quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Sinal

E fico pensando se a força humana usada pra fechar o bicho, proibir cigarro, fiscalizar bar fosse totalmente transformada pra ações, digamos, mais urgentes. Fiquei pensando nisso ontem, enquanto esperava um amigo no bompreço da rosa e silva. Observei por meia hora, por volta das 7 da noite, o sinal, onde uma menina de no máximo 5 anos vendia jujubas. Sinal vermelho e lá ia ela de carro em carro. Caminhonetes, carros de luxo e ela lá, pequenina, tentando vender e sendo totalmente ignorada sinal vermelho após sinal vermelho. Mal alcançava o vidro, de modo que tinha de ficar na frente dos veículos. Apenas algumas mulheres pedestres não a ignoravam e lhe doavam algumas moedas. Sentiam-se aliviadas e seguiam seus caminhos. Um senhor parado com uma carroça, possível pai, avô, chefe gritava com a menina a cada sinal vermelho em que ela se distraía: "O SINAL FECHOU, MENINA, VAI LOGO". Mas isso é só uma parte: comecei a observar o olhar fuderosamente triste dela, olhar que a deixava justamente distraída, recorrente quando passava uma criança de mãos dadas com a mãe. Putz... aquele olhar me destroçou. Acho que foi o olhar mais triste que já vi na minha vida. Fiquei com tanta raiva do mundo, tanta, tanta, que sem dúvida comecei a achar que o mínimo que nós recifenses de classe média e alta podemos ter, dentro dessa cidade, é medo da violência. Nós merecemos demais esse medo, uns assaltos nos sinais, nas ruas, uns tiros, tudo isso. Confirmo: é uma merda, merda, merda, mas é o mínimo.

Bicho

E agora quando eu sonhar com bicho o que eu faço?

Nesse ritmo de proibições semanais, vamos longe. ¬¬

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Governo britânico quer legalizar cópia de CD

do JC Online

Fonte: Diário do Grande ABC

"O governo britânico está pensando em legalizar as cópias de CDs em computadores pessoais, uma prática muito difundida atualmente, mas ainda ilegal no país, pois viola as leis sobre direitos autorais.

Segundo a agência Ansa, o subsecretário para Propriedades Intelectuais, Lord Triesman, disse à BBC que a lei deveria ser modificada "para estar em sintonia com os tempos atuais".

As associações da indústria fonográfica britânica, a principal, BPI, e a que reúne os selos independentes, a AIM, acolheram com cautela as propostas, que são alvo de uma consulta pública (estão sendo interrogados funcionários de vários setores e consumidores) até 8 de abril.

As mudanças serão aplicadas apenas a quem copia o CD para uso pessoal. Fazer mais cópias ou trocar arquivos pela Internet continuará sendo ilegal, assim como permitir a circulação da cópia original, ainda que seja impossível impedir esta circulação no meio privado.

A AIM observa, no entanto, que as propostas do governo não são muito inovadoras, já que os CDs poderiam se tornar obsoletos dentro de 10 anos".


Acho isso legal.


quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Smoking / No Smoking

Sempre que penso em parar de fumar, vejo uma dessas campanhas antitabagistas, esse conglomerado de ONGs caça níquel denunciando o ar poluído por fumantes, daí acontece que a primeira coisa que me dá vontade de fazer é acender um cigarro e soltar um monte de fumaça no ar.

Vamos só ver no que vai dar essa lei de ambientes livres do fumo.

Pra começar, podia dar prejuízo.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Brasileiro faz macaca mover robô usando apenas o pensamento

A manchete é engraçada, mas o fato é extraordinário: daqueles que dão a sensação de que o futuro é pra já. Todo o enfoque da matéria é relacionado ao uso de próteses, mas é claro o desenvolvimento dessa tecnologia não vai se restringir apenas a esse setor.

“Um pequeno passo para um robô e um grande salto para um primata”. Foi assim que o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis resumiu para o jornal americano “The New York Times” a pesquisa em que conseguiu fazer uma macaquinha nos Estados Unidos mover um robô do outro lado do mundo, no Japão, apenas com a força do pensamento.

O feito de Nicolelis traz esperança de uma revolução na área de próteses para amputados. E se conseguir isso foi complicado, o princípio da coisa é fácil de entender. Ninguém pensa antes de fazer coisas como andar, pular ou pegar um objeto. Quando você pegar o mouse para ler a continuação deste texto mais para baixo, não vai pensar “eu quero esticar o braço, pegar o mouse, movimentar meu dedo e apertar o botão”. O ato é tão automático quanto o pensamento. Você nem pensou e já fez.

É essa naturalidade que o brasileiro tenta repetir com as próteses. A idéia é que quem precise usar um braço ou uma perna artificial não tenha que “aprender”: pense em andar e ande.


Pela manchete podemos entender confusamente que o brasileiro fez a macaca se mexer pelo pensamento e então ela mexeu o robô.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Nerd

Putz... eu sou muito nerd: sonhei hoje que era um mutante perdido com outros X-men numa ilha dos dinossauros (que funcionava meio como uma ilha de extermínio de mutantes montada pelo Governo ho-ho-ho). Meu poder era de ficar invisível, mas os dinossauros carnívoros conseguiam sentir o meu cheiro o que tornava tudo mais animado. Ai ai... no início, tinha uns humanos sem poderes misturados aí todo mundo ficava no maior desespero, com nojo ou, quando mutante, usando os poderes para matar os pobres dinos. Nem preciso dizer que eu achava os dinossauros a coisa mais linda do mundo, que morreria com maior prazer e dignidade sendo comido por um deles - preciso ressaltar que quando tinha 6/7 anos, eu queria ser paleontólogo e cheguei a pedir de presente uma viagem pra áreas de escavação. o_O

O mutante que era meu melhor amigo era o vilão (que na verdade, não era vilão coisa nenhuma) que cansava dos mutantes, por causa da violência excessiva para se 'proteger' e se transformava num Spinossauro e ia viver com os dinossauros. Achei que era uma referência direta a mário.

No meio do sonho eu já tinha me tornado uma espécie de ecologista, 'salvem os dinossauros desses mutantes loucos' e ficava dando pequenos golpes nos X-men pra me vingar por cada morte. Criava intrigas ou situações estranhas - poder ficar invisível é muito legal. Mas, não deu muito certo: a ilha de extermínio de mutantes virou a ilha de extermínio de dinossauros.

Acordei com uma só conclusão: definitivamente os homens não sabem conviver em harmonia com seus vizinhos. Sejam eles árabes, judeus ou dinossauros.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Eu.doc

Santiago (2007), de João Moreira Salles

(Publicado originalmente no Dissenso)

Esse texto pode até soar inicialmente como uma mera cordialidade barata entre um pretenso jovem crítico e um documentarista brasileiro burguês, mas aviso de antemão, que pouco me importo com essas desconfianças primárias. Mesmo se fôssemos amigos (eu e o João Moreira Salles – o que não é o caso), procuraria não fazer diferença, sabendo dos riscos e falhas, entre falar bem, mal ou bem e mal simultaneamente. Além disso, o juízo de valor nesse molde maniqueísta teria pouca importância em uma crítica-crônica, que desde o princípio assumisse e destrinchasse alguns laços de amizade. Entre pontuar uma série de desgostos e não falar, prefiro ultimamente – e só ultimamente – não falar: nesses casos, acredito que o silêncio carrega a crueldade necessária. É uma pena que os críticos vinculados às ‘sérias’ empresas de comunicação não possuam essa mesma possibilidade de escolha, já que não decidem sobre quais obras irão se debruçar e sobre quais irão se omitir: apenas se dividem entre os lançamentos de uma lista pré-definida semana após semana. Alguns até se esforçam, mas nem sempre é fácil produzir meia dúzia de palavras anuais sobre a Xuxa sem cair pelo menos uma vez no chulo. Pensando assim, tenho que também admitir de antemão e com a maior cara lavada possível que é muito prazeroso falar sobre o que se quer, dentro dos moldes quaisquer, podendo seguir sem pudores percursos mil. Sei que essa liberdade tende a não durar para sempre, a universidade nos lembra disso diariamente, mas, por ora e aproveitando o momento, a crítica se desvincula do ranço da obrigação, se assentando plenamente como um ato de criação.

Convenhamos que essa escrita (ou escritura) não se fundamenta apenas sob a sombra de um prazer narcisista, mas a partir do estabelecimento de uma rede que une sem tensões conhecimento, produtividade, densidade e reconforto. A vontade de falar ou de escrever depois do impacto de uma obra se torna um processo de autoconhecimento e autoconsciência, para além de uma resposta natural diante da experiência estética (e também como uma resposta natural). Quando somos honestos em nossas produções, podemos discutir qualquer assunto através de qualquer meio, enquanto implicitamente falamos também sobre nós mesmos. Não há como fugir completamente disso, apesar dos disfarces que se multiplicam todos os dias. Em Santiago (Brasil, 2007) o documentarista burguês em crise de meia-idade traz o mordomo para frente, revisita a mansão da infância (hoje o Instituto Moreira Salles), cai na nostalgia e devassa o seu longa fracassado ao mesmo tempo em que versa sobre si, com uma franqueza desconcertante. Decidido a se expor, o criador entra de cabeça na aventura: não hesita em mostrar como uma busca formalista se metamorfoseia em autoritarismo, em agressividade, em falta de tato. Havia um filme a ser feito e por pouco ele não fora concluído de forma completamente equivocada. João Moreira olha para si e faz de sua falha arrogante o seu às de copas.

Muitos se incomodam com essa voz pessoal (escrita por João e narrada por Fernando, seu irmão) que se impõe de maneira tão clara e tão diretamente ao espectador. Eu não me incomodo nem um pouco. Pelo contrário: esse é o tipo de produção que, a priori, se aproxima de minhas intenções de estilo. Santiago está entre os três filmes que mais me impressionaram nesse último ano (2007 – dentro das produções lançadas originalmente nesse mesmo ano). Não por acaso assisti duas sessões sem intervalos num Cinema da Fundação vazio vazio: percebi de imediato o quão esse documentário funcionava como referência dentro do que estava pensando e desenvolvendo em relação à crítica. Quem mais poderia ter realizado esse filme senão o próprio João Moreira Salles? Apenas outro Moreira Salles chegaria próximo e apenas próximo. Afinal de contas não estamos falando simplesmente de um obra assinada, tal como se idealiza na política de autores, mas de uma produção pessoal, subjetiva e irretocável. Como uma marca de infância que nos acompanha em toda vida. João Moreira aparece na tela apenas uma única vez, entretanto, sua efígie demarca ocultamente toda trajetória narrativa. Espero que possamos fazer um paralelo. Imagino, inclusive, que depois de seis textos publicados, já seja possível identificar uma voz, a minha voz, dentro de tudo que escrevo.

Seguindo adiante é preciso lembrar que numa época em que as narrativas críticas estão se uniformizando aceleradamente, sendo constituídas de um banco estático e compartilhado de referências, nada mais necessário que resgatar o poder da inventividade e da experiência particular, a partir do próprio cinema. Às vezes, os críticos estão tão preocupados em explicações e descrições que perdem esses detalhes sutis, mas cruciais se funcionarem como metáforas dentro de suas próprias práticas. Temos que saber o que nos diferencia: se são as pequenas percepções, os momentos cotidianos despercebidos, as piadas desmedidas ou os olhares desencontrados. Temos que saber o que nos diferencia para sabermos o que nos pertence. Receoso com a resposta do público ao seu filme, João Moreira Salles chegou a pensar que sua obra não iria interessar a ninguém, que sequer deveria ter um lançamento comercial (a mesma preocupação pontuada pelos críticos em relação a O espelho, de Andrei Tarkovski). Mas o documentarista burguês de meia idade e em crise deixa a mostra, numa entrevista da Bravo, os argumentos para se defender de seus próprios temores ao ler uma frase do cineasta francês Chris Marker: “O uso da primeira pessoa num filme equivale a um ato de humildade. Tudo o que tenho a oferecer sou eu mesmo”. Nada mais justo.

O documentário (a crítica e toda obra artística) me parece mais intensa quando fecundadas a partir de uma posição pessoal do autor – uma posição chamada de criativa pelo roteirista, scriptdoctor e amigo argentino Gualberto Ferrari – encontrando uma harmonia entre uma busca estética e uma busca temática, casando as duas possibilidades, sem abdicar de nenhuma delas. E principalmente, sem abdicar de si mesmo: todo preconceito diante da pessoalidade precisa ser desfeito. Não podemos nos amedrontar diante das regras que limitam a criação, seja literária, cinematográfica, pouco importa, afinal, como resgata André di Tella, em sua conferência publicada no livro Cinema do Real, a partir de uma lembrança do escritor polonês Witold Gombrowicz “a palavra ‘eu’ é tão fundamental e primordial, tão plena da realidade mais palpável – e em conseqüência disso a mais honesta – tão infalível como guia e tão severa como critério, que em lugar de desprezá-la, deveríamos cair de joelhos perante ela” (Mourão, Labaki, 2005, p. 70). Novamente me atrevo: nada mais justo.

Infelizmente, poucos seguem essa linha. É preciso deixar claro que estou falando de algo muito diferente do que o Michael Moore faz: não é se usar de personagem para fazer discurso político. Não façamos confusão: meus argumentos estariam mais próximos de trabalhos como Zelig (EUA, 1983), de Woody Allen e F for Fake (França / Irã / Alemanha), de Orson Welles. Às vezes me parece que vários documentaristas (e pior, muitos dos quais iniciantes) concebem o gênero do documentário como cinematograficamente fechado, repetitivo até, e enquadrado dentro de certo formato pouco variável, que segue tais e tais regras e pretende atingir tais e tais objetivos. Partem do princípio “o documentário a serviço de…” de forma muito radical. Engraçado que uma instituição como a Fundação Joaquim Nabuco desenvolve discussões extremamente contemporâneas sobre a linguagem do documentário, enquanto realiza na prática as produções mais corretas, certas e caretas que vi nos últimos tempos. Ter trabalhado lá me alertou para essa contradição: é quase como se o discurso não conseguisse encontrar o ato produtivo, por este último estar viciado em amarras estéticas invisíveis, necessariamente ultradidáticas, impossibilitando a diluição das fronteiras do gênero. Essa obrigação de usar a arte como processo educativo baseado num ideal pedagógico acadêmico (e geralmente ultrapassado) só tende a criar mais algemas para essa expressão já tão moldada. Texeira Coelho defendeu numa palestra em São Paulo que a escolha desse caminho tendia a domesticar o processo criativo, acrescentando-lhe objetivos a priori inexistentes.

Há um pouco de exagero nessas palavras, afinal apenas uma parte da produção cinematográfica se finca nesse controlador estímulo produtivo, o suficiente para fazer com que os vídeos documentais realmente surjam no inconsciente coletivo, como uma expressão artística que segue, mais ou menos, um mesmo caminho estrutural: depoimentos diretos, câmera parada, imagens da cidade. Na verdade, essa opinião fechada é bem clichê e superficial. Os documentários convencionais costumam se sustentar numa trinca temática, seguindo estruturas corriqueiras de depoimento, ao tratar de uma personalidade ou anônimo atípico, um lugar exótico, manifestação artística incomum ou um fato especifico na linha histórica. Como diz o próprio Moreira Salles, os documentaristas “retratam mundos alheios, o sertão, a favela, a periferia ” enquanto sugere que “olhar para si é mais complicado não como desafio estético, mas como desafio existencial”. A alteridade se torna fetiche em documentários dos pequenos burgueses que vão a favela, que vão ao sertão, que vão até a pobreza: numa época em que se discute a necessidade das comunidades construírem sua própria representação social, essa idéia de documentário do homem que vem de fora me parece muito retrógrada. E hipócrita. O Brasil parece gostar desse impulso há 500 anos.

Sem dúvida, a experiência de Santiago se aproxima bastante do meu discurso no desenvolvimento desse projeto, pois essa obra não se resume apenas ao retrato de um mordomo exótico, nem apenas a um desenho metalingüístico dos bastidores da arte cinematográfica. Funciona como uma reflexão de um João Moreira Salles sobre outro João Moreira Salles. O homem que narra diante da própria infância, que narra diante das lembranças, que narra diante das imagens. Ele revela sobre si, enquanto fala sobre outros temas: e se engana quem acha que isso tudo não passa de uma egotrip vazia. Sinto-me particularmente atraído tanto pelo documentário de busca, quando o cineasta inicia um projeto sem saber que trajetória vai seguir e que objetivos alcançar, como por essa tendência do documentário falso, do documentário pessoal que resolve mostrar justamente as imagens, que todo documentarista convencional tenta esconder ou apagar dentro de uma sala de edição. Godard fazia o mesmo em suas ficções. O João Moreira Salles 13 anos mais velho resolve revelar as intervenções que o João Moreira Salles 13 anos mais novo faz agressivamente e num tom autoritário para que o personagem Santiago se comporte e fale exatamente o que ele, enquanto documentarista procura. As relações entre chefe e mordomo não foram apagadas,apenas camufladas.

Podemos transferir essa autocrítica direcionando o foco de reflexão para todo documentário: já presenciei várias produções e vários documentaristas se comportam de forma idêntica ao João Moreira Salles 13 anos mais novo. Sempre detestei os filmes extremamente didáticos, que não se utilizam de recursos estéticos próprios do cinema e que se resumem a uma série de entrevistas entrecortadas, todas sob o mesmo enquadramento. Parece jornalismo e isso me assusta. Além disso, os personagens se produzem em outros personagens para falar de si mesmos. Não falo de uma encenação como proposta, mas, por exemplo, quando um mendigo se arruma todo para falar da vida de um mendigo que apesar de ser ele, naquele momento exato, não parece ser ele. Isso se dá geralmente sem autoconsciência e não como proposta. Infelizmente, essa é a linha que a maioria dos documentaristas pernambucanos segue e o estilo que a maioria dos espectadores está acostumada a ver (daí a idéia de gênero limitado). Não se determina o olhar. O cineasta também precisa ser um provocador e não apenas o apaziguador simpático que quer que tudo corra da melhor maneira possível. De repente, a pior maneira é a melhor maneira. E como de costume, abrindo uma digressão é preciso registrar que o único documentário da última edição do Festival de Vídeo de Recife (2007) que se aprofunda na direção de uma liberdade criativa, sendo conduzida conscientemente pelo diretor foi Morro, de Gabriel Mascaro. E por favor, não achem que agora estou formando uma cordialidade barata entre o pretenso jovem crítico e o jovem cineasta em ascensão. Afinal, ao falar dele, estou falando simultaneamente de todos os outros inscritos no sentido contrário. O filme de Gabriel tem imagens belíssimas de objetos singelos e banais, que soam novos até por quem conhece a festa do Morro da Conceição, além de não possuir nenhum depoimento direto para câmera. Essa produção destoou imensamente de todas as outras. O nível estava realmente muito baixo: e como já disse, prefiro não falar.

Por fim, podemos traçar algumas comparações. De fato, só me interesso pelos documentários que fogem do lugar comum, porque os que seguem todas as linhas corretas terminam parecendo reportagens especiais de jornais televisivos. Engraçado que mesmo os projetos que se debruçam sobre uma personalidade ou anônimo atípico – como o próprio João Moreira fez, ou que investigam um lugar paradisíaco ou manifestação artística incomum podem fazê-lo de uma maneira menos objetiva (ou quase impositiva em alguns casos), mas sim, seguindo um caminho emocionalmente mais livre, assumindo o caráter autoral que esse gênero possui, ainda que muitos tentem mascará-lo. Há um ponto de vista do diretor em seu filme, isso é fato, seja esse filme um documentário ou uma ficção. O mito de que trabalhar com documentário é trabalhar com a realidade objetiva precisa ser desfeito. Pensar assim é seguir o mesmo caminho da objetividade / imparcialidade utópica que o jornalismo tediosamente busca e que eu simpaticamente (sic) refuto desde a primeira linha desse trabalho. Por pouco, não me tornei um pouco chulo também. Nada como senso de humor guardado ao lado dos chicletes.

A edição ou montagem, a exclusão e inserção de depoimentos ou até o estudo dos planos podem parecer escolhas simplesmente ingênuas, mas não o são – e também não sejamos ingênuos, metade dos escritos sobre documentário tocam nesse assunto. Todas as escolhas carregam mesmo nas entrelinhas, uma bagagem cultural e estética de quem as produziu. Então se tudo é uma questão de escolhas, porque não fazê-las de modo dissonante, consciente e provocador? Documentário não é realidade, é um ‘olhar’ sobre a realidade, é um discurso que se apresenta, uma interpretação, um desafio lançado por alguém. Acho interessante a brincadeira muito séria de Magritte (contada por 9 entre 10 professores e ainda reprisada aqui): quando pintou o quadro de um cachimbo e escreveu sob ele: “isto não é um cachimbo”. Atualmente deveríamos nos me perguntar: e quem diria o contrário? Mas parece que não aprendemos nada nesse meio tempo. A maioria diria o contrário.

Santiago Brasil, 2007. Direção e Roteiro: João Moreira Salles. Narração: Fernando Moreira Salles. Fotografia: Walter Carvalho. Edição: Eduardo Escorel e Lívia Serpa. Entrevistado: Santiago. 80 minutos.

Para baixar: Santiago

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Projetos literários premiados



Dois jovens pernambucanos ganham bolsas nacionais: uma para escrever um livro, outra para pesquisa acadêmica

Schneider Carpeggiani
carpeggiani@gmail.com

Talles Colatino
tcolatino@jc.com.br

Pernambuco foi destaque em dois concursos que procuram reter a literatura contemporânea por dois ângulos distintos, mas que se complementam: o de quem produz ficção, o de quem analisa essa produção. O estudante de jornalismo Rodrigo Almeida, de 22 anos, foi um dos vencedores da 3ª edição do Rumos Literatura do Itaú Cultural, com o projeto Processos Multimidiáticos de Colaboração e Interatividade na Crítica Literária Brasileira Contemporânea: Um Estudo de Caso do Site Overmundo. O Overmundo é um endereço online participativo – onde os internautas constroem o seu conteúdo, ressaltando a máxima de quem nenhum texto é isolado em si mesmo.

A também estudante de jornalismo Julya Vasconcelos, 23 anos, foi vencedora de uma das bolsas da Funarte de estímulo à criação literária, para desenvolver um livro, no valor de R$ 30 mil. A cada ano, a Funarte distribui 10 bolsas para candidatos de todo o Brasil. Na lista de vencedores, faz parte nomes consagrados como o poeta gaúcho Fabrício Carpinejar. Seu projeto é Agudo como mordida, que tem de ficar pronto até julho deste ano.

Enquanto os concursos literários premiam a obra final, a Funarte estimula o necessário “rascunho”. “É uma bolsa de estímulo, não uma premiação para uma obra já realizada. Então, dez projetos de livros com trechos já produzidos – e não livros finalizados – foram selecionados para que os autores pudessem escrever a obra. Acho uma iniciativa fantástica, porque é difícil ter a possibilidade de ser patrocinado para escrever. No geral, os autores passam por maus bocados para conseguir finalizar um livro”, afirma Julya.

Essa é daquelas autoras para quem rótulo é perda de tempo. Seu texto trafega por inúmeros gêneros, com vários disfarces. “O livro (Agudo como mordida) é uma coletânea de poemas, mini-contos e pequenos textos organizados em três capítulos, mais estéticos que temáticos. O primeiro aglutina poemas e pequenas narrativas amarradas por um clima de auto-revelação, todos em primeira pessoa. O segundo é um amálgama de pequeníssimos textos, exercícios de micropercepção que chamo Na dose certa para não matar os cavalos. O terceiro é dedicado a três personagens: Tereza, Silvia e Rita”, explica.

Julya faz parte de uma geração que encontrou o futuro do romance mais uma vez sendo questionado. Não que poucas narrativas longas sejam lançadas, mas qual o valor delas num mundo onde a fragmentação é cada vez fala mais alto? “Eu concordo que os textos fragmentados são tendência natural do nosso tempo. Só não concordo com uma certa visão fatalista e lamentosa disso. E acho que a tendência do romance é de decadência, sim. Há muito tempo se fala sobre isso. Mas também acredito numa posterior renovação, por que não? As coisas estão em eterna mutação e acredito que podem conviver e renascer”.

RUMOS

O programa Itaú Cultural: Rumos Literatura divulgou, no final do ano passado, os selecionados na categoria Literatura. O projeto, na categoria crítica literária (ambição de muitos estudiosos, por garantir um apoio financeiro e acadêmico para projetos de pesquisa), contemplou apenas um pernambucano. E engana-se quem pensa se tratar de um doutor em letras ou ao menos um graduando na área. Rodrigo Almeida tem apenas 22 anos, está terminando o curso de jornalismo e foi classificado com um trabalho bem inusitado sobre os processos interativos numa crítica literária atípica: a publicada no site colaborativo Overmundo.

O Overmundo permite que qualquer internauta ajude na construção do seu conteúdo, aprimorando o processo de circulação da informação. “Basicamente, meu ensaio pretende investigar as metamorfoses acontecidas – e que ainda estão em andamento – nas críticas literárias publicadas na internet, as diferenciando inclusive das publicadas em mídia impressa, tomando como objeto central de estudo o Overmundo”, explica Rodrigo, assumidademente fã de tecnologia, literatura e cinema. “No caso do Overmundo, além da palavra escrita propriamente dita, o colaborador pode complementar a crítica literária com fotos, vídeos, flash-art, arquivos de áudio, toda uma gama de recursos que são bem limitadas na mídia impressa. Não existe um formato pré-estabelecido para a crítica literária: ela se mistura, flerta com outros gêneros, torna-se outra”, complementa. O desafio de Rodrigo nesse trabalho é justamente fazer um paralelo entre o tratamento que a crítica literária recebe nas mídias ditas tradicionais e nos novos campos midiáticos. “Pretendo me focar na abertura que o mundo online dá a criação e divulgação do trabalho crítico”.

Em novembro passado, o programa realizou um colóquio entre todos os selecionados, para uma apresentação do mapeamento dos trabalhos inscritos. No encontro, a experiência de trocar idéias sobre o seu trabalho e o dos outros garantiu ao jovem pesquisador uma certeza maior da consistência do seu projeto. “Dentro do colóquio, achei que o meu projeto foi um dos mais contemplados tematicamente. Rolou uma oficina de literatura não-linear e todas as discussões sobre crítica literária contemporânea terminavam enveredando para o lado da tecnologia”. Para tal realização, o Itaú Cultural garante uma bolsa mensal de R$ 850 e R$ 400 em livros para o desenvolvimento do projeto, além do prêmio de R$ 1.800 pela publicação do texto.

Rodrigo termina a graduação esse mês, apresentando seu site de crítica crítica de cinema, o Dissenso (www.dissenso.wordpress.com), como o projeto de conclusão de curso. E uma nova etapa termina para que outra comece logo mais: ele acabou de ser selecionado no mestrado em comunicação da UFPE. ”Estou me formando agora em janeiro e em março já começo o mestrado. Tenho, sim, pretensão em seguir carreira acadêmica, mas o que quero mesmo é assumir um caminho interdisciplinar que envolva cinema, comunicação e literatura”, confessa.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

A palavra neutra 3x

Jules e Jim (1961), de François Truffaut

(Publicado originalmente no Dissenso)

Numa primeira visão desatenciosa, presa a uma mera busca vanguardista (o que era – é? – determinante no meu olhar durante minhas incursões pelo cinema da década de 60), não me parece muito difícil achar, atualmente, Jules e Jim (França, 1962), de François Truffaut um filme bobo. Talvez bobo até demais. Também não me parece muito difícil ainda no ritmo desse primeiro lampejo, refletir como a fortuna crítica dessa produção - elogiada repetidamente desde seu lançamento até hoje – soa um tanto excessiva, deslumbrada. As contemporâneas me parecem ainda mais idiotas cheias de repetições e repetições como se ainda estivessem em 1961. Afe Maria, como diria minha avó. Se formos ser sensatos e estabelecermos uma comparação próxima, o trabalho do cineasta francês se mostra pouco ousado diante do cinema que era produzido por seus contemporâneos (de Nouvelle Vague ou de não-Nouvelle Vague). E não tenho como negar que desde sempre me acostumei a preferir Godard à Truffaut, Resnais à Truffaut, Bresson à Truffaut mantendo uma imensa dívida por não conhecer melhor os cinemas de Eric Rohmer, Claude Chabrol e Jacques Rivette para poder seguir com a lista ou diminuí-la vertiginosamente. Para mim, o próprio Truffaut-crítico se destaca diante do Truffaut-cineasta.

Nunca disfarcei uma antipatia enorme pela simpatia enorme de François; sempre o considerei extremamente conservador e monotemático, tomando como parâmetro a diversidade e a ousadia das produções e opiniões de Godard. Não à toa o primeiro freqüentou razoavelmente o gosto do público, chegou até ser premiado com um Oscar com A Noite Americana (1973), enquanto o segundo, vez ou outra, caía na total indiferença, sendo inclusive referenciado como “o mais célebre dos esquecidos” pela revista Bravo. De fato, o exercício de linguagem em Jules e Jim se mostra uma tolice diante de uma obra-enigma como O Ano Passado em Marienbad, de Resnais, assim como simplório diante da liberdade criativa impressa nos formalismos, brincadeiras, metalinguagens e sarcasmos de qualquer filme de Godard. E não podemos nos esquecer, antes de tudo, que Truffaut e Bresson definitivamente não compartilham do mesmo preceito sobre a inocência: enquanto François a acolhe carinhosamente em seus braços, Robert a joga desnuda e sem defesas no mundo. Cada cineasta desenha o seu próprio caminho apesar do velho costume de colocá-los em um único pacote carimbado “nouvelle vague for the world”. Estou numa fase em defesa das individualidades construtoras de um coletivo fragmentado e entupido de contradições internas, em oposição ao coletivo centrado que minimiza os desvios pessoais em favor da rigidez de sua própria estrutura. É o que sinto enquanto espírito do meu tempo.

Essas primeiras palavras sobre Jules e Jim se deram também como resposta natural – obviamente não só isso – à maneira apressada, ansiosa ao qual me debrucei sobre o filme, graças ao meu desejo em revelar logo o mito-obra-prima de Truffaut tão falado, tão escrito, tão devotado cujo meu interesse não conseguia mais esperar. Depois de visto, continuou o mito. Terminei vendo no computador, antes mesmo do lançamento em DVD, com legendas traduzidas do espanhol por mim mesmo. No final de todo trabalho (em especial do longo e detestável processo de sincronização) Jules e Jim me pareceu apenas uma película extremamente normal, o relato de uma história extremamente qualquer, sem humor refinado ou incursões experimentais para lado algum: nem estético, nem no uso literário, nada. Sequer o possível confronto moral tão pontuado conseguiu resistir a todos esses anos. Uma decepção repentina me abateu e teve sim como uma das causas esse processo de desmistificação ao qual me submeti – essa coisa de traduzir, ver pedaços soltos para sincronizar, fazer revisões ortográficas tornou a sessão propriamente dita, um espetáculo tedioso. Antes das imagens, já tinha o texto todo na cabeça e confesso que imaginava tudo de uma maneira bem diferente.

Não faltaram queixas momentâneas: Jeanne Moreau não é tão atraente, nem tão charmosa quanto Anna Karina; sua personagem, Catherine, não é tão doce e sensual quanto as da mulher de Godard. Jim não é um amante vigoroso como o japonês de Hiroshima, Mon Amour e assim como Jules nunca entenderia a arte da pura malícia do Michel, de Acossado (França, 1960), de Jean-Luc Godard (e ironicamente roteiro de Truffaut) e do Michel, de Pickpocket – Batedor de Carteiras (França, 1959), de Robert Bresson (personagens que deveriam ter dado umas voltas juntos pelos subúrbios de Paris). É engraçado que minha aversão pelo filme colocou o exímio diretor de fotografia, Raoul Coutard, como deveras convencional, apesar de que já conhecer seus trabalhos com Godard e estes se firmarem em mim como deveras experimental. Mesmo diante desse compartilhamento, sugerir uma semelhança aos resultados estéticos seria uma nova tolice: Os incompreendidos, Atire no Pianista, Jules e Jim, Antoine y Collete (todos de Truffaut) mantém uma linha sóbria entre si muito mais consistente do que consegue estabelecer com Acossado, O Pequeno Soldado, Tempo de Guerra, Une Femme est une Femme, Viver a Vida e O Desprezo. Sem contar que internamente em seu conjunto Godard é muito mais versátil. Pois é sobrava antipatia pelo queridinho francês… precisava passar horas falando mal até estar perigosamente limpo para uma nova sessão.

Em todos os sentidos, o filme me soava menor ou pior se posto de frente aos seus próximos: como já disse, anteriormente, pode ser muito precipitado chamar de ’seus próximos’, afinal uma aproximação geográfica pode nos contextualizar diante de um momento histórico, mas não justificar a estética de cada cineasta. E não há como constituir uma regra quanto a isso. Truffaut trabalha a inocência de uma maneira muito lírica e bela, envolvendo suas personagens de uma aura pura, esperando que nos identifiquemos com sua felicidade e bondade: sem dúvida, isso era o que mais me irritava. Detesto esse complexo “A Vida é Bela”. Godard também se apropria da inocência, mas por outro lado termina tripudiando dela, tornando-a patética e saco de ironias. Isso fica muito claro em Tempo de Guerra (França, 1963) e Viver a Vida (França, 1962). Há um pessimismo cheio de humor intrigante que me fascina. Ok, também não se enganem tão rápido: essas são conclusões cruelmente apressadas pelo lado de Truffaut, pois estamos apenas no começo. E desatenciosos. Não quanto a Godard.


Só a possibilidade de assistir um filme pela segunda vez – experiência geralmente negada à maioria dos críticos – traz consigo a capacidade de colocarmos em diálogo duas impressões sobre a mesma obra, constatadas e refletidas em momentos diferentes, criando um fundamento maior de crítica e autocrítica. Além disso, há a facilidade de desde o primeiro segundo já sabermos tudo (ou aparentemente tudo), sem nos esquecer de toda maneira, como pontua Jacques Aumont no livro A Estética do Filme que “quando se fala de um filme, fala-se da lembrança do filme, lembrança já re-elaborada, que foi objeto de uma reconstrução” (Aumont, 1995, p. 265-66). Acho que essa reconstrução é permanente. Se por um lado não há tantas surpresas (e ainda há), por outro se entende melhor as personagens, seus gestos e pensamentos desde o início – afinal já presenciamos os desdobramentos dos atos ou as premissas que geraram tais atos (no caso de uma história ser contada em flashback). Desenvolve-se uma noção precoce e confortável de conjunto da obra, onde as impressões primárias do não-conjunto passam a ser questionadas.

Nesse sentido, não foi preciso esperar muito até re-visitar o filme em debate. Truffaut logo deu as cartas. Ao final dessa nova sessão, onde não por acaso já me encontrava contextualizado e de bom humor, foi possível traçar um paralelo entre um pensamento particular de Jules sobre Catherine e a minha nova opinião sobre o filme: “Ela não é especialmente bonita, nem inteligente, nem sincera. Mas é uma mulher de verdade e é essa mulher que amamos e todos os homens desejam“. Se na primeira instância nada, nenhum ponto específico chamou a minha atenção excessivamente, a partir de agora parece óbvio perceber (e sentir) o turbilhão de detalhes e histórias e sentimentos agregados à película. Até tecnicamente o filme se tornou mais ousado: seja pela edição rápida e estranha que acelera o fluxo da história repentinamente para desacelerar em seguida, seja pelas imagens congeladas de expressões essenciais das personagens. Catherine mostra como costumava ser rancorosa e como naquele exato momento estava alegre – 1 segundo, 2, 3 – ou o olhar de reencontro no pós-Guerra entre Jules e Jim que lutavam em lados opostos – 1 segundo, 2, 3. Um frame que permanece.

É inusitado que só então percebi o quanto Godard e Resnais estampam suas marcas desde o primeiro segundo de seus filmes, deixando muito claro o intuito de suas práticas de cinema, enquanto Truffuat (e mesmo Bresson) permanecem calmos, desenhando sem pressa seus quadros e expondo, delicadamente, suas idéias. Tudo num ritmo muito mais sutil e cheio de vida (‘vida’ – a tal palavra neutra em alemão). Isso me fez lembrar uma frase do Cristian Metz, presente no livro Introdução à Teoria do Cinema, de Robert Stam: “filmes totalmente desconstrutivos exigem uma transferência libidinal em que as satisfações tradicionais são substituídas pelos prazeres do domínio intelectual, por um sadismo do conhecimento. O prazer do brinquedo transforma-se no prazer de quebrar o brinquedo” (grifos meus – Stam, 2003, p. 173). Esse pensamento me trouxe uma idéia de autocrítica imensa: as razões que justificavam o meu gosto pela obra de um e o não-gosto na obra do outro passavam a não ter uma diferença bem definida, pois eu simplesmente tinha trocado o gosto do brinquedo (Truffaut), pelo prazer de quebrar o brinquedo (Godard).

Óbvio que não passaram três dias até eu considerar essa idéia precipitada, apesar de valer como mote de reflexão sobre a validade de qualquer processo desconstrucionista. Fica um pouco mais fácil diferenciar a desconstrução parnasiana da desconstrução reflexiva: torna-se essencial questioná-las repetidamente para saber o que sobra além do exercício formal ou do impacto pelo impacto. Por outro lado, comecei a enxergar que nem todo trabalho linear e narrativamente correto demais devia ser taxado de antemão com desprezo. Isso sem dúvida redirecionou o meu olhar sobre Jules e Jim: nunca mais ia considerá-lo um filme bobo, nem uma mera tolice superestimada. Finalmente começava a me dar conta da força artística do que estava diante de mim. Mas nem tudo mudou fantasiosamente: continuava preferindo Godard à Truffaut, Resnais à Truffaut, Bresson à Truffaut ao mesmo tempo em que já começava a achar meio idiota, quando essas comparações se tornavam uma predisposição diante dos filmes ainda não vistos (ansiedade positiva e apaixonada para um Godard, negatividade dos infernos e antipatia à um Truffaut). Essa pré-disposição é difícil de controlar e assim o sendo o crítico-François continuava superando o cineasta-François.


Nessa segunda visão, depois de todo debate existencial anterior, passei a perceber o ritmo simbólico ao qual Truffaut submeteu seus personagens, colocando cada sentimento em seu devido lugar, criando um enlace incorruptível entre eles. Jules e Jim não se resume a uma única história, mas várias e várias e várias. Truffaut utiliza pequenos contos aparte do eixo central e põe suas crias ficcionais para contá-las e contá-las. Assim como o narrador conta a história do próprio filme. E nada melhor do que descobrir a personalidade de alguém, a partir das histórias que ela expõe. Não só o teor da história, não só a lembrança por si só, mas o modo de encadear as palavras, a expressão ao falar ou mesmo a opinião implícita no porquê daquela determinada história naquele determinado momento. São fábulas incríveis contadas por personagens incríveis. No filme, também não demora muito até que o comportamento dos três esteja conjugado ao ponto de se tornarem partes de um movimento único, por mais que ostentem visivelmente diferenças enormes. Os diálogos agradecem e a juventude logo se identifica.

Durante o caminho de reflexão terminei entrando num questionamento ainda mais profundo: passei a acreditar que se identificar com a inocência é muito mais complicado do que com a não-inocência. É um movimento que despe o espectador de uma série de defesas pessoais e naturais: é mais confortável se mostrar firme, que frágil; mais fácil se entregar ao menos para mim ao extremo do sarcasmo, que ao extremo da ternura. Devíamos conseguir bailar entre essas diferenças sem pudores, criando um ambiente neutro, como a ‘vida’ em alemão. Jim e Catherine conseguiram bailar, mas não pararam. Vaguearam sem pudor ao mais fundo do amor e do ódio sem encontrar um porto seguro. Jules nunca conheceu tais extremos – e ele sim, é um personagem difícil de nos associarmos, apesar de toda sua beleza humana. Uma beleza ideal e distante.

O terceiro momento diante da obra aparece como decisivo, como um aprofundamento do segundo. Truffaut parece ficar mais charmoso a cada nova visita. O nosso último encontro se deu depois da leitura do romance homônimo, escrito por Henri Pierre Roché, que serviu de inspiração ao filme. Jules e Jim é uma adaptação impressionante – Truffaut captou a essência das personagens de maneira tão profunda, que conseguiu misturar cenas literalmente transferidas do livro para o filme, palavra por palavra, como outras de sua própria criação sem que se formasse uma diferença espiritual entre essas duas formas. Quando fui ler o livro naturalmente transferi os caracteres de Oscar Werner para Jules e de Henri Serre para Jim (acredito que esse seja um processo natural desse diálogo), da mesma forma que quando voltei ao filme, entendi mais do que nunca, que os personagens estavam sendo interpretados de maneira excepcional (apesar de inicialmente ter tido uma dificuldade imensa em simpatizar com eles). As adaptações são sempre questionadas como piores que o original, como vulgarização do original, mas nesse caso essa relação se dá de maneira diferente. Truffaut descobriu o livro num sebo, escreveu uma crítica positiva sobre, recebeu uma carta do autor, conversou com o autor e trocou correspondências, sugeriu a adaptação, pensou em fazer o roteiro a quatro mãos. Roché morreu antes disso. Truffaut fez o filme. O livro – antes menosprezado pelo público – se tornou um Best Seller. Acho que essa fraternidade de admiração mútua entre os dois – um jovem cineasta e um velho intelectual – criou uma aura diferenciada em ambas as obras. “Duas Inglesas e o Amor”, outro livro do Roché – também desconhecido – seria adaptado por Truffaut em 1971. A aura se reforça.

Ainda sobre Jules e Jim (que recebeu na versão brasileira o subtítulo ‘uma mulher para dois’) é preciso dizer que franqueza do filme se sustenta a partir de uma profunda amizade entre os personagens-título. Uma relação de extrema maturidade, de uma grandeza que poucos experimentam em vida. Há segurança e é realmente muito bonito. Se escreviam um romance, caíam naturalmente na autobiografia e no enlace dos seus dias. Se lutavam na guerra, em lados opostos, tinham medo de nas trincheiras terminarem matando um ao outro. Ainda assim, nem Jules, nem Jim formam o eixo dessa história. A força motriz se chama Catherine. Força que tudo harmoniza, que tudo abala. Mulher, amante, mãe. Gentil, severa, louca. Não demorou muito até que os dois rapazes estivessem apaixonados, rendidos, desarmados. E nada mais charmoso do que delegar essa posição de balanço e contrabalanço a uma mulher (e a uma mulher com a força representativa de Jeanne Moreau – com olhos expressivos de Jeanne Moreau). Nada mais intenso. Nada mais feminino, apesar dessa posição ser vinculada comumente à idéia de masculino. Essa inversão é essencial.


“Catherine vai a fundo em todas as coisas, uma por uma. É uma força da natureza que se exprime através de cataclismos”, comenta Jules com toda sua sabedoria. No filme essa situação se agrava pela personagem constituir além de si mesma, a condensação das personalidades de diversas outras mulheres presentes apenas no livro. Isso a torna mais onipresente e poderosa. Os três iniciam um tempo juntos, cercados de belos quadros, apostando corridas, indo à praia e ao teatro, trocando palavras e histórias. Uma explosão de vigor juvenil e uma cumplicidade incrível os envolve, mas ambas logo se deterioram. Entre os dois rapazes e a moça sempre existiu uma força que os aproximava vorazmente, que os puxava um para perto do outro. Antes, essa força os tornava felizes, mas em dado momento se torna mais voraz e destrutiva impulsionada principalmente por Catherine. Uma dama como ela não pode se sentir menosprezada ou devora sentimento por sentimento, lembrança por lembrança.

Todos os relacionamentos escondem ambigüidades, por mais belas que sejam suas exteriorizações iniciais. A velha história do deslumbre inicial que se desfaz gradativamente. E não é diferente com Jim e Catherine, apesar de Truffaut indicar durante boa parte do filme que aquele amor e somente aquele amor podia ser diferente dos outros, podia não se esvaziar ao longo do tempo. Continuamos acreditando no potencial da pureza e proteção de Jules mesmo quando os problemas se instauram de forma irremediável. Logo a relação envelhece, expõe as feridas coletadas com o tempo e formada por instintos particulares. Pois é, Truffaut nos enganava: a morte de suas personagens preenchidas de inocência soa melancólica (tenho que confessar que não me emociona nem um pouco e olhe que eu choro às vezes vendo propaganda na tv). Toda felicidade e todo sofrimento presentes nessa película tem uma única fonte: o amor que compartilhavam entre si. Nada mais sincero, aliás. Truffaut criou o seu turbilhão assim como a canção faz lembrar. E vale ressaltar que ver Jeanne Moreau cantando impressiona em todos os momentos. No primeiro, no segundo, no terceiro.

* Queria apenas deixar registrado um comentário sobre a péssima qualidade das legendas presentes no DVD do filme lançado pela Versátil. Na internet se encontram traduções mais interessantes, realizadas por não-profissionais. Na literatura há um pensamento sobre o trabalho de tradução infinitamente mais profícuo e denso, que nas obras cinematográficas. Sinto que o trabalho de legendagem é sempre delegado a um segundo plano. Além dos erros ortográficos, sobram resumos do que foi dito literalmente e acontece até traduções equivocadas (erradas mesmo), que modificam o significado, como na cena em que Jules fala a Jim “Para Catherine apenas uma fidelidade é importante: a do outro” que terminou legendada como “Para Catherine apenas a fidelidade é importante ao outro“. Uma simples mudança que trouxe uma grande mudança.

Jules e Jim. França, 1961. Direção: François Truffaut Roteiro: François Truffaut e Jean Gruault, baseado no romance de Henri-Pierre Roché Fotografia: Raoul Coutard Trilha Sonora: Georges Delerue Elenco: Jeanne Moreau, Oskar Werner, Henri Serre, Boris Bassiak, Marie Dubois, Sabine Haudepin.

Para baixar: Jules e Jim

Referências Bibliográfica:

AUMONT, Jacques e outros. A estética do filme. Campinas, SP: Papirus, 1995.
Outros autores: Alain Bergala, Michel Marie, Marc Vernet.

ROCHÉ, Henri-Pierre; TRUFFAUT, François. Jules e Jim: o romance, o roteiro; tradução de André Telles. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2006.

STAM, Robert. Introdução à Teoria do Cinema. Campinas, SP: Papirus, 2003.