Só um rápido comentário: a primeira vez que escutei alguém conhecido falar sobre ‘Funny Games’ (1997), foi, há vários anos, por volta de 2003, quando um amigo, João, o mencionou com insatisfação. Sem delongas ou paciência, revelou de imediato que sequer conseguiu chegar ao final do filme, tamanho o incômodo que o dominou depois da cena em que o garoto rebobina a própria história – cena que carrega um alívio cruel de tão efêmero. Pois é, João desligou ali mesmo. Dois dias depois quando o encontrei na universidade, ele passou uns 20 minutos argumentando como aquela obra tinha lhe feito mal; lhe angustiado a ponto de desistir da posição de espectador (ou cúmplice, se preferirem). E não se tratava de uma desistência dessas de quando estamos zappiando despreocupados pela T.V. e desistimos de cansaço e vamos dormir tranquilamente. Longe disso. A desistência aqui carrega outro simbolismo. A entrevista a seguir trata muito bem disso. Acontece que diante da lembrança de Funny Games, o incômodo não passava e apesar de João ter detestado e re-afirmado sempre que possível esse juízo de valor, suas pequenas descrições, breves análises ou mesmo xingamentos passavam uma impressão contrária. Um desgosto agressivo e uma admiração encoberta. Gostei de escutar esse paradoxo e fiquei naturalmente curioso. Essa mesma contradição me abateu no ano seguinte com Elefante (2003), de Gus Vant Sant. Lembro que ainda sob efeito da sessão, terminei dias depois escrevendo alguns versos sobre o vazio, assumindo nas palavras o tom que a película tinha impregnado em mim. Todos os versos começavam com “É um vazio…” seguido de ‘que’, ‘como’, ‘idêntico’, ‘diferente’ e comparava todo vazio do filme com o que eu sentia de vazio na minha própria vida. Durante esse breve processo criativo entendi a opinião por trás dos versos, além de poder contra-argumentar o discurso de João a partir de seu próprio discurso: o usando no sentido inverso. Uma admiração reaberta e um desgosto agressivo. Ele não tinha se dado conta da contradição. E eu o entendia: diante da lembrança de Elefante, o incômodo também não passava.
Michael Haneke consegue essa reação de forma brilhante. Não só por cenas isoladas como a auto-mutilação em ‘A Professora de Piano‘ (2001) ou o suicídio em ‘Cachê’ (2006), mas pela condução ‘humor negro crítico’ ao extremo que dá às suas obras. Em 2005 / 2006 por aí, João (outro João) estava falando algo sobre cinema – não lembro exatamente o que – quando citou por acaso “Funny Games”. Respondi que não tinha visto já me punindo pelo fato. Ele ficou surpreso e me recomendou com uma veemência nunca vista antes ou repetida: “esse é o tipo de filme que tu vai colocar entre os melhores com certeza“. No mesmo mês assisti e confirmei o dito. Não literalmente entre os melhores, sequer pensei nessa lógica, mas entre os mais perturbadores. Nessa mesma época assisti ‘Código Desconhecido‘ (2000) e ‘A Professora de Piano‘. Por sorte, Cachê (2005) havia entrado em cartaz e Haneke definitivamente na minha vida. Os temas aplicados nos meus pretensos roteiros sofreram uma mudança radical. No caso de ‘Funny Games‘ – tema específico da entrevista abaixo, a provocação através de um sadismo exagerado coloca a violência numa discussão cínica e fundamentada nunca vista antes. Senti-me um pouco cobaia da idéia do diretor (que com certeza adorou aplicar sua idéia em milhares de cobaias). Trata-se de um incômodo durante o filme; incômodo depois do filme; incômodo depois do filme ainda hoje. A entrevista data desse mesmo ano, 2005, e foi realizada por Serge Toubiana – crítico, ex-redator chefe da Cahiers du Cinema e atual diretor da Cinemateca Francesa. Já no final da conversa, o Haneke faz um comentário sobre a platéia de Cannes diante da mesma cena, que fez o primeiro João do texto desistir do filme. “Quando a mulher pega a escopeta e atira no garoto gordo, o público se pôs a aplaudir” – o tal alívio cruel ao qual já me referi. Acontece que logo na seqüência da possível libertação da tortura, o outro garoto toma a escopeta, dá uma coronhada na face da mulher e como se não fosse o bastante, pega um controle remoto e volta a cena até o momento em que o gordo ainda estava vivo. As olhadelas dos psicopatas para tela são essenciais. Nesse segundo momento, o diretor afirma que houve um silêncio enorme na sala, porque as pessoas “finalmente percebiam que estavam se deixando manipular ao aplaudirem um assassinato”, principalmente depois de se sentirem violadas pelos vários minutos de um sadismo auto-conscientemente ‘desestabilizador’ (usando a definição do próprio diretor). Parte da contradição, tema desse rápido comentário, se instaura nisso. As antigas cadeiras de madeira da Fundaj não parariam de rangir.
Por fim, só queria lembrar da notícia bizarra do momento: o lançamento da versão ‘americana’ de ‘Funny Games’, dirigida pelo próprio Haneke (já foi lançado nos EUA e deve chegar ainda esse ano no Brasil – ainda não o achei no Pirate Bay). No elenco, Naomi Watts, Tim Roth, Michael Pitt. Eu sei que é difícil entendermos a necessidade de um projeto nesses termos, dentro do breve intervalo de 11 anos entre a obra original e o remake e com uma caracterização das personagens extremamente parecida. Vejam os dois trailers seguidos para entenderem o que digo. Imagino que minha preocupação vai terminar se fincando nas atuações, afinal a maior parte do filme é literalmente igual, plano a plano, diálogo a diálogo. Sobra aos atores, a diferença – para o bem ou mal do conjunto da obra. Parece piada, mas resolvi dar uma chance. Não estou com uma pré-disposição negativa e isso já é um passo. Fiquei intrigado por não ter lembrança de outro diretor que tenha refilmado uma obra sua em tão pouco tempo. 22 anos separam a versão inglesa (1934) da versão americana (1956) de O Homem que Sabia Demais, de Hitchcock (exemplo óbvio, eu sei). De qualque forma, aqui as diferenças são inúmeras. Por outro lado, podemos retirar algumas reflexões desse fato inusitado. Li uma crítica, no IMDB, sobre o lançamento do remake de ‘Funny Games‘ que defendia a obra, pois era preciso ‘traduzir’ o tom crítico germânico para o público anglo-saxônico, com atores famosos (e comprovadamente bons) para que o filme deixasse de ter o efeito contrário nesses países: o efeito de consumo da violência e não de crítica a violência. O Haneke prevê essa necessidade durante a entrevista. É impressionante o tato que ele mantém sobre sua obra e não digo no sentido de obra fechada, mas obra que ganha o mundo e ganha extensões próprias. Sempre pensei que vários diretores perdiam essa segunda parte. José Padilha perdeu. O Haneke não.
Segue a entrevista (com legendas em espanhol – no youtube também tem uma versão com legendas em inglês. Versão editada, entretanto)
Parte 1:
Parte 2:
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