quarta-feira, 29 de outubro de 2003

Vestibular

Henrique era só mais um desses meninos que escolheram biologia por acaso, que não sabiam o que fazer, escolhiam pela matéria no colégio, pelo tesão na professora, pela secreta vontade de produzirem seus próprios lolós, nem imaginavam que estavam costurando ali, a decisão fundamental que os definiria para o resto da vida. De qualquer forma, na hora de marcar um X, escolheu com convicção, passou a se interessar verdadeiramente, embarcou na botânica e não pretendia mudar de curso, não pretendia pelo simples temor em deixar de lado e não encampar nenhum outro. Bem que faria filosofia ou psicologia; terminaria em jornalismo; jamais, administração. O caso de Arlindo foi diferente. Fez jornalismo convencido de que era o que mais queria na vida, desistira da pressão da família para fazer Direito, tinha ficado numa tremenda dúvida por Letras por razões óbvias, mas ao ver a grade curricular, decidiu pelo primeiro porque tinha ao menos algumas disciplinas práticas. Daí fez também Relações Internacionais, pra ter uma certeza de curso, caso não passasse na UFPE, e porque sempre gostara de ler sobre guerras, desde àquelas bem antigas, guerra do Peloponeso, Guerras púnicas, de modo que em algum momento bateu o destempero de ser correspondente em conflitos atuais. Hoje não faz mais sentido algum. Antes de se formarem, Henrique e Arlindo pensaram: "decidir os próximos 50 anos aos 17 é foda".

segunda-feira, 20 de outubro de 2003

Recuperação

Depois do fim, acordou na segunda atropelado por um trator. Abriu os olhos cinco vezes antes de conseguir se mexer. Na terça-feira, despertou atropelado por uma bicicleta. Mexia com facilidade apenas os dedinhos dos pés. Na quarta, Alfredo pegou a bicicleta para andar.

segunda-feira, 13 de outubro de 2003

Argentina

Para os que nunca aprenderam a assobiar, todo assobio é um chamado que a primeira vista parece não poder ser respondido, tal qual os gritos de saudade que costumava dar sempre que voltava ao nosso quarto. Simulava um sussurro meu em ouvidos seus e devaneios mil. Lembrava gesto a gesto os malandros lábios disfarçados, aquele meu sentir de garoto inconformado, o velho desvencilho de olhos contra olhos que tanto nos marcou. Não lembro onde deixei a foto, mas continuo me encarando todos os dias no espelho. Vejo o suave balançar de seu vestido meio channel, as pernas bem encaixadas, a reclamação sobre o sereno; vejo o garçom tombar de bêbado com os nossos copos, nosso riso desengonçado e lembro da brisa que embalava o seu desejo eterno de inventar. O tango argentino numa boca rugosa com dentes brancos, os amigos de longe sambando como bons brasileiros que nunca sambaram e eu perdido no teu, com dois vinhos diferentes, um em cada mão, e com as palavras de Chico bem baixinhas. Você me culpa pelas flores que nunca mandei, devolvendo meu cartão de natal como um carro bomba pronto para matar quarenta e tantas pessoas numa boate chilena. Sempre gostei da forma como deixaste a canção seguir sem dor, mas nunca conseguimos lidar com o peso que empunhaste em cada um dos versos. Passaram os dias e ainda sinto vontade de sair andando devagar em busca do teu sorriso. Sou um garoto sem pressa num passo rápido, esqueço o chapéu e danço uma fina valsa sussurrando ao teu ouvido as palavras de uma música em português com um sotaque bem carregado. Pois é, meu bem, nunca gostei dessa sua mania de insistir no tango.