiperinflação informacional’(SANTOS, A. L.; 2003, p. 36) e hiperinflação do descartável, é o nosso grande dilema. Vivemos no regime do excesso que conduz confusão para além do saber (CHARTIER, R.; 2002; p. 20).

Obviamente, nem tudo é novo. Benjamin² já observava essa nova conjunção entre autor e leitor há setenta anos e devemos tomar o seu exemplo, enquanto sintoma da modernidade na virada do século XIX para o XX, com os olhos apontados para frente. Em especial se levarmos em conta que toda mídia 'nova', e mesmo a internet se inclui nisso, traz consigo as bases de mídias anteriores, uma remediação, de forma que fica difícil encontrar na produção textual, e na crítica, uma característica que a diferencie por completo do que veio antes. Fiquei obcecado em fazê-lo até perceber que estava sendo precipitado. Muito do que é escrito na internet ainda é puro reaproveitamento do que era / é escrito nos meios impressos, podendo inclusive transitar de um a outro sem grandes perdas.

Pois é, o potencial multiforme ainda sofre do velho uniforme. Engraçado que essa seja uma recorrência mesmo com os mundos e fundos prometidos diariamente, mesmo tendo de refletir sobre as novas maneiras de fazer, transmitir e fixar significados (SILVERSTONE, R.; 2002), assim como sobre a diversidade de práticas de leitura e escrita. Não há limite de caracteres, mas os textos curtos e superficiais se multiplicam; podemos apontar diretamente toda intertextualidade, mas um recurso simples como os links são esquecidos ou desconsiderados pelos leitores. O hipertexto ainda é claudicante e só o tempo nos dirá até que ponto, de fato, seus elogios serão confirmados e até que ponto uma distinção entre a crítica digital e a crítica impressa poderá ser feita. Uma distinção discursiva, formal, social e utilitária. Trata-se de uma situação próxima de quando instituímos o regime do impresso diante do manuscrito no século XV. Os últimos livros copiados à mão e os primeiros saídos da prensa conservavam uma ampla semelhança, a tal ponto de não conseguirmos identificar as propriedades de um e de outro (EISENSTEIN, E; 1998; p. 37). Não se passa de uma conjuntura a outra sem transições. O novo não aflora do nada simplesmente. Vivemos nossa própria época de incunábulos, com tensões e passos em falso: o labirinto da hipermídia injeta liberdade, mas solapa antigas referências, antigas formas de localização, antigos apoios. E, nesse caso, é preciso se perder para aprender a navegar.

Dessa forma, a investigação do ensaio – e não se enganem, pois muito da reflexão foi posta aqui de forma aberta – se debruça sobre a crítica literária e seu comportamento nessa pretensa transição, nessa propensa metamorfose, tomando como objeto o site colaborativo Overmundo (www.overmundo.com.br). Criado em caráter experimental no final de 2005 e lançado oficialmente em março de 2006, o portal é concebido como uma grande encruzilhada reflexiva e cultural do Brasil de livres uso, acesso e construção. Percebi logo de cara que a abertura completa à participação, contraditoriamente, gerou uma restrição no consumo, dando um caráter de fórum ou coletivo a uma proposta que pretendia ir além. Se compararmos o número de acessos ao portal – lembrando de seu apelo nacional – com a versão online do Jornal do Commercio de Recife – cujo apelo é extremamente regional – vemos que o segundo tem 6 vezes mais usuários diários que o primeiro (dados de março de 2007). É como se o Overmundo só tivesse conseguido estabelecer intimidade profunda com entusiastas do estudo ou da feitura da cibercultura, o que é um gueto dentro do interesse pela cultura, deixando de lado uma gama enorme de potenciais 'overmanos' e 'overminas'. O debate – postulando a crítica enquanto debate – é quem perde, principalmente quando se institui uma cordialidade excessiva, um jogo de elogios vazios. Apesar de o nome ser comumente apontado como uma americanização, suas origens remetem ao poema de Murilo Mendes, Overmundo, presente no livro Poesia Liberdade, de 1947 (e escolhi quatro versos quase-mas-não-seqüenciais para usar como subtítulos). O objetivo deste ensaio não é me fechar num caso específico, o Overmundo, nascendo e morrendo num único ventre, do Overmundo, mas uma tentativa de postulá-lo como parâmetro para uma discussão maior. Mantendo sempre o direito à dúvida. E acho que essa idéia está clara desde o primeiro parágrafo.


Que anda, voa, está em toda a parte
No intuito de revelar o percurso, me registrei no Overmundo em agosto de 2006 e admito: entrei mais pela novidade que por consciência da iniciativa. Logo produzi contribuições, estabeleci contato com colaboradores, gostei do ambiente frutífero de trocas, da possibilidade multimidiática de construção textual, prosseguindo assim pelo ano seguinte até parar e seguir apenas como observador. Sem dúvida, a capacidade do site de agregar pessoas dos quatro cantos do país, de cidades fora do mapa midiático central, faz da colaboração conjugada à interatividade seu grande trunfo. E nesse caso, não se trata de delírio, mas de uma prática cotidiana. Ao mesmo tempo em que há dispersão, há uma noção de encruzilhada que reúne todas as idiossincrasias em um só lugar. A premissa de qualquer interessado poder se cadastrar e escrever sobre o que deseja – com enfoque na cultura e num debate sobre o que é cultura – ilumina um território antes invisível, algo que nenhum jornal, revista ou mesmo agência de notícias consegue ou se interessa em fazer. Num momento podemos ler uma crítica de Uruaçu (GO) sobre o livro De Longe Toda Serra é Azul, escrito por Fernando Schiavini, falando intimamente da questão indigenista no país e no momento seguinte, descobrir através de uma colaboração de Teresina (PI), a existência da revista De repente, fundada pelo poeta, violeiro e repentista Pedro Costa na tentativa de incentivar e divulgar a literatura de cordel. A distância entre os estados se torna a distância de um clique.

Quando os usuários assumem a postura de se debruçar sobre particularidades regionais, que lhe são mais íntimas, ou quando assumem uma pessoalidade imensa sobre temas distantes, o objetivo do Overmundo parece completo. A autoralidade ressurge e se torna múltipla, co-existente. Isso porque a própria estrutura do portal estimula o labirinto hipertextual: toda e qualquer contribuição aponta, numa coluna ao lado, para dezenas de outras contribuições ‘afins’ que por sua vez, apontam para outras dezenas de contribuições afins e assim por diante, a perder de vista. O risco (e aqui isso é um ganho) de se perder é imenso. A carcaça do site não pede uma revisão, afinal, dentro da proposta de cultura livre me parece bem esculpida, mas talvez a lógica de autogestão e de abertura para construção coletiva possa ser repensada. Se por um lado os organizadores tentam manter o Overmundo dentro da linha, por outro, uma série de problemas se acumulam. A proliferação de perfis fakes – que quebram não só a noção de autor, como a de quem é o 'sujeito' no ciberespaço – é apenas um deles: se qualquer pessoa pode se registrar e se tornar crítico do que quiser; temos de nos preparar para os que vão se registrar, encarnar qualquer persona e promover e/ou destruir qualquer artista. A abertura que alimenta o Overmundo é seu maior risco de sobrevivência.

Além disso, não podemos deixar de enxergar como, em termos quantitativos, o Overmundo reflete uma velha situação dos meios de comunicação tradicionais, principalmente no que diz respeito à visibilidade nacional dos eixos centrais em detrimento aos periféricos. Não se trata de uma repulsa ao eixo Rio-São Paulo. Longe disso. Dentro do próprio eixo central ressoam periferias e marginalidades temáticas, além dos temas não esgotados. Não podemos tomar a aparelhagem de poder entre hegemônico e subalterno de forma maniqueísta, mesmo que tenhamos em mente que muita visibilidade para um lado resulta em pouca visibilidade para outro. Tomemos, por exemplo, a contribuição “Escritor bom é escritor morto”, produzida por um usuário do Rio de Janeiro, a partir do seminário internacional Rumos Literatura em 2007. O autor resolveu discutir literatura contemporânea a partir de uma idéia de autor fundada no passado, questionando a nossa procura por 'grandes nomes' no contemporâneo. Não é um tema novo, invisível, nem nada; também não aborda uma particularidade apenas carioca, mas carrega uma discussão pertinente, em especial como metatexto do próprio espaço em que foi veiculada.

Por outro lado, percebi que a dispersão, enquanto apresentação do desconhecido, se confunde – e isso é uma estratégia velada – com serviços de quem os escreve. Isso cria uma situação ambígua, pois não sabemos até que ponto estamos diante de um pensamento sincero, crítico e relevante sobre um tema e até que ponto é apenas propaganda disfarçada. Um texto de destaque foi publicado no início de 2008, sobre o papel do agente literário, escrito por um agente literário que ao final coloca seu contato e se auto-proclama um dos únicos especialistas no país. Nenhum dos comentários tocou no ponto da autopromoção, que aos meus olhos se sobrepôs ao próprio tema, nem se perguntaram se nossa realidade pede esse papel no sistema. Pelo contrário, e isso é um dilema num espaço onde as pessoas deveriam estar atentas: os comentários assumiram sem constrangimentos um tom de clientes pretensos-escritores desesperadamente em busca de um agente literário para publicarem seus livros. A banalização desse tipo de atitude passa a confundir um espaço de debate cultural, com uma ampla agência de serviços nacionais. Talvez seja o caminho mais curto para tornar o Overmundo auto-sustentável – o que é importante – mas nesse caso, teríamos de falar menos em liberdade e mais em consumo.

Não é preciso muito para perceber como o portal bebe de iniciativas anteriores; os administradores fazem as honras da casa e deixam aberto ao público todos os créditos. Isso é um avanço quanto aos direitos autorais, fundamentando um sistema que tanto reaproveita, como se põe a disposição para ser reaproveitado. Tais diretrizes se oficializam ao substituir o tradicional plágio pelo compartilhamento consentido, algo que só se tornou uma realidade graças a distribuição pela licença Creative Commons³, assim como pela disponibilidade do código do sistema para download. Qualquer pessoa pode pegar a estrutura desenvolvida pelo site e desenvolver o seu próprio Overmundo ou outro site parecido com ele, desde que seja aberto e livre pelas mesmas licenças. O mercado ainda não sabe como lidar com iniciativas novas e vanguardistas, que tornam transparentes todo o abismo entre os interesses comerciais baseados no controle completo de conteúdo e a tendência contemporânea de liberdade desse mesmo conteúdo. O Overmundo não contribuiu para os modelos colaborativos da chamada Web 2.0 por seus recursos originais, mas por agregar ferramentas que antes eram utilizadas isoladamente.

Assim sendo, temos uma genealogia complexa: muitos dos conceitos empregados no site tomam emprestados recursos de desbravadores da nova internet, como a Wikipedia, o Slashdot e o Kuro5hin. Partindo do que o Overmundo fala sobre o Overmundo farei minhas considerações. Da Wikipedia é aproveitado o modelo de contribuições, mediante registro, donde o ‘overmano’ e ‘overmina’ têm o direito de escrever sobre o que desejar. Fala-se de uma linha editorial, mas quando se assume a dispersão, a editoria vira censura – uma reclamação que os administradores têm ouvido e lido nos últimos meses. Do Kuro5hin e do Slashdot, o Overmundo formata uma espécie de conselho coletivo, uma ágora de decisão, onde as contribuições entram no ar e são editadas a partir das sugestões dos próprios usuários cadastrados. Temos assim as filas de edição (48 horas) e de votação (48 horas para atingir um mínimo de votos), que filtra (filtra?) todo material postado. A hierarquização dos conteúdos do portal se equilibra entre o tempo de postagem e o número de votos recebidos.

A espinha dorsal do Overmundo é chamada de Overblog e funciona como um espaço publico de debate, onde os usuários podem lançar críticas, ensaios, entrevistas, apesar de que a quebra de fronteiras também atinge esses formatos e faz da entrevista, crítica; do ensaio, entrevista e da crítica; ensaio. Podemos pensar nas colaborações, e nos blogs internos, como um substituto direto das colunas dos meios impressos, onde o editor se torna um sugestor coletivo e onde o crítico se assume como senhor de todas as escolhas e responsável por todos os riscos. Infelizmente, no campo da literatura acontece – e não tanto no da música e do cinema – dos críticos pouco ou não se utilizam das ferramentas que o portal dispõe (imagens, áudio, vídeo e mesmo links). Algo que se fosse mais explorado poderia criar uma especificidade do material em relação ao suporte em que está sendo veiculado. Parece que os usuários não sabem como utilizar e dosar esses recursos dentro de seus conteúdos, menos ainda pensar conteúdos integrados num caráter multimidiático. O hipertexto pode funcionar como um avanço, mas em excesso pode causar uma fragmentação que termina não nos levando a canto, ou melhor, conhecimento algum.

Por isso é tão complicado falar num estatuto - se é que há a necessidade de um - que caracterize a crítica digital e que a diferencie do meio impresso. Não existe um formato pré-estabelecido para a crítica literária, ela precisa se misturar, tornar-se outra. O Overmundo pretende se afirmar como um laboratório multimídia para invenção de novas maneiras de divulgação e discussão da produção cultural, colocando numa posição de auto-questionamento a maneira como a própria crítica se estrutura e como se relaciona com a obra original. Um canal direto entre o crítico, autor e leitores se estabelece, estimulando as contra-argumentações diante do que foi escrito. Entretanto, a maioria dos comentários na seção de literatura não procura fomentar a discussão, mas elogiar o texto sem acrescentar muito. Isso cria um clima 'cordial demais', o que não só é maléfico para a crítica em si, como também menospreza o poder dos comentários. A interatividade e colaboração, enquanto potenciais, se esvaziam.

Dentro da interatividade, se finca a perversa lógica de usar o comentário como moeda de troca, algo que se associa diretamente com o fato da atuação dos usuários contar pontos para o karma, uma forma de distinguir, a partir da atuação e da produtividade, níveis diferentes de pesos nos votos dos usuários. É um tiro dado pela culatra: um mecanismo criado para estimular contribuições e tornar a hierarquização justa, se transformou no combustível de 'comentários vazios', numa busca exagerada por votos. Os termos ‘texto ótimo’ e ‘parabéns’ são majoritários. No caso de entrevistas, os usuários poderiam usar a oportunidade para continuarem o diálogo, afinal alguns dos entrevistados também são usuários, mas pelo contrário, o que acontece é uma volta ao recorrente “legal”, “parabéns pelo diálogo esclarecedor”, “ótima iniciativa”. Ergue-se uma necessidade de marcar presença, uma espécie de 'passei por aqui' que mais parece 'passei por aqui e talvez nem li'. A crítica de mão dupla, na verdade, pouco resiste (existe). Comentários do tipo “Lido, gostado e votado!” chegam a ser constrangedores, quando um mesmo usuário o repete em diferentes textos. Existe um movimento interno para acabar com essa cordialidade, mas ainda me parece um movimento isolado: a sensação maior é a de que ou se entra no jogo de elogios ou não se joga. A diversidade de pontos de vistas se perde; a provocação e a contestação viram artigo de luxo e até de xingamento por quem assume apenas o status de 'usuário cordial'. Não que a razão da crítica seja a distinção forçada de opiniões, afinal a polêmica pela polêmica tem o mesmo efeito do elogio pelo elogio.

Pensando assim, acredito que o karma é o grande sabotador do portal. Além do estímulo às avessas dado aos cordiais, essa atribulação instituiu uma espécie monarquia interna que passa invisível: no Overmundo, poucos têm um valor de voto alto e muitos permanecem com seus valores baixos. Sem contar que uma porcentagem pequena, 28 para ser mais exato, é paga por suas colaborações, enquanto se espera que todo o resto de usuários poste novos materiais espontaneamente. Há um dilema corporativo aqui. Soa como um surto de verticalização num pretenso mundo de horizontes. Em um espaço onde todos lutam pela legitimação da crítica, legitimação concedida pelos próprios usuários, uma parcela parece privilegiada, como se estivessem legitimados a priori. A crítica digital tem como maior caráter o dilema da legitimação, enraizada no dilema de quem concede e de quem recebe essa legitimação.


Observai sua armadura de penas

Parte da reflexão sobre o contemporâneo só se preocupa com o que acontece na ponta do desenvolvimento, no campo do ‘sempre-novo’, do agendado pela grande mídia, do último lançamento. Entretanto, essa ‘evolução’ – se é que podemos usar esse termo - não é tão idílica como já nos mostrou a história e se dá em camadas, de maneira desigual e não-linear. Estabelecendo um paralelo com o ciberespaço, percebemos uma severa desigualdade na usabilidade rotina dos usuários, a partir do letramento digital que possuem. O que traz reflexos na liberdade de direção dentro do ambiente virtual. Como vimos, há propostas de sites colaborativos que engatinham, mas as bordas e os centros continuam vivos, camuflados, mas vivos. Uma prova são os ‘portais-currais’ (UOL, Globo.com, Terra), espaços tidos como auto-suficientes para não nos perdermos no ‘mar de informação’, mas que, de fato, como aponta André Lemos “embora busquem agregar supostos conteúdos importantes, nos tiram, enquanto fenômeno hegemônico, a possibilidade da errância, da ciber-flânerie, nos transformando em surfers-bois, marcados pelo ferro do e-business’ (LEMOS, A.; online). Temos com a internet novas liberdades, novas formas de expressão, novas interações trans-territoriais, mas temos de aprender a lidar e a desviar das novas restrições e das formas – maquiadas – de controle. Se não o fizermos, as mudanças de suporte valem pouco.

Essa minha visão contrasta com o que afirma, por exemplo, a Lucia Santaella ao dizer que a internet, enquanto rede (e prefiro a noção de emaranhado), não “se constrói segundo princípios hierárquicos, mas como se uma grande teia na forma do globo envolvesse a terra inteira, sem bordas, nem centros” (SANTAELLA, L.; 2004, p. 38). O ciberespaço não pode ser resumido apenas como ruptura hipotética, afinal é além de ruptura, manutenção de continuidades e desigualdades pré-existentes. O contemporâneo, e já sabemos disso desde Santo Agostinho, se assume como uma convergência de distintos tempos em um só tempo, um espaço em que sistemas materiais e simbólicos convivem em diferentes estágios. É um pouco o que nos diz Gilles Deleuze, ao afirmar que não estamos lidando com “o curso empírico do tempo como sucessão de presentes”, mas “seu desdobramento constitutivo em presente que passa e passado que se conserva, a estrita contemporaneidade do presente com o passado que ele será, do passado com o presente que ele foi” (DELEUZE, G.; 2005, P. 325). O tempo e a tecnologia não compartilham de uma uniformidade espacial. Essa ressalva é importante, porque define a existência de níveis de letramento digital (MARCUSCHI, L. A.; 2005), co-existentes, influenciados pela intimidade e liberdade do navegador com o discurso eletrônico que produz e que consegue recusar. A própria Santaella é de grande valia ao definir diferentes tipos de navegadores (errante/novato, detetive/leigo e previdente/experto), a partir da profundidade de ações que conseguem realizar no ciberespaço. Ela aponta diferentes formas de navegação, muitas vezes influenciadas até pela personalidade do navegador, que pode diferenciá-lo ou encaminhá-lo para a corrente.

É arriscado refletir sobre fenômenos culturais recentes, mas é preciso. Afinal, muito da não-reflexão é causada por um comodismo de deixar os processos se petrificarem, uma lógica que se funda na força do 'hábito' em ocultar o vigor das mudanças. Há uma clara falta de perspicácia na postura diante de um fenômeno recente, do qual não conseguimos vislumbrar todas as saídas e conseqüências, pois não temos o tempo decorrido que nos conforta e nos enche de segurança. Por outro lado, penso em seguir um caminho distinto de autores consagrados como a Lucia Santaella e o Pierre Lévy, mesmo que ambos discorram sobre o ciberespaço. Ambos tendem se fundamentar a partir da idéia de ‘potencialidade’, o que me parece muito tentador, mas, por outro lado, também me parece deslumbrado demais. Será preciso cobrar da ‘potencialidade’, questionar até onde o potencial inserido pela colaboração vai e até onde ele limita a si mesmo. Precisamos ser claros e não cair na dualidade, onde de um lado a internet emana como solução de todos os males e de outro, como o centro vital de simulacros e cataclismas. Para além das distopias e utopias da cibercultura, nossas pesquisas precisam adotar uma sobriedade.


E ouve seu grito eletrônico.

O Overmundo tem de superar o karma do consenso vazio ou a iniciativa terminará caindo num caminho sem volta: ou o da censura editorial dos jornais, ou da superficialidade geralmente acusada aos blogs. É preciso encontrar um meio-termo, se desvencilhar dos caminhos preconcebidos, da quantidade-limite de palavras e termos e da falsa convergência inconvergente. Trata-se de uma busca por um anti-formato - que nem precisa ser tão ‘anti’ assim - mas que nos compreenda, não nos rotule e nos posicione enquanto tal. As expressões são multimidiáticas e precisam revelar a mescla de linguagens dos constructos discursivos que são. Também acredito que não precisamos nos apegar aos que pretendem explicar a arte em critérios científicos e rígidos ou, por outro lado, meramente descrever e contar sinopses. A própria arte não pede essa domesticação: o que caracteriza o trabalho artístico é a impossibilidade de redução do enigma criativo.

Assim sendo, o perfil crítico impresso, televisivo, radiofônico nos soa ultrapassado, enquanto não desperta para uma produção de sentidos próxima de um artista transmídia e livre. De fato, estamos distantes da lógica de guia de consumo ou do agendamento imposto à crítica tradicional. Acredito no compartilhamento como forma de democratização ao acesso de obras e informações e a política contrária sempre marginalizou grande parcela da população. Não se pode ficar omisso quanto a isso. O Overmundo não deve trabalhar pelo consenso, mas pelo dissenso, pelo debate das idéias que se diferenciam, se confrontam, se devoram; pela substituição do determinante pelo ambíguo ou pelo ponto de vista duplo, múltiplo. Essa era a premissa valorosa e ela está se esvaziando. É preciso tornar toda e qualquer conclusão apenas o mote de uma nova e nova discussão. Todos os artistas e metidos a intelectuais – resgatando o sentido não pejorativo da palavra - estão convidados. Nem tudo é novo e ideal, todos sabem, mas é preciso continuar mesmo assim.


NOTAS

¹ Referência ao teórico Pierre Lévy.

² “Durante séculos, um pequeno número de escritores encontrava-se diante de vários milhares de leitores. No fim do século passado, a situação se modificou. Com a ampliação da imprensa, que colocava à disposição do público órgãos sempre novos, políticos, religiosos, científicos, profissionais, regionais, um número crescente de leitores passou-se – inicialmente de modo ocasional – para o lado dos escritores. [...] Entre o autor e o público, conseqüentemente, a diferença está em vias de se tornar cada vez menos fundamental. Ela é apenas funcional, podendo variar segundo as circunstâncias. A competência literária não mais repousa sobre uma formação especializada, mas sobre uma multiplicidade de técnicas, forjando-se assim um bem comum”. (BENJAMIN, Walter; 1985, p. 227/228)

³ Atribuição-Uso Não-Comercial-Compartilhamento pela Licença 2.5 Brasil da qual podemos copiar, distribuir, exibir, executar a obra e criar obras derivadas, desde que os créditos sejam dados ao autor original, da forma especificada pelo autor ou licenciante e que tal uso não tenha finalidades comerciais.


BIBLIOGRAFIA

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terça-feira, 10 de novembro de 2009

Cartão de Visita

Um dia ainda consigo convencer o mundo de que a chatice pode ser uma forma de carinho.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Negativos

Às vezes acredito que diversas pessoas com quem partilho meu convívio das idas ao cinema e das conversas de bar se acostumaram - mesmo que neguem duas ou três vezes - a um regime do pessimismo e do olhar agressivo gratuito, o que pode parecer para uma testemunha alheia um pouco de conformismo precipitado e frustração pessoal. Se por um lado, o sucesso de um projeto - e a legitimação coletiva - suplanta temporariamente esse 'pé atrás', pé gangrenado pelas mesmas piadas e preceitos; por outro, serve igualmente no adensamento da pressão negativa sobre projetos futuros. Antes que levantem as plaquetas de "otimista" ou "Polyana", desfaço logo o mal-entendido, primeiro porque me identifico com essa postura inquieta e vislumbro um valor criativo do estado de crise; segundo porque acredito que se tudo vai bem, se apenas os méritos são comentados, se todas as críticas de filmes são positivas e se a cordialidade, enfim, domou as ligações perigosas, é porque de fato há algo de muito errado e medíocre no sistema. Nenhuma realidade pode viver só de elogios. Bauman em seu Em Busca da Política (2000, p. 14) comenta - e eu concordo - que “nenhuma sociedade que esquece a arte de questionar ou deixa que essa arte caia em desuso pode esperar encontrar repostas para os problemas que a afligem”. No entanto, quando qualquer falha vira motivo de chacota, quando se espera o pior simplesmente por escolha, quando o caráter ranzinza impossibilita os deslumbres, a realidade pode se erguer numa problemática similar a da cordialidade, negando a exatidão e perícia dos olhos de leopardo.

Trata-se afinal de uma preservação do discernimento e do reconhecimento para que se possa 'descer o sarrafo' como gesto de maturidade e sensibilidade e não como mero prazer confuso e inseguro. Os dilemas existenciais nem sempre são vingados por meio da autodefesa fundada na esperar pelo pior - noção teorizada por Freud a partir de entrevistas com veteranos da Primeira Guerra Mundial, cuja conclusão foi a de que quem esteve no conflito esperando pelo pior lidava melhor com os seus traumas, enquanto que quem tinha ido com a esperança de ser mais tranquilo, desenvolvia maiores sequelas. Assim, é caso de não temer as sequelas nem abandonar o espírito crítico. Na incapacidade de distinguir realidades - incapacidade ou conveniência - alguns costumam jogar fora a água suja com o bebê, uma espécie de expectativa negativa sem razão de ser diante do que ainda nem se realizou: seja para com o cineasta que está fazendo seu segundo filme depois do primeiro estrear em Cannes, seja para com o primeiro longa de um cineasta cuja carreira de curtas é bastante festejada ou, por fim, seja para com a perpetuação de festivais recém-nascidos. Comecei a pensar sobre isso hoje, porque senti o peso ao ouvir falarem negativamente da segunda edição do Janela Internacional de Cinema do Recife. Ok, sexta-feira foi um caos no Cinema da Fundação, a festa no sábado só ficou boa depois que superou o conceito festa-fila lá pras das 3 da manhã, o janela crítica está um tédio / fiasco, o janela indiscreta nem comento, mas, ufa, ainda restam os filmes e, esses sim, objetos mais importantes e motivo de toda cruzada, continuam carregando o paradoxo da singularidade e diversidade de maneira bastante sólida.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Um país em uma sala


Os filmes anteriores de Laurent Cantet, Recursos Humanos (1999) com seu delicado ensaio sobre alienação e resistência no contexto de uma fábrica, A Agenda (2001) que desembaraça os medos diante do desemprego, e Em Direção ao Sul (2005) com seu olhar perspicaz sobre o consumo sexual, já anunciavam a maneira sutil como o diretor francês condiciona uma esfera cinematográfica imantada de política, sem necessariamente cair no que se convencionou chamar de filme político. Seguindo essa mesma linhagem, aliás sua carreira é de uma extrema coerência, o diretor realizou Entre os Muros da Escola (2008), vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes e sua produção mais audaciosa, esboçando, por meio da complicada relação entre alunos, professores e instituição educacional, uma parábola sobre as tensões étnicas de seu país, a França. 

Inspirado no livro homônimo de François Bégaudeau, que recria sua própria experiência interpretando o recém contratado e dedicado professor de francês, o filme transporta a França para dentro de uma sala de aula, demonstrando como a nação não consegue lidar com a presença cultural das antigas colônias em seu próprio território e termina reforçando velados parâmetros colonialistas. A França teme se tornar menos francesa com a presença dos imigrantes. Naturalmente, a narrativa desenvolve-se por inteira dentro da escola e em cima de longos diálogos durante nove meses de um ano letivo, onde uma série de disputas culturais são travadas e aprofundadas, ampliando sua potência graças ao “efeito de realidade” presente no improviso dos atores. Abdicando de um roteiro nos moldes tradicionais, Cantet e Bégaudeau estimularam situações para que os jovens pudessem criar suas próprias falas e dessem, assim, autenticidade aos embates. 

Se o clássico conflito entre alunos e professores levanta o debate sobre autoridade, poder e liberdade, o diretor utiliza o microcosmo para deslocar espacialmente esses temas, colocando o macrocosmo em evidência indireta. Nas aulas, o idioma surge como uma fantasmagoria da nacionalidade, uma afirmação de "se querem vir para França precisam primeiro aprender a falar e se comportar como franceses". Aliás, durante as duas horas fica clara também a associação entre disciplina, processo civilizador e domesticação de comportamentos divergentes na película, apontando a maneira racista como o país - via Sarkozy - teme de maneira crescente o efeito da miscigenação sobre a sua cultura. Em uma cena, durante a reunião dos professores, um dos presentes comenta o comportamento dos alunos comparando-os a animais e desnudando em absoluto o discurso colonialista, cujas variadas vestes servem para camuflar uma intensa brigada.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Diacronia / Sincronia

Tenho a tendência de idealizar os meus dias como crônicas, descobrindo em alguma brecha das vinte e quatro horas, um lampejo transcendental que possa carregar comigo para o resto da semana, do ano, quiça da vida. É como se partisse do arbitrário princípio de que os dias futuros são, em parte, constituídos de milésimos de segundo colhidos no percorrer dos dias passados. Por isso, toda vez que me arrisco a planejar os próximos passos, que me lanço num plano de ação a médio prazo, logo me deixo invadir por um sentimento nostálgico: leio posts antigos, descubro blogs abandonados, vejo filmes de infância, relembro bons momentos, mando emails saudosos, volto aos lugares que não frequento mais. Parece um mero tique errante, mas só assim me dou conta como tudo isso me pertence, cada fagulha, fragmento e fratura; redescubro quem eu 'era' / 'sou' 'antes de' / 'sem' conhecer cicrano ou beltrano, mais ou menos o que fala o Henri Lefebvre, em um de seus ensaios sobre o cotidiano e tomando para o lado pessoal, ao afirmar que "a história de um dia engloba a do mundo e a da sociedade". Pensar na vida anterior englobada pelo dia presente e pensar os dias como crônicas a serem descobertas por um olho não dormente, me desperta para um aprendizado eficaz: o de recortar momentos insignificantes para torná-los parábolas existenciais. Vinte quatro horas, vinte quatro anos, vinte e quatro quadros e a experiência me parece dizer que sempre há de chegar o momento em que os milésimos de segundo mostrarão sua exatidão cirúrgica.

Pizza

Daí dia desses fui no centro comprar um livro e um sapato, tava na caxangá dirigindo de boa, quando não mais que de repente passaram umas seis ambulâncias, uma atrás da outra, na maior velocidade, cortando todo mundo, eu, a titia lesma da frente, o cdu várzea lotado. Ambulância sempre me dá uma sensação não só de que a cidade inexplicavelmente acelerou e tudo precisa ser mais rápido, como gera uma maldita internalização de que o caos reina - só que sem raposa, ejaculação de sangue e clitóris da Charlotte Gainsbourg cortado. ok, daí chego no derby, ali na ponte antes da praça, maior trânsito, aquela vibe 'tem-um-acidente-ali-na-frente-e-todo-mundo-ta-parando-pra-olhar', o pessoal do ônibus lotado se espremendo na janela e a fofoca rolando solta. Nessa hora sempre surgem milhares de teorias estúpidas. Passo o cruzamento, tem caídos uma moto dessas de entrega a domicílio com a caixa estourada e um motoqueiro, nenhuma ambulância por perto, um galo da madrugada de pessoas rodeando o coitado no chão. Minha última imagem foi a dele mexendo a perna. Continuei meu caminho, segui minha vida, só que logo na frente, outro trânsito, fiquei puto, xinguei geral, adoro gastar toda minha energia negativa enquanto estou no volante. Daí quando finalmente chego na causa dos carros lentos, tem uma saveiro branca parada e um carro de polícia ao lado, a maior discussão entre o motorista da saveiro e os policiais e o povo do ônibus se espremendo gritando coisas que não conseguia entender. Foi então que passei a saveiro e me senti a pessoa mais feliz do mundo, não porque o trânsito tava liberado na minha frente, mas porque olhei pra trás e vi a cena do dia: o vidro da saveiro estava todo rachado e sobre um amassado central, tinha uma pizza portuguesa toda espragatada. Merecia muito uma foto. Juro que fiquei pensando no cara que pediu a pizza, cogitei até a possibilidade dele ligar reclamando que passou de vinte minutos e que agora deveria ganhar uma pizza de graça. Olha só o que o consumo faz com a gente. Enfim, entrei na conde da boa vista com a sensação de que era possível entender o mundo olhando o conjunto direitinho: uma moto sozinha não fazia sentido, uma saveiro sozinha com uma pizza no vidro também não. Quer dizer, nem tudo fez sentido, afinal, onde foram parar todas as ambulâncias que passaram por mim na caxangá? Parece nada a ver, mas acho que a resposta pode estar escondida naquele seriado, O Reino, do Lars Von Trier.

Nascimento em Paradoxo

Para entender como o estatuto da resistência cultural é vulnerável as vicissitudes e astúcias da lógica capital, podendo tanto assumir uma perspectiva de reforma do circuito cultural como de mera substituição das posições a partir de um refinamento dos mecanismos de dominação, nada melhor que recorrer ao nascimento de Hollywood, indústria cinematográfica mais poderosa e lucrativa da história. Diferentemente do que se supõe e apesar de fruto da corrida pelo progresso, de seu caráter de espetáculo fortalecido na captura do imaginário (XAVIER, 1978), o cinema não nasceu com sua essência costurada por um viés ostensivamente industrial, visão que nos é tão próxima que nos cega pela força do hábito. Não nasceu sendo consumido no seio da elite burguesa que, na segunda metade do século XIX, tinha nos livros, folhetins, teatros, concertos musicais, clubes de campo e esportes seu divertimento seguro e refinado. O cinema nasceu sob a promessa de seu fim, especialmente por não ser vislumbrando enquanto utilidade científica ou econômica aos olhos de seus pioneiros – sujeitos-inventores cujos objetivos pragmáticos estavam em consonância com as diretrizes da racionalidade de uma sociedade capitalista em expansão. Apesar de ter despertado curiosidade nas elites graças ao mero culto ao novo, a curiosidade não persistiu e o cinema foi tomado como passatempo perigoso, especialmente pela película de nitrato ser altamente inflamável, o que causou, entre outros, o “trágico incêndio que irrompeu em 1897 durante uma sessão cinematográfica num Bazar de La Charité, em Paris, e que custou a vida de cerca de 120 pessoas” (ROSENFELD, 2002, p. 67). A maioria pertencente à elite parisiense.

Como fica claro em A História Social do Cinema Americano (1978), de Robert Sklar, o cinema em seus primeiros anos de existência foi tomado como diversão da massa trabalhadora – primeiros espectadores e vigas humanas da construção da sociedade moderna, detentores de uma jornada exorbitante de mais de onze horas de trabalho, “batendo ponto às seis/sete da manhã e saindo às seis/sete da noite, quase não tendo a oportunidade de apreciar a luz do sol fora do serviço” (SKLAR, p. 14). Foi sob o estigma desta escuridão que o cinema se firmou como um pêndulo entre a ciência e o entretenimento: pausando, em seu viés dispositivo, como instrumento técnico que buscava entender o 'tempo' contido no 'movimento' e as características do 'movimento' em si, e assim o foram os experimentos fotográficos com animais e homens de Marey, Muybridge e Friese-Greene; e pausando, em seu viés produto a ser consumido, como entretenimento das classes mais baixas, se implantando inicialmente nos guetos de imigrantes, abrindo espaço entre os cabarés, botequins e sinucas, aparecendo na forma de passagens curtas e pornográficas apreciadas através dos nickelodeons, penny arcades ou nos teatros de vaudeville de bairros operários.
Empresários imigrantes deram com a ideia das penny arcades (centros de diversões em que cada dispositivo de entretenimento custa um pêni), providas de caça níqueis e outros jogos, visores de cartões de mutoscópio e talvez um filme por cinco centavos num canto separado do resto por uma cortina, nos fundos do armazém. Os filmes revelaram-se populares. Os níqueis (moedas de cinco centavos) davam mais lucro do que pennies. De modo que os mesmos homens de negócios empreendedores transformaram armazéns vazios em cinema. Chamavam-se nicolets em uma cidade, nickeldromes em outras, nickelodeons com mais freqüência nas demais. E assim nasceu um vasto público novo de cinema (SKLAR, 1978, p. 26)
Nada mais plausível que o cinema, cujo entendimento se dava essencialmente através da imagem, não da palavra, se tornasse diversão de imigrantes que não falavam e/ou entendiam bem o inglês. Sua popularização se construiu em função de uma demanda social específica, que cabia perfeitamente como veículo de sociabilidade entre indivíduos que se encontravam distantes de sua cidade natal e ocupavam as camadas mais baixas da sociedade. Foram, assim, seguidos padrões de produção e consumo inscritos “numa tradição de cultura não erudita, com base em espetáculos populares de entretenimento e diversão, vindo a coexistir e, muitas vezes, substituir as atrações mais antigas como o circo e o show de variedades” (XAVIER, 1978, p. 26). Sempre que se remonta aos primórdios da imagem em movimento, lembra-se da herança deixada pelos irmãos Lumièrre e pelo ilusionista George Meliès, os primeiros sendo apontados como precursores da representação documental, e o segundo como responsável pelo investida da película no mundo da ficção e do fantástico. Há, entretanto, uma terceira figura que interessa mais ao propósito deste trabalho, especialmente se quisermos entender a maneira pela qual o sistema cinematográfico passou de inarticulado ao status de mercado, se firmando cuidadosamente como um lazer padronizado e organizado para as massas (ROSELFELD, 2002). Seu nome: Thomas Edison.

Reconhecido não só por sua capacidade inventiva, mas por ser criador de entretenimento e empresário de mentalidade imperialista, Edison “zelava com cuidado sua imagem pública” (SKLAR, Idem, p. 49), era o “ícone definitivo do capitalismo empresarial” (JOHNSON, 2001, p. 151) e conseguiu reunir durante sua vida a incrível marca de mais de 1.903 patentes registradas em seu nome – algumas das quais que não foram invenções suas, mas de algum de seus assistentes. No final do século XIX, para além de inventor, ele era um empresário do ramo das invenções e o fazia em larga escala, procurando disponibilizar a maior variedade possível de objetos e atender a diferentes níveis de demanda. Aliás, Edison ficou famoso tanto por criar especulações sobre mercadorias não inventadas para desestimular a concorrência, como por falsificar datas de invenções para reivindicar um pioneirismo. Chegou a anunciar o cinema sonoro antes da virada do século XX.

Sua influência foi imensa: colocou seus funcionários em contato com Muybridge e Marey, conseguindo criar uma o kinetógrafo, câmera, e o kinetoscópio, um projetor capaz de lançar imagens em movimento pela duração máxima de 90 segundos. De fato, seus aparatos de registro e projeção não eram considerados de ponta, o cinematógrafo dos irmãos Lumièrre eram superiores na qualidade do registro e no tempo possível de exibição, pois conseguiam realizar projeções de uma bobina de quinze minutos. No entanto, Edison é reconhecidamente responsável pelo início de uma produção industrial vinculada ao cinema ao promover uma ampla distribuição de suas mercadorias em todo país (EUA). Em abril de 1884, os primeiros 10 kinetoscópios foram usados com propósitos comerciais e até 1900, data em que já estavam completamente ultrapassados, atingiram a marca de 1000. Apenas seis destes restaram até hoje.

Quando seu projetor estava completamente obsoleto e sem força de barganha no mercado de variedades, Edison lançou o vitascópio, uma invenção britânica com a qual teve contato numa de suas viagens pela Europa, mas que, nos Estados Unidos, passou a ser produzida por seus assistentes, teve o nome modificado e foi registrado como invenção sua. Uma das características mais importantes do modelo de negócios proposto pelo empresário era que ele solicitava e revisava pedidos de patentes sucessivamente negados até serem aceitos. Basicamente, se apropriava das invenções de estrangeiros, aproveitando que diversas câmeras e projetores começavam a ser produzidos em diferentes países. A partir daqui podemos vislumbrar sua importância. O passo seguinte era entrar, apoiado por tribunais federais, com processos judiciais contra seus competidores norte-americanos.

Desta forma na metade da primeira década do século XX praticamente todos os envolvidos no ramo cinematográfico estavam subordinados a sua empresa, tendo que pagar por qualquer uso de câmera ou projetor, relação que atingiu o ápice em dezembro de 1908, com a criação da Motion Pictures Patents Company, que agrupava todas as grandes empresas do ramo cinematográfico, tomando como eixo a Edison Trust (SKLAR, 1978). Pouco mais de dez anos após sua invenção, o cinema nos Estados Unidos estava encaixado numa lógica capital que unia de maneira monopolista a produção, distribuição e exibição de filmes em praticamente todo país. O domínio completo do circuito cinematográfico impulsionou o inventor a fazer incursões para outros países. Seu vitascópio, no Brasil, era conhecido como ‘cinematógrafo Edison’ e foi bastante popular em feiras, parques temáticos e circos do Rio de Janeiro e de São Paulo numa época em que, segundo Paulo Emílio Salles, o Brasil importava de tudo, de palito de fósforo a caixão funerário (1996).

De qualquer forma, mesmo diante um circuito cinematográfico abrangente ao ponto de não dar vazão a formas alternativas de economia cultural, indivíduos, especialmente em Nova York, passaram a organizar de maneira autônoma a produção, distribuição e exibição de filmes. Para tanto, usavam de qualquer galpão ou armazém, geralmente no subúrbio, como lugar de projeção e, na maioria dos casos, funcionavam de maneira mambembe, trocando sistematicamente de local, na tentativa de escapar da fiscalização em dois âmbitos. O primeiro com base jurídica, afinal se alguém fosse pego usando sem licença um dos dispositivos patenteados por Edison seria processado, o que se associava à dificuldade em conseguir filmes e do próprio risco de exibi-los. Edison não satisfeito em apenas copiar aparatos inventados por outros, também comprava regularmente filmes de cineastas europeus e lançava-os com crédito próprio no mercado nacional. Há registros de produtores/exibidores independentes que, sozinhos, foram processados 289 vezes em cinco anos (STAPLES, 1973).

Desta forma, se as primeiras salas clandestinas (‘poeiras’) eram invadidas pela polícia por conta da imoralidade dos filmes exibidos, geralmente nudez ou homossexualidade, a fiscalização passou a censurar e confiscar, para além de um sentido moral determinado pelo clero e pelos políticos, os indivíduos que não pagavam a patente ao suposto inventor dos equipamentos. Além da precariedade dos espaços, de uma insalubridade que afugentava a burguesia (MENOTTI, 2007), vivia-se sob o risco de uma batida policial, fazendo com que boa parte dos pequenos empresários desistisse da empreitada. Os endereços dos locais de exibição eram conseguidos pelas autoridades, graças a detetives e mulheres contratados por Edison para se passarem por espectadores ou prostitutas (STAPLES, 1973). Conseguia assim não só criar um clima de filme noir, mas rastrear toda movimentação cinematográfica no submundo das cidades.

Foi a partir dessa situação que os empresários entraram em diálogo com independentes de outras cidades, especialmente Chicago, para tentar montar uma rede de negócios paralela a de Thomas Edison. Simultaneamente, apesar de terem dificuldade em conseguir película virgem (a Eastman Kodak fazia parte do truste), começaram a também produzir seus próprios filmes e como para fazê-los teriam que pagar patente, adquiriram câmeras européias ainda não registradas nacionalmente para fugirem da fiscalização. Os resultados, entretanto, não foram satisfatórios. Uma solução encontrada por um grupo de produtores/exibidores subversivos foi usar equipamentos patenteados, mas usá-los em locações distantes – e nessa busca, a Califórnia se mostrou particularmente atraente por ter sol o ano inteiro, sem as instabilidades climáticas da Flórida ou Cuba, reunindo diferentes cenários: praias, desertos, montanhas. Além disso, Los Angeles e a costa oeste como um todo não sofria tanto com a influência do truste e recebia muitos trabalhadores imigrantes, não sindicalizados, o que criava condições aos produtores de contratar funcionários caracterizados como mão-de-obra barata (SKLAR, 1978).

Portanto, é nesse contexto de domínio e de uma ampla visão econômica do cinema que, entre 1910 e 1913, Hollywood, um distrito dentro de Los Angeles, passou a ser usado como estúdio a céu aberto até ser escolhido como destino definitivo.

Os grandes estúdios – que permanecem os mesmos grandes até hoje – foram fundados por um grupo composto de vários judeus provindos do leste europeu, cansados da disseminação do poder de fogo do monopólio. Entre eles, William Fox; os irmãos Harry, Albert, Sam e Jack Warner; Marcus Loew, Samuel Goldwyn e Louis B. Mayer. O negrito é proposital. Desta forma, se em Nova York esses indivíduos eram símbolos de resistência à opressão das patentes, realizando sessões clandestinas e se posicionando como pioneiros do confronto no circuito audiovisual; se fugiram como independentes, chegaram a Los Angeles não para continuarem a luta contra o truste e estabelecerem um modo alternativo para a indústria nascente, mas para fundarem um novo truste ainda mais poderoso que se apropriasse e ampliasse dos modelos instituídos. Hollywood se fortaleceu usando da repressão que estimulou seu nascimento para se expandir.

A preocupação primordial dos empresários, desde Nova York, era a de elevar o cinema para a classe média e se possível para as elites, sem perder a já conquistada classe operária com a qual possuíam um vínculo antigo, apostando assim na diversidade de produtos, variando na duração dos filmes (curtas, médias e longas) e investindo, seguindo os passos do teatro, na construção do que ficou conhecido anos mais tarde como star system. Não demorou muito até que Hollywood passasse a atrair todo tipo de gente, de magnatas a moças simples do interior, cada qual mais fascinado com a prosperidade do negócio cinematográfico. A Primeira Guerra Mundial foi essencial para a idealização dessa imagem, pois teve papel decisivo no processo de enraizamento dos filmes norte-americanos no mercado internacional. Não só porque o presidente Woodrow Wilson – o mesmo que desmembrou a Motion Pictures Patents Company cancelando suas patentes em 1914, acusando-a de impossibilitar a concorrência – já antevia que ‘onde chegassem os filmes norte-americanos, chegaria a cultura norte-americana’, mas porque o conflito rompeu os elos de dependência entre a Europa e os países periféricos, deixando o caminho mais favorável aos Estados Unidos.
As exportações de filmes norte-americanos subiram de 36 milhões de pés em 1915 para quase 159 milhões em 1916, ou seja, quase cinco vezes mais. Quando a guerra terminou, dizia-se que os Estados Unidos estavam produzindo, aproximadamente, 85% de todos os filmes exibidos no mundo e 98% das películas exibidas na América do Norte (SKLAR, Idem, p. 62-63).
O aumento considerável de capitais transformou o distrito de Hollywood completamente em dez anos, tornando-o um centro produtor organizado, detentor da técnica cinematográfica mais moderna e cujas vias de escoamento poderiam ser ditadas: nos EUA se espalharam os Movie Palaces, luxuosos espaços de exibição capazes de receber mais de 5.000 pagantes, e os países tiveram os seus papéis nitidamente repartidos, de forma que “a divisão entre exportadores e importadores de filmes adquire os contornos gerais de um sistema de relações comerciais, caracterizado pela dominação de um centro exportador sobre uma periferia importadora” (XAVIER, 1978, P. 27). A criação da Motion Pictures Producers and Distributors of America, em 1922, que mudaria de nome para Motion Picture Association of America (MPAA) seguida da instituição da censura moral pelo Código Hays foram decisivos no controle sobre o que poderiam tratar os filmes, sua conduta moral, a forma narrativa pelo qual as histórias deveriam ser contadas, os mercados a serem investidos, o tipo de investimento e até o tempo de duração das obras cinematográficas (em média 120 minutos). O sonho americano começava esboçar sua imagem.

O congregado de empresários que formavam Hollywood seguiu os passos de Edison, fazendo de seus negócios, o principal responsável pelo controle monopolista dos mercados, unindo o poder das grandes produtoras ao um amplo controle da distribuição mundial. Firmava-se, assim, uma dependência e uma distância entre os consumidores e os centros de produção, alastrando a poética-ideológica norte-americana sem deixar brechas para uma mudança nos rumos do audiovisual: “a impregnação do filme americano foi tão geral, ocupou tanto espaço na imaginação coletiva de ocupantes e ocupados, que adquiriu uma qualidade de coisa nossa na linha de que nada nos é estrangeiro, pois tudo o é” (SALLES, 1996, p.93). Portanto, seja pelos blockbusters tradicionais, seja pelos filmes-mundo, seja pelas películas estrategicamente pensadas em nichos, uma gama enorme de nações terminaram reduzidas
a ver dentro de si o enraizamento de um cinema importado e seus representantes, apenas levemente incomodados por uma produção local desprotegida, que atinge diferentes graus de desenvolvimento conforme a época e o país, mas fundamentalmente incapaz de lutar em igualdade de condições com grandes centros, mesmo no âmbito de seus próprios mercados internos (XAVIER, Idem).