quinta-feira, 23 de julho de 2009

Multiculturalismo domesticado


Ao longo de pelo menos quatro décadas, as indústrias cinematográficas dos Estados Unidos e em menor escala do Reino Unido apostaram na produção de filmes, cuja referência cultural estava atrelada intimamente aos centros econômicos, ainda que o consumo devesse acontecer - e acontecia - de maneira massiva em diferentes periferias do mundo. Os produtos audiovisuais vinham com uma capa de universalidade, baseando seus personagens nos arquétipos de Joseph Campbell, introduzindo-os numa história simples, mastigada, em que se traça tranquilamente um percurso do herói. No entanto, essa proposta deixou de ser o modelo exclusivo de negócios do cinema comercial, pois nos últimos anos, a posição etnocêntrica passou a compartilhar da expansão comercial baseada no multiculturalismo, movimento que fica bastante claro com Quem quer ser um Milionário (Reino Unido, 2008), dirigido pelo britânico Danny Boyle. A produção vencedora de oito Oscar faz uma releitura videoclíptica da estética dos filmes de bollywood – indústria de cinema da Índia – criando uma caricatura ocidental dos valores e símbolos de uma cultura subalterna. O interesse aqui é dar uma dimensão identitária que procura transpassar, no campo da imagem, tanto o ponto ideológico de onde se fez a leitura como do fenômeno lido, quase criando uma obra-fetiche que fala um pouquinho em hindi, que usa uma trilha sonora local e se vende dizendo que o roteirista até visitou o país asiático três vezes. Tudo numa cor extremamente saturada.

O filme acompanha através de constantes flashbacks, a jornada do jovem Jamal que trabalha servindo chá em uma empresa de telemarketing, depois de passar por uma infância marcada por experiências, cômicas ou melodramáticas, de miséria e violência. O sonho do protagonista aparece alinhado ao princípio do capitalismo neoliberal, que coloca o sucesso como uma realização individualista, possibilitada exclusivamente graças a uma espécie hipócrita de perseverança. Na mesma pegada dos que se inscrevem no Big Brother como o grande projeto de suas vidas, numa mistura de ânsia financeira e vontade de se tornar uma celebridade, Jamal participa do popular programa de TV Quem Quer Ser um Milionário? e ainda que inicialmente seja um competidor desacreditado, vai encontrando respostas para as perguntas em fatos de sua vida. Plim, plim. Além da óbvia ironia da situação criada por Boyle,  colocando a pobreza quase como um dom do conhecimento, o perigo já não é o de negar as diferenças, mas o de apropriá-las de forma instrumental para referendar um autoridade colonial. A cultura indiana é “revelada” ao mundo pelos olhos dos ingleses, reforçando clichês e amadurecendo diferentes contornos de dominação. Afinal, trata-se de uma assimilação antropofágica despolitizada, fazendo o multiculturalismo se transformar numa mercantilização da alteridade, um empacotador de particularidades e, portanto, uma ferramenta contemporânea de reordenação e administração do consumo cultural a nível global.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Procrastinação

"De uma forma geral, pode-se presumir, na pseudo-atividade, uma necessidade represada de mudançass nas relações fossilizadas. Pseudo-atividade é espontaneidade mal orientada. Mal orientada, mas não por acaso, e sim porque as pessoas pressentem surdamente quão difícil seria para elas mudar o que pesa sobre seus ombros. Preferem-deixar-se desviar para atividades aparentes, ilusórias, para satisfações compensatórias institucionalizadas, a tomar consciência de quão obstruída está hoje tal possibilidade. Pseudo-atividades são ficções e paródias daquela produtividade que a sociedade, por um lado, reclama incessantemente e, por outro, refreia e não quer muito nos indivíduos. Tempo livre produtivo só seria possível para pessoas emancipadas, não para aquelas que, sob a heteronomia, tornaram-se heterônomas também para si próprias"


Theodor Adorno.
Tempo Livre

Oswald, meu caro

Amor não é Humor.
É Toxoplasmose.

(escrito em algum passado sem data)

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Fingimentos

O perigo de escrever é escrever o que se sente e o que não se sente e confundir uma coisa com a outra no meio do caminho, fazendo de ambas projeções, meias verdades sentimentais. Trata-se de uma zelig faca de dois gumes diante dos ensejos e vicissitudes de uma mente pueril. Fernando Pessoa já dizia isso de uma forma bem mais poética, mas nem poderia ser de outra maneira, afinal, ele é o poeta, enquanto que nós - e meio mundo precisa de dar conta disso -, nós só conversamos potoca.

Treinamento

Há pouco mais de uma semana, acordei com o rosto molhado e os dedos dos pés doloridos, algo que não me acontecia há vários anos, desde pirralha pra ser sincero, quando sonhei que estava perdido numa mina cheia de placas. Eu andava e espirrava e em cada uma das placas tinha escrito o nome de uma profissão. Depois de longos passeios tomado pela claustrofobia dos corredores estreitos e diante do desmoronamento lógico que me esperava - super na linha 'A Montanha dos Sete Abutres', do Billy Wilder - eis que terminava encontrando uma derradeira maldita placa e no desespero, antes de lê-la, decidia por ela. Nem paleontólogo, nem médico, nem astronauta. Pois é, paleontólogo era a primeira opção na época. 'Assassino' era o que tinha escrito. Acordei com o rosto molhado e os dedos dos pés doloridos. Nem preciso dizer que corri direto pra cama da minha mãe. Acontece que nem o sonho de criança, nem o sonho da semana passada se comparam com uma história que escutei no treinamento do Periódicos Capes. Lá estava eu só querendo saber como fazer a senha para ter acesso gratuito e irrestrito nas mais diversas revistas internacionais, acesso de casa, e não da universidade, quando finalmente a mulher, meio confusa consigo mesma e pouco íntima da interface, explicou mais ou menos o caminho. Ok, entendido, fui pro gmail, orkut, twitter, inutilidade, inutilidade, irrelevância, irrelevância, daí chegaram duas outras pessoas para o treinamento e a instrutora liberou os que já tinham pego o espírito da coisa. Um senhor ao fundo totalmente alheio a tudo que estava sendo dito permaneceu sentado. Eu estava no computador diametralmente oposto ao dele. Foi então que a instrutora resolveu começar com a nova turma pela senha e não pelos blábláblá de ensinar a usar um sistema de busca. Alow, conhecemos o google, pode pular essa parte. Enfim, ela chamou o senhor "professor de biologia" pra se aproximar. Não vou negar que o achei estranho, não só pelos olhos tristes, pelos cabelos desgrenhados, pela pochete feiosa, pela roupa-fiz-figuração-no-elo-perdido-e-não-saí-do-personagem', mas especialmente pelo sotaque estranhíssimo, pois não conseguia identificar de onde vinha, sequer se era nacional ou internacional, ou mesmo se era sotaque de fato ou um problema de dicção. Ok, o senhor era um verdadeiro e legítimo jungle oldman: o que não é problema pra mim, pois apesar de odiar a natureza, as aranhas e os insetos, sou amigo de Mário, rapaz bonito que passou um bom tempo desencontrado no meio da Amazônia.

Voltando ao que nos interessa, a instrutora pediu ao professor que se aproximasse e avisou que para fazer a senha no portal de periódicos era preciso ter o SIGA ativo. Todos enquanto alunos e professores da universidade obviamente tinham SIGA. Explicando bem rápido, além de dar muita dor de cabeça e gerar mil problemas quando você mais precisa, o SIGA é o sistema virtual da UFPE onde todos os alunos fazem a matrícula, conferem seus históricos escolares, notas, grades curriculares, horários; onde também os professores colocam os resultados, os nomes das disciplinas, os horários. Sacaram mais ou menos? Pois é, é isso. Daí o professor falou: "eu não tenho siga". Nessa hora meu ouvido ampliou para além de minha orelha (sem piadas por favor), porque é incompatível que um professor da UFPE seja professor de fato e não tenha SIGA. Daí a instrutora bem boazinha e calminha, boazinha e calminha como geralmente são todas as bibliotecárias, falou que ele precisava falar com o pessoal do departamento pra adiantarem o SIGA dele. Ninguém queria saber mais do treinamento, havia algo de mais importante ali. Daí o professor começou um relato constrangido, afirmando que os professores companheiros de departamento não gostavam dele, que muitos sequer falavam com ele. O constrangimento era dele e a fraqueza do constrangimento nossa. Continuou dizendo que não era bom com computador, internet, que o chefe do departamento simplesmente dava o papel das disciplinas do semestre e, ao final, a secretária pegava o papel com as notas de volta. Tudo sem troca de palavras. Sério, eu fiquei meio emocionado, inclusive por culpa diante de meu olhar primeiro, apesar de que outsider, outsider, essa história pessoal já era demais. Ai de quem pensa na universidade como o templo dos bons modos e da ilustração. A instrutora, claramente passada e não só ela, sem saber se voltava pro treinamento, se enfiava a cabeça no monitor, disse desorientada que ele podia ir na biblioteca, só que logo depois se deu conta que na biblioteca ele nunca que ia fazer o SIGA. De fato, isso só seria resolvido no departamento. Ele achou que ela não tinha entendido e repetiu a história, enfatizando que não saberia fazer isso sozinho, que não era bom de computador, que não tinha computador em casa. A mulher querendo quebrar o gelo falou que também não tinha, que usava o do sobrinho. Foi a deixa: ele começou a ficar meio nervoso e disse que não podia pedir a filha até porque a filha tinha asco dele. Eu fiquei meio em estado de choque. Todos na sala. Depois do silêncio sepulcral, ele soltou a máxima do dia: "Ninguém fala comigo lá. É que eu sou leproso. Quando se tem lepra, é foda. Eu tenho um fedor que faz com que as pessoas não se aproximem de mim. Eu só posso feder muito. Muito mesmo. Desde que eu cheguei nessa cidade há vinte anos, eu nao paro de feder". Não se enganem, REALMENTE o fedor era uma metáfora. A mulher sem saber o que fazer mandou ele procurar o reitor, só o reitor poderia resolver o caso. Momento climãão instaurado e eu como um bom covarde, antes que ele continuasse a história, fugi da sala pensando como meu dia-a-dia só faz me confirmar que o mundo é um grande lixão cheio de urubus. Voltei pra casa péssimo. Só melhorou um pouco quando passei no laguinho e vi duas beldades tirando a camisa e fazendo contorcionismo na grama. Ainda bem que consigo curar tristeza profunda com um circo de corpos quaisquer.

sábado, 18 de julho de 2009

Mudando

Desde 2005 tenho o meu celular atual, isso quer dizer que fazem exatamente quatro anos que uso o mesmo aparelho e que, de fato, ele já está todo fudido, mas também significa dizer que acompanhei todo processo, dele deixar de ser modernoso-metidinho porque tinha câmera pra se tornar desprezível-atrasadinho por só ter câmera. Devo admitir que criei uma espécie de laço afetivo, especialmente por conta da tal câmera, único modo de registro da minha vida ao longo de todos esses anos e por conta do gravador de voz, que sozinho captou duas ou três das conversas mais impagáveis da vida. Lellye que o diga. Meu celular tinha um timing autônomo. Sem contar que desde que o comprei não aconteceu de eu ser assaltado, o que merece uma menção, afinal de contas, moramos em Recife, onde ser assaltado é, para as criaturas da noite, tão comum quanto comprar pão na esquina. Só em 2004 tive três aparelhos, um dos quais não durou um mês da compra ao furto. Furto ridículo, por sinal, dentro do Chevrollet Hall. Bem que eu mereci por ter pago tão caro por um show tão bosta e que passei maior parte do tempo num orelhão ligando pra 'oi'. Acontece que os tempos mudaram, ganhei um celular novo super foda, mil funções, que obviamente nem sei mexer direito. Admito: estou com dificuldade de me livrar do antigo e sinto que vou ser assaltado logo logo, sinto o peso de estar andando com algo de valor. Isso funciona como um obstáculo ao meu espírito de flanar na cidade. É como se fosse a volta da típica paranóia recifense que todos nós deveríamos superar. Saco. Só gosto de medo quando é fobia. Então, pra marcar a nostalgia dos tempos sem medo, vou fazer uns posts com algumas das últimas fotos que tirei no antigo celular:







segunda-feira, 13 de julho de 2009

Descobrindo o mundo

Acho que eu descobri o que era o capitalismo, quando, ainda bem pequeno, me dei conta que o Hiper Bompreço era a junção de 'hiper', 'bom' e 'preço' e que era mentira.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Be Kind Rewind

Às vezes desejo secretamente que a vida devia se configurar como um DVD, de forma que, quando completássemos dezoito anos, ganhássemos como prova da idade um controle remoto com lindos botões rewind and forward, nos dando a abertura de transitar por todos os nossos anos, rememorando a melhor trepa e nos arriscando a descobrir o nosso leito de morte. Talvez o excesso de viagens para frente e para trás, além de nos causar o enjôo típico da incerteza, além de nos confundir as emoções e de nos tornar existencialmente atemporais, terminaria se solidificando enquanto um longo tédio rotineiro e firmando permanentemente a resolução do porquê vivemos no, e devemos ao, presente. Não me parece ser por acaso. Ainda assim, fico com um sorriso distante só de pensar na possibilidade de acelerar a dor – sentindo-a mais intensamente numa durabilidade menor; na praticidade de mudar o ângulo de visão, brincar com o zoom – entendendo os pontos-de-vista que nos escapam, os contextos que não nos pertencem, as distâncias e aproximações. Parece um vício dos bons: pensem no prazer quadro a quadro – descobrindo o gozo de cada segundo, resgatando um sentido a cada gesto; na vontade sincera e justa de pular capítulos inteiros, pausar momentos de dúvida extrema, viver o mesmo frio na espinha uma centena de vezes. A velhice me parece ser a superação deste desejo: desejo de quem carrega uma juventude amada que começa a pesar e desejo de quem olha para frente sem olhos de farol. Por ora, na encruzilhada dos vinte e poucos anos, bem que a vida poderia ser cheia de funções técnico-afetivas, nem que fosse uma breve alienação de nós a nós mesmos, de nós em nós mesmos, afinal, a única função de DVD que nos resta enquanto seres humanos donos de nosso destino e condicionados por nossa realidade é a do botão eject. Nada mais. Ao menos, os anos têm passado, vinte quatro deles, e o único botão do controle tem se mantido intacto. Deve ser o sinal de alguma fé na humanidade. Quem diria.