sábado, 29 de dezembro de 2012
Restos (Argentina, 2010), de Albertina Carri
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Curtas
O Hobbit (EUA / Nova Zelândia), de Peter Jackson
A sensação horas antes de sair de casa para assistir O Hobbit era a de que estava gradualmente, talvez tenebrosamente, voltando para o ano de 2002, sendo mais preciso para o dia primeiro de janeiro, quando A Sociedade do Anel entrou em cartaz no país. Diferente daquela época, a histeria não veio com tanta intensidade antes do filme, dez anos pareciam o suficiente para encerrar qualquer ímpeto mais eufórico, de modo que não entrei na procrastinação da curiosidade minimalista sobre os rumos da produção. Assimilei apenas o básico impossível de resistir: tanto o oba oba (só que o contrário) em relação à captação hiperrealista em 48 fps (frames per second), como o repercutido lenga lenga de fãs e críticos, acusando Peter Jackson de, apenas por causa dos lucros, ter transformado um livro curto infantil numa trilogia. Pior que para quem olha de longe ou de muito perto é isso mesmo. Como queria olhar numa distância agradável, olhar para além do velho lamento sobre a indústria cinematográfica, para além dos exageros ortodoxos dos fanáticos e me focar na adaptação enquanto estratégia, arrumei um tempo dentro da rotina apertada para ler o livro de Tolkien na mesma semana. Nunca suportei o argumento de falta de fidedignidade ao original como desculpa para não gostar de um filme. Quando terminei na manhã da sexta-feira de estreia, estava ávido pelas imagens, passei algumas horas contentando-me com os trailers oito vezes ou mais, o bastante para perceber o quão estava morrendo de saudades da Terra Média. Daí nem preciso relatar o embasbacamento emocionando quando as luzes se apagaram, quando começou a trilha sonora, quando apareceram os primeiros mapas, quando os anões cantaram, quando Gandalf contou sobre a existência de apenas cinco magos – deixando-nos a pergunta de “como nasce um mago?” - e quando se desenrola a impressionante batalha do trovão (algo só sublinhado sem forma no livro, mas captado com proeza pela interpretação hollywoodiana de Jackson).
Admito de antemão que desde pequeno meu fascínio pelos gêneros da Fantasia e da Ficção Científica, nunca consegui criar uma hierarquia entre eles, estava ligado a certo tédio desenvolvido pelo mundo material que eu habitava. Tenho a crença de que esse é o sentimento clássico das crianças que entram numa jornada inesperada em qualquer narrativa (História sem Fim; Fantástica Fábrica de Chocolates, etc). Seguindo com um punhado de referências do cinema, da televisão, da literatura, dos quadrinhos e dos videogames, transformava o cotidiano, o meu e o dos outros, num espaço imantado de fagulhas de tempos mitológicos, provindas de civilizações reais ou imaginárias, passando por universos distantes anos luz até recuperar acontecimentos históricos grandiosos. É mais ou menos assim que nasce um nerd. Durante a adolescência, confesso que passei alguns anos esperando um grande acontecimento, se necessário fosse uma grande tragédia, qualquer coisa que animasse um pouco, que movimentasse a diferença e tirasse o mundo como conhecemos da rotina. O ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 correspondeu em parte às expectativas. Seja como for, acredito que a nostalgia, pensando como uma projeção saudosa pelo que foi, pelo que poderia ter sido e pelo que poderá ainda acontecer, é a força motriz e criativa que movimenta esse embate entre o sujeito e fantasia (vide Caverna do Dragão). E a Terra Média é pura nostalgia: são os anões querendo recuperar a sua casa e contando histórias daquele tempo, é Bilbo acanhado, triste e distante, lembrando da quentura de sua lareira, é Gollum – mais incrível do que nunca, na cena talvez melhor adaptada do livro – brincando de adivinha e desesperado procurando reaver o anel roubado. Peter Jackson redimensiona a mitologia de Tolkien através de uma sensibilidade Pop, algo que desagrada os fãs radicais e que me parece a maneira mais emblemática de trabalhar esse universo, algo que ele pesa a mão e acentua em O Hobbit, uma trama mais doméstica e familiar, para aproximar do tom épico do Senhor dos Anéis.
No entanto, vale dizer que, apesar das semelhanças cinematográficas, há uma distinção clara entre a narrativa de O Hobbit e a trilogia do Senhor dos Anéis, não só porque o livro foi escrito para os filhos de Tolkien e lançado no final de 1937, mas, e fazendo a primeira defesa do filme, as páginas do primeiro não se perdem em descrições ilimitadas como no segundo, as palavras vão direto ao ponto. Assim sendo, uma mesma ação que se desenrola em duas páginas ou que é apenas levemente citada termina se transformando em longas sequências, como se o diretor estivesse aproximando o argumento do livro isolado da maneira de contar da trilogia, ampliando seu domínio e mapeamento audiovisual da Terra Média. Ou seja, mesmo só adaptando os seis primeiros capítulos em Uma Jornada Inesperada, os roteiristas inseriram referências provindas de apêndices ou trechos de outros livros do autor, num claro movimento de acoplar a trilogia vindoura com a anterior. A ênfase no Necromante, por exemplo, deve render nos próximos filmes uma gênese mais detalhada de Sauron (algo totalmente inexistente no livro). De maneira geral, O Hobbit é um bom exemplar de narrativa de travessia, formato em que um grupo com uma missão segue em direção a um determinado destino, atravessando paisagens completamente diferentes, tais como florestas selvagens, descampados, pântanos, montanhas congeladas e cidades de Orcs. Um dos integrantes da comitiva, geralmente o último a decidir participar, no caso Bilbo Bolseiro, atravessa a sua jornada também passando de figura desacreditada pelos outros, ganhando pouco a pouco o respeito até se tornar uma espécie de líder. Essa premissa, aliás, é bastante próxima da aventura de Frodo, só que o pequeno amigo de Sam não assume a postura de líder, mas de salvador. São duas posições bem diferentes.
Lendo algumas críticas depois de assistir ao filme e depois de fuçar em busca de toda merda possível vinculada, livro de receitas dos anões, livro de auto-ajuda dos hobbits, percebi a repetição de uma mesma ~opinião~: a cena inicial é ~cinematograficamente~ enfadonha. A festa inesperada é o primeiro capítulo do livro, acredito que a duração na tela seja cirúrgica no sentido de destrinchar, com a devoção e apropriação de Jackson, os hábitos de um hobbit, o contato com os anões e o jeito ardiloso do mago Gandalf. Bilbo, com todas as suas antiguidades e panos ornamentais, um ser miúdo e simpático que gosta de receber visitas, mas que jamais se meteria por vontade própria numa aventura, surge como uma parábola de todos que têm medo e receio de abandonar, temporariamente ou não, suas vidas confortáveis e acomodadas. Ele é simultaneamente a vida adulta estabilizada e a criança entediada com seu mundo. Nada mais justo que o convencimento, num contrato que fala sobre lacerações e incinerações, dure pelo menos quinze minutos. Ainda nesse momento, parece que não, mas é muito importante quando os anões começam a cantar, porque eles são um povo festivo, adoram beber e comer, mas são também um povo ferido, nômade, que teve seu lar assolado pelo dragão Smaug. Eles costumam usar das canções para anunciar uma jornada ou para comentar o que aconteceu com seus antepassados, cantam tanto a própria história como o prenúncio dos próximos passos, quase como se arquitetassem planos e lembrassem através de versos. A relação dos personagens em O Hobbit é mais de cumplicidade e respeito do que de intimidade desenvolvida por homens marcados pela guerra, como em Senhor dos Anéis (que foi lançado apenas na década de 1950, unindo a experiência ativa do autor durante a Primeira Guerra Mundial com a partida do filho para lutar na Segunda Guerra Mundial).
Portanto, a obra de Tolkien, muito bem adaptada por Jackson, não fascina pelos seres mágicos jogados de maneira aleatória, mas pela minuciosa capacidade de criar diferentes culturas e intricadas relações dentro de um mundo mitológico imaginário (ok, que presta contas com várias culturas européias). Cada uma das raças possui elementos específicos facilmente reconhecíveis, traços que passam pelo próprio porte físico, mas adentram a indumentária, o cotidiano, a gastronomia, a moradia até atingir o ápice do detalhismo por meio das línguas distintas e dos artefatos mágicos que tensionam todo o universo da saga. O autor filólogo também criou, aliás, o que mais me interessa, uma história dessas culturas, de modo que os seres dos livros / filmes estão inseridos numa temporalidade, que envolve não apenas a genealogia dos personagens – Thorin filho de Thráin filho Thrór – mas fatos históricos de outras eras, além de manuscritos em idiomas extintos, hábitos que foram sendo perdidos; moradas que foram abandonadas. Há a própria história da criação da Terra Média no Silmarillion, um dos textos criacionistas mais belos que já li na minha vida. Então, aos 27 anos, quando achava que qualquer fanatismo bobo já teria perdido o sentido, quando as pessoas vão pouco a pouco acalmando a exposição dos sentimentos, O Hobbit, com alguns problemas como a aparição de Radagast, o vestido cafona de Galadriel, a criação do Orc vilão Azog e o nome inverossímil, Sebastian, para o porco-espinho, veio para me provar outra direção da experiência, cujo fluxo do envelhecimento não serve para as pessoas se tornarem mais secas, não é a mera substituição do deslumbramento pelo conhecimento. O filme de Peter Jackson também é sobre isso.
Ps.: Fui rever O Hobbit em 48fps para saber se realmente tinha alguma diferença ou se era ~pura~ jogada de marketing. Tem diferença. No começo, o filme fica um pouco acelerado, mas estabiliza essa sensação logo, no entanto, fiquei agoniado durante quase toda a projeção quando a câmera enquadra com proximidade os atores numa cena clara. Isso não só porque tudo remete muito à televisão, mas porque me lembrou diretamente aqueles filmes de mitologia grega, tipo Hércules, que passava à tarde no SBT (que eu adorava assistir, mas paciência!). Por outro lado, desde o começo é impressionante o nível de detalhismo que conseguimos enxergar, especialmente nas grandes cenas abertas com muitos efeitos especiais, em dado momento bate até uma sensação de que até ali não estávamos vendo os filmes direito. Chega o ponto de que não basta perceber com minúcia o volume dos ambientes e objetos, mas perceber com clareza os materiais de que são compostos. Ainda assim, concordo com um amigo sobre o assunto: primeiro é necessário saciar a vontade nerd e assistir normal (ou em 3D normal), depois saciar a vontade / curiosidade cinéfila em 48 fps.
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Cinema
terça-feira, 18 de dezembro de 2012
terça-feira, 4 de dezembro de 2012
Hell's Angels x Scorpio Rising x Hunter Thompson
"Os Angels são bastante prestigiados no circuito sadomasoquista, e, embora os bandidos de motocicleta, enquanto grupo, sejam constantemente acusados de terem tendências a desvios sexuais, eu desconfio que a verdade sobre a questão tenha sido definitivamente revelada numa tarde por um Angel de Frisco, que disse: "Porra, é verdade, eu aceito um boquete a qualquer hora por dez pratas. Uma noite dessas, num bar do centro da cidade, um veado chegou para mim com uma nota de dez. Ela me deu a nota e perguntou o que eu queria beber. Eu disse: 'Um Jack Daniels duplo, Baby', e ele falou para o barman: 'Dois desses pra mim e pro meu amigo', depois sentou lá embaixo na barra de ferro e me fez um boquete incrível, cara, e tudo que eu tive que fazer foi sorrir para o barman e ficar na minha". Ele riu. "Porra, e eu com quatro crianças em casa e uma vadia lá na frente dançando e rebolando com um negão qualquer. Que merda, cara, o dia em que puderem me chamar de veado vai ser quando eu deixar uma dessas bichas me chuparem por menos de dez contos".
Até que ponto os Hell's Angels podem ou não serem sadomasoquistas enrustidos ou homossexuais reprimidos é, para mim - depois de um ano na companhia constante de motoqueiros fora-da-lei -, quase inteiramente irrelevante.
Qualquer pessoa que passa um tempo com os Angels sabe a diferença entre motoqueiros fora-da-lei e o culto homossexual ao couro. Em qualquer bar cheio de Hell's Angels, haverá uma fileira de motos reluzentes estacionadas em frente. Em um bar de fetichistas, existem imagens surrealistas de motocicletas na parede e, talvez, mas não sempre, uma ou duas Harleys repletas de acessórios de couro estacionadas do lado de fora - completas, com painéis de vidro, rádios e cestos de plásticos vermelhos. A diferença é tão básica quanto a diferença entre um jogador de futebol americano profissional e um torcedor fanático. Um está participando de uma dimensão singular e violenta da realidade, o outro está venerando algo, é um adorador passivo e às vezes um imitador ridículo de um estilo que o fascina porque é extremamente distante da realidade para a qual ele acorda todas as manhãs.
A ligação pública mais conhecida entre motoqueiros fora-da-lei e a homossexualidade é um filme intitulado Scorpio Rising. Trata-se de um clássico underground medíocre, criado no início dos anos 1960 por um jovem cineasta de San Francisco chamado Kenneth Anger. Ele nunca afirmou que Scorpio tivesse alguma coisa a ver com os Hell's Angels, e sua maior parte foi filmada no Brooklyn com a cooperação de um grupo de aficionados por motocicletas tão pouco organizado que sequer se preocupou em arranjar um nome.
Diferentemente de O Selvagem, a criação de Anger não possuía nenhuma intenção jornalística ou de documentário. Era um filme de arte com uma trilha sonora de rock'n'roll, uma estranha crítica aos Estados Unidos do século XX que usava motocicletas, suásticas e homossexualidade agressiva como uma nova trilogia cultural. Quando os Hell's Angels chegaram à cultura mainstream, Anger já havia feito vários outros filmes com forte apelo homossexual e pareceu não gostar da ideia de estar tão parado no tempo a ponto de seu trabalho parecer algo tão banal quanto documentários sobre temas atuais.
No entanto, Scorpio Rising entrou em cartaz em São Francisco em 1964 num cinema de North Beach chamado The Movie, no mesmo prédio em que Anger estava morando na época, e que anunciava o filme na calçada com uma montagem de recortes de jornal sobre os Hell's Angels. A insinuação era tão óbvia que até os Hell's Angels de São Francisco fizeram uma peregrinação para conferir.
Eles não gostaram nem um pouco. Não estavam putos, mas sinceramente ofendidos. Sentiram que seu nome havia sido apropriado para uso comercial fraudulento. "Ei, eu gostei do filme", disse Frenchy, um dos Angels. "Mas não tinha nada a ver com a gente. Todo mundo curtiu. Mas aí a gente saiu do cinema e viu todos aqueles recortes sobre a gente, colados como se fossem propagandas. Nossa, aquilo foi uma droga, não estava certo. Muita gente foi sacaneada, e agora a gente tem que ouvir toda essa merda sobre a gente ser veado. Porra, você viu o jeito que aqueles vadios estavam vestidos? E aquelas motos de merda? Cara, não me diga que aquilo tem alguma coisa a ver com a gente. Você sabe que não tem".
Anger parecia concordar, mas em silêncio. Não havia razão para estragar um novo boom do filme... E, além disso, um dos talentos mais aguçados do repertório dos homossexuais é a habilidade de reconhecer a homossexualidade dos outros, quase sem exceção. Então, o fenômeno surgiu: os Angels começaram a fornecer ao Scorpio o realismo que lhe faltava. O fato veadagem secreta deu à imprensa um elemento de extravagância para misturar com os relatórios de estupro, e os próprios fora-da-lei estavam relegados a níveis ainda mais baixos da fascinação sórdida. Mais do que nunca estavam envoltos numa aura de mistério erótico e violento: eram devassos brigões, prontos para uma relação sexual com qualquer coisa que respire e em qualquer tipo de orifício".
Hunter Thompson em Hell's Angels
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Apuds
007 - Aberturas - Parte 1
Não posso afirmar que sou desde garoto um grande entusiasta da franquia 007, no máximo sentia uma breve curiosidade por um filme ou outro por causa do meu irmão mais velho ou revia, um tanto indiferente, trechos de Octopussy (1983) nas reprises anuais que rolavam no Corujão, de modo que minha relação mais interessada se confunde com a plena devoção que desenvolvi pelo jogo de Goldeneye (1995) do Nintendo 64. Definitivamente assisti ao filme por causa do jogo, o prazer não estava em qualquer afinco mínimo pela narrativa em si, ainda que tenha aprendido a apreciar bastante, mas por uma vontade de reconhecimento de tudo que já conhecia tão bem: ficava empolgado ao adentrar cada um dos cenários, muitas vezes vistos por perspectivas que não existiam no videogame; julgava a caracterização dos personagens pela relação afetiva que já tinha estabelecido; prestava atenção nas armas para saber, no jogo, quais eram as fidedignas e quais, as arbitrárias. Havia uma fagulha da sensação que meu sobrinho atualmente traduz perfeitamente quando compara os filmes de Guerra nas Estrelas com os jogos da mesma franquia: ele é fascinado pelos filmes; se passarem mil vezes na televisão, ele assistirá as mil vezes; contudo, enquanto o jogo for relativamente novo e ele não tiver chegado até o fim, não tiver zerado, ele vai continuar gostando mais do jogo, daquele jogo em específico, por estar participando da trama, por naquela batalha espacial qualquer com centenas de milhares de naves, ele ser um dos pilotos. No caso de Goldeneye, ainda havia o agravante chamado multiplayer, um sistema que possibilitava quatro pessoas jogarem umas contra as outras ao mesmo tempo nos cenários do jogo e com todos os recursos possíveis. O elemento novidade se renovava a cada disputa, porque, pelo menos eu, sempre estava aberto para o desafio de novos amigos ou efêmeros desconhecidos. Quando ficava jogando com os mesmos perdedores ruins não tinha graça alguma. A rotatividade era um princípio.
Como de praxe em meus comentários, fiz todo esse preâmbulo só para contextualizar que finalmente resolvi expandir, de maneira sistemática, minha breve curiosidade sobre a franquia do double o seven depois de Skyfall (2012), assistindo todos os filmes em ordem rigorosamente cronológica. Sinto como se meu inconsciente soubesse que algum dia iria me propor a isso, por enquanto dava um jeitinho de empurrar com a barriga como todo mundo faz com seus ~amados~, mas com o fechamento da trilogia de Daniel Craig, iniciada com Cassino Royale (2006), talvez ele volte, talvez não, o sentimento virou uma espécie de obrigação. Há o motivo específico que já virou tema de um post, mas a grande sacada está impressa numa dupla e subversiva dimensão temporal: os três filmes mais recentes se passam nos dias atuais - há personagens que sentem saudade da Guerra Fria; os vilões são terroristas com envolvimento no Oriente Médio ou hackers que montam uma espécie de batalha virtual; o próprio James Bond ainda está em fase de formação e há uma jornada pela sua história pessoal e afetiva, tema nunca abordado com tanta profundidade -, no entanto, dentro da cronologia da série, o último filme termina basicamente pouco antes dos eventos de Dr No (1962). Até a personalidade do Bond-Craig - abusado, impulsivo, grosseiro - vai aos poucos se transformando na personalidade do Bond-Connery - irônico, bem-humorado, sedutor. Os críticos tentam rebater o desrespeito temporal em busca de um realismo, por meio do conceito de reboot, como se a série tivesse sido zerada e começado de novo. Na minha visão, trata-se de um prequel, cujo tempo cronológico está vinculado ao século XXI, mas que antecipa o tempo diegético iniciado no pós-Segunda Guerra Mundial, período histórico que condiz com o nascimento e a existência do agente secreto, como uma tentativa da indústria do entretenimento britânica de camuflar a falta de prestígio do Reino Unido na geopolítica internacional.
Seja como for, assisti nas últimas semanas, todos os filmes da década de 1960 da série 007 e logo depois das duas primeiras produções já estava viciado, nunca mais vou esquecer dos personagens secundários (M., Q. e Moneypenny), de algumas das Bond Girls - espécie de Pin Ups britânicas sempre prontas para o sexo; dos inúmeros acessórios tecnológicos, dos cenários provindos dos quatro cantos do mundo ou dos planos megalomaníacos dos vilões excêntricos e geralmente não britânicos. Aliás, fiquei um pouco chocado com um racismo triturado que existe na franquia (o machismo é descarado, as mulheres inclusive apanham de Bond), não só pelos vilões serem chineses, alemães, americanos, italianos, russos, coreanos ou latinos, mas por todos eles vincularem estranhos e escatológicos hábitos, condicionantes de um psicopatia, com suas identidades nacionais. Ainda assim, fiquei especialmente encantado com as aberturas dos filmes, uma antecipação da noção mais redonda de videoclipe e uma das marcas fundamentais das aventuras do agente britânico.
007 contra o satânico Dr. No (1962)
O comentário comum sobre a abertura de Dr. No costuma destacar a primeira aparição da vinheta em que a câmera assume a visão de dentro do cano da arma do inimigo, provavelmente o emblema maior da série, ainda que possa apostar em qualquer mesa de apostas, que certamente não é o primeiro contato que a maioria dos espectadores contemporâneos possui com a sequência. A música tema ainda não havia sido incorporada especificamente nesse momento, de modo que a banda sonora é mesclada entre o tema tradicional de Bond com um divertido ska jamaicano da banda Byron Lee's Dragonaires. Ambas as canções determinam o ritmo das formas coloridas desenvolvidas pelo designer Maurice Binder, responsável por catorze das aberturas da série, inclusive por inúmeras da década de 1960, que antecipam um caminho lógico entre a Pop Art e a Psicodelia. Se mais para frente, as aberturas passam a acumular referências subliminares sobre o tema e a trama do filme, no caso de Dr No apenas funciona como um prólogo quase infantil para a cena de assassinato que abre a produção, cujas marcas narrativas centrais da franquia já estão evidentes.
Moscou contra 007 (1963)
Vou começar com duas referências: essa abertura me lembra muito da cena em que a Brigitte Bardot dança um mambo louco e sensualiza com todos os músicos em E Deus Criou a Mulher (França, 1956), de Roger Vadim e a cena em que Anna Karina dança num cabaré em Uma Mulher é uma Mulher (França, 1961), de Jean-Luc Godard, especialmente por essa apropriação mais sofisticada e sensual da cores sobre os corpos / rostos, tais como os inicialmente famosos propostos por Andy Warhol. Daí temos só pérolas, do 007 sobre os seios balançando freneticamente ao nome de Sean Connery projetado sobre a barriga que simula um movimento sexual. Finalmente descobri de onde veio a inspiração para os créditos finais do curta Faço de Mim o que Quero (Brasil, 2010), de Sérgio Oliveira e Petrônio de Lorena, ainda que a ligação mais próxima esteja no também curta Toques (Brasil, 1975), de Jomard Muniz de Britto, que vem com um provocativo Fim escrito logo acima dos pêlos pubianos de uma mulher nua. A referência ao corpo feminino exuberante e sedutor, revela que Moscou contra 007 conta a história de um corpo que se exibe até as últimas instâncias, mas que não pode ou deve se apaixonar, uma narrativa que não tem qualquer relação com o título em português, pois originalmente o título vem de uma falsa carta de amor recebida por Bond: from Russia, with love.
007 contra Goldfinger (1964)
Eu detesto Goldfinger, apenas porque o filme é uma distração dentro da história maior, a luta de James Bond contra a organização internacional Espectre, iniciada indiretamente com Dr No. O filme anterior mostrava um número sem fim de vilões identificados por números, coordenados pelo número 1, cuja aparência era apresentada apenas pelas mãos alisando um gato, igualzinho ao vilão do Inspetor Bugiganga. Com assisti aos três primeiros em sequência, queria saber o rosto do vilão ironizado por Austin Powers, estava realmente alimentando uma ansiedade vinda da lógica de videogame, como se cada filme fosse uma fase, com um chefão incrível no final, mas o que acontece em Goldfinger é um absoluto desvio da narrativa mitológica, como se costuma falar nos seriados, por um episódio isolado, uma missão qualquer. Fiquei #chatiado. Seja como for, essa é a primeira abertura com a música tema, interpretada por Shirley Bassey, mantendo o conceito de projeção sobre corpos femininos do filme anterior. Contudo, as projeções são de cenas do próprio filme, estimulando o espectador a traçar um fio da meada pelo que lhe é minimamente apresentado. Sem contar que as cenas versus partes do corpo combinam bem, da placa mudando na boca delineada ao agente secreto fugindo do helicóptero sobre as pernas.
007 contra a chantagem atômica (1965)
Não sei se é por causa do retorno à história principal, da luta contra a Spectre, mas esse é o meu filme favorito da década de 1960 e o primeiro, nerdices.com.ativando, em que James Bond se abaixa um pouco para atirar durante a vinheta do cano da arma. Confesso que em todos esses filmes da Guerra Fria, sou fascinado pelos que trazem uma ameaça nuclear real, com grandes líderes mundiais temendo pelas suas cidades, justamente com medo da arma que não param de produzir e acumular. O que eu acho mais incrível em 007, totalmente oposto dos sensacionais trabalhos de Resnais e John Hersey, é que a bomba nuclear é quase uma experiência lúdica, assume um caráter de entretenimento puro, como se fosse uma versão adoro passar por hurricanes com meu amor da Guerra Fria. Além disso, o filme conta com um vilão maravilhoso, tem roubo de avião, tubarão e muita pegação, além várias cenas com Sean Connery sem camisa. Não aprecio isso por tesão, mas pelo fato dele ser muito peludo, tem pêlos até nas costas, e com Daniel Craig - que eu adoro também - as coisas são muito assépticas, não tem um pelinho no sovaco. Sei que reflete esse mundo de homens com pernas raspadas e tal, mas acho bom termos também essa outra referência de macho. Então, sobre a abertura, continua a influência da Pop Art, mas com o tema ~aventura submarina~, tendo como destaque a brincadeira das silhuetas femininas nadando.
Com 007 só se vive duas vezes (1967)
Todo mundo que costuma jogar videogame já passou pela situação de penar trocentas horas até chegar no último chefe, às vezes são quatro e tantas da manhã quando você chega lá, jurando que só vai conseguir terminar às sete, daí na primeira tentativa tudo se resolve facilmente. O gasto de tempo fora muito maior no segundo ou terceiro chefão lá no começo do jogo. Há nessa situação a mesma frustração que existe nesse filme por conta da revelação do número 1 da Spectre, um absoluto fanfarrão que realmente se confunde com a paródia de Mike Myers e que ainda escapa, voltando nos filmes seguintes. O grande trunfo dessa produção é tomar a Guerra Espacial como mote, tanto pelos satélites sendo sequestrados, com efeitos especiais pré-2001 - Uma Odisséia no Espaço (1968), como pela clara evidência de que o Reino Unido não ocupava o velho espaço na macropolítica internacional. James Bond surge aqui como uma alternativa diante do inevitável embate entre as super-potências, como se o serviço secreto da rainha tivesse sido o real responsável, numa micropolítica que não está nos livros de história, por evitar uma guerra nuclear. Essa é a pior abertura da década, não possui qualquer influência da Pop Art, apostando em desenhos de alvos, colagens e fusões não bem sucedidas, com intuito de deixar claro que se o tema anterior era água, agora a história vai dialogar com o fogo.
007 a serviço secreto de Sua Majestade (1969)
Sean Connery abandona o papel de James Bond nesse filme, oficialmente por acreditar que já estava velho para o personagem do agente sedutor, mas também pelo cansaço imposto pela rotina produtiva da franquia e pelo assédio da imprensa (sempre ela enchendo o saco!). Ele terminaria voltando em Os Diamantes são Eternos (1971), porque o seu substituto, George Lazenby, não havia agradado os produtores, porque o público britânico não tinha aceitado bem que um australiano servisse de símbolo dos modos ingleses. Um escocês podia, um australiano não. Há uma contradição não inocente nesse filme: mesmo apropriando superficialmente a cultura hippie, fazendo referências às viagens de LSD como experimentos do vilão, Bond está muito mais casto, termina se apaixonado e casando, atitude totalmente discrepante da posição de Sean Connery, afinal ele passava a impressão hedonista que estava comendo não só as personagens, mas as atrizes e as assistentes técnicas em geral. A abertura faz uma retrospectiva dos outros filmes através de inúmeros personagens que não o próprio agente, brincando vez ou outra com o formato de uma vagina sob a voz marcante de Louis Armstrong.
Moscou contra 007 (1963)
Vou começar com duas referências: essa abertura me lembra muito da cena em que a Brigitte Bardot dança um mambo louco e sensualiza com todos os músicos em E Deus Criou a Mulher (França, 1956), de Roger Vadim e a cena em que Anna Karina dança num cabaré em Uma Mulher é uma Mulher (França, 1961), de Jean-Luc Godard, especialmente por essa apropriação mais sofisticada e sensual da cores sobre os corpos / rostos, tais como os inicialmente famosos propostos por Andy Warhol. Daí temos só pérolas, do 007 sobre os seios balançando freneticamente ao nome de Sean Connery projetado sobre a barriga que simula um movimento sexual. Finalmente descobri de onde veio a inspiração para os créditos finais do curta Faço de Mim o que Quero (Brasil, 2010), de Sérgio Oliveira e Petrônio de Lorena, ainda que a ligação mais próxima esteja no também curta Toques (Brasil, 1975), de Jomard Muniz de Britto, que vem com um provocativo Fim escrito logo acima dos pêlos pubianos de uma mulher nua. A referência ao corpo feminino exuberante e sedutor, revela que Moscou contra 007 conta a história de um corpo que se exibe até as últimas instâncias, mas que não pode ou deve se apaixonar, uma narrativa que não tem qualquer relação com o título em português, pois originalmente o título vem de uma falsa carta de amor recebida por Bond: from Russia, with love.
007 contra Goldfinger (1964)
Eu detesto Goldfinger, apenas porque o filme é uma distração dentro da história maior, a luta de James Bond contra a organização internacional Espectre, iniciada indiretamente com Dr No. O filme anterior mostrava um número sem fim de vilões identificados por números, coordenados pelo número 1, cuja aparência era apresentada apenas pelas mãos alisando um gato, igualzinho ao vilão do Inspetor Bugiganga. Com assisti aos três primeiros em sequência, queria saber o rosto do vilão ironizado por Austin Powers, estava realmente alimentando uma ansiedade vinda da lógica de videogame, como se cada filme fosse uma fase, com um chefão incrível no final, mas o que acontece em Goldfinger é um absoluto desvio da narrativa mitológica, como se costuma falar nos seriados, por um episódio isolado, uma missão qualquer. Fiquei #chatiado. Seja como for, essa é a primeira abertura com a música tema, interpretada por Shirley Bassey, mantendo o conceito de projeção sobre corpos femininos do filme anterior. Contudo, as projeções são de cenas do próprio filme, estimulando o espectador a traçar um fio da meada pelo que lhe é minimamente apresentado. Sem contar que as cenas versus partes do corpo combinam bem, da placa mudando na boca delineada ao agente secreto fugindo do helicóptero sobre as pernas.
007 contra a chantagem atômica (1965)
Não sei se é por causa do retorno à história principal, da luta contra a Spectre, mas esse é o meu filme favorito da década de 1960 e o primeiro, nerdices.com.ativando, em que James Bond se abaixa um pouco para atirar durante a vinheta do cano da arma. Confesso que em todos esses filmes da Guerra Fria, sou fascinado pelos que trazem uma ameaça nuclear real, com grandes líderes mundiais temendo pelas suas cidades, justamente com medo da arma que não param de produzir e acumular. O que eu acho mais incrível em 007, totalmente oposto dos sensacionais trabalhos de Resnais e John Hersey, é que a bomba nuclear é quase uma experiência lúdica, assume um caráter de entretenimento puro, como se fosse uma versão adoro passar por hurricanes com meu amor da Guerra Fria. Além disso, o filme conta com um vilão maravilhoso, tem roubo de avião, tubarão e muita pegação, além várias cenas com Sean Connery sem camisa. Não aprecio isso por tesão, mas pelo fato dele ser muito peludo, tem pêlos até nas costas, e com Daniel Craig - que eu adoro também - as coisas são muito assépticas, não tem um pelinho no sovaco. Sei que reflete esse mundo de homens com pernas raspadas e tal, mas acho bom termos também essa outra referência de macho. Então, sobre a abertura, continua a influência da Pop Art, mas com o tema ~aventura submarina~, tendo como destaque a brincadeira das silhuetas femininas nadando.
Com 007 só se vive duas vezes (1967)
Todo mundo que costuma jogar videogame já passou pela situação de penar trocentas horas até chegar no último chefe, às vezes são quatro e tantas da manhã quando você chega lá, jurando que só vai conseguir terminar às sete, daí na primeira tentativa tudo se resolve facilmente. O gasto de tempo fora muito maior no segundo ou terceiro chefão lá no começo do jogo. Há nessa situação a mesma frustração que existe nesse filme por conta da revelação do número 1 da Spectre, um absoluto fanfarrão que realmente se confunde com a paródia de Mike Myers e que ainda escapa, voltando nos filmes seguintes. O grande trunfo dessa produção é tomar a Guerra Espacial como mote, tanto pelos satélites sendo sequestrados, com efeitos especiais pré-2001 - Uma Odisséia no Espaço (1968), como pela clara evidência de que o Reino Unido não ocupava o velho espaço na macropolítica internacional. James Bond surge aqui como uma alternativa diante do inevitável embate entre as super-potências, como se o serviço secreto da rainha tivesse sido o real responsável, numa micropolítica que não está nos livros de história, por evitar uma guerra nuclear. Essa é a pior abertura da década, não possui qualquer influência da Pop Art, apostando em desenhos de alvos, colagens e fusões não bem sucedidas, com intuito de deixar claro que se o tema anterior era água, agora a história vai dialogar com o fogo.
007 a serviço secreto de Sua Majestade (1969)
Sean Connery abandona o papel de James Bond nesse filme, oficialmente por acreditar que já estava velho para o personagem do agente sedutor, mas também pelo cansaço imposto pela rotina produtiva da franquia e pelo assédio da imprensa (sempre ela enchendo o saco!). Ele terminaria voltando em Os Diamantes são Eternos (1971), porque o seu substituto, George Lazenby, não havia agradado os produtores, porque o público britânico não tinha aceitado bem que um australiano servisse de símbolo dos modos ingleses. Um escocês podia, um australiano não. Há uma contradição não inocente nesse filme: mesmo apropriando superficialmente a cultura hippie, fazendo referências às viagens de LSD como experimentos do vilão, Bond está muito mais casto, termina se apaixonado e casando, atitude totalmente discrepante da posição de Sean Connery, afinal ele passava a impressão hedonista que estava comendo não só as personagens, mas as atrizes e as assistentes técnicas em geral. A abertura faz uma retrospectiva dos outros filmes através de inúmeros personagens que não o próprio agente, brincando vez ou outra com o formato de uma vagina sob a voz marcante de Louis Armstrong.
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sexta-feira, 16 de novembro de 2012
Los Muertos
(Publicado originalmente no Filmologia)
Se tomarmos como referência La Liberdad (Argentina, 2001), o filme anterior de Lisandro Alonso e por enquanto seu mais intenso trabalho cinematográfico, o início de Los Muertos (Argentina, 2004) lembra um pouco o plano em que a câmera abandona o lenhador, personagem que acompanhamos fielmente, para seguir sozinha, um tanto suspensa, desvendando texturas de uma mata fechada até o surgimento de uma caminhonete ao fundo. A natureza apaziguada pelo cineasta sofre, enfim, a intervenção humana. Aqui, mais uma vez, a câmera, como sob efeito de um wingardium leviosa, adentra o espaço essencialmente verde, isolado, brincando vez por outra com o foco numa lição imersiva entre lentes, galhos e folhas, até deixar transparecer alguns corpos mortos, possivelmente de indígenas assassinados. Surge a dúvida diante do enigma: talvez seja uma câmera subjetiva; não só isso, talvez estejamos vendo a cena do crime pelos olhos do algoz ou de um dos algozes até que vislumbramos um corpo enrijecido passando. A natureza e a espectatorialidade sofrem mais uma vez a intervenção humana: o algoz se foi, a câmera registra, então, os passos de uma última vítima, o foco insinua um olhar de despedida do ambiente bucólico ou não, talvez não seja isso, talvez Alonso esteja apenas nos obrigando a testemunhar o acontecimento responsável pelo tempo passado pelo protagonista, o belo Argentino Vargas, na prisão, dado revelado depois de um longo fade e de uma interminável sequência de afazeres domésticos prisionais. Acompanhamos sua saída, quando ele deixa uma situação de reclusão forçada para enfrentar uma reclusão induzida no meio de uma floresta tropical, lugar que morava anteriormente, lugar que precisa voltar, acostumar-se e com o qual vai re-estabelecendo gradualmente um estado de integração.
Na busca de Vargas para restaurar um passado interrompido, acompanhado do encontro com uma familiar deixada de lado, numa adaptação meio Coração das Trevas, menos Apocalipse Now, Alonso vai reforçando seu projeto de cinema. A compra de um presente para a filha, ainda que não saiba a idade que ela deve estar; o encontro com uma prostituta e o sexo cru, sem qualquer articulação de sensualidade e erotismo; os breves rituais de despedida da civilização, um cigarro industrializado, uma conversa antes do barco ou toda sequência de limpeza do rosto embrutecido (cortar o cabelo, raspar a barba, trocar a roupa). Aliás, há, não sei se de maneira intencional, uma diferença diante dos outros filmes pela intrigante beleza do protagonista: mesmo estando um longo tempo encarcerado, Argentino Vargas possui um corpo bronzeado, numa cor que parece a conjunção de várias outras cores; seu cabelo grisalho resplandece, cortado ou não; ele mantém uma efígie portentosa, é barrigudo, mas exibe músculos rijos; possui uma face firme, de expressões duras, rigorosas; parece talhado por mãos indígenas abarcando traços de várias culturas e, claro, ostenta um comportamento sóbrio, revelando-se supra-independente da sociedade, capaz de qualquer ato para sobreviver absolutamente sozinho. O cinema do personagem – pós-dramático, que seja – atinge outro patamar não necessariamente por intervenção do cineasta, mas pela força expressiva – mesmo da não-expressão – do ator. Sua trajetória, de fato, marca uma transformação do sensível, o campo sonoro é inteiramente remixado, o rio traz um silêncio perdido e avassalador, as árvores servem de guia com os galhos que se batem, os insetos e os seus sons parecem se multiplicar, de modo que quanto mais entra na floresta, mais a câmera se aproxima de La Liberdad, ou seja, assume-se como uma testemunha do mundo ordinário e da ausência enquanto matéria cinematográfica. O verde, novamente, preenche toda a tela.
Durante o período em que Vargas ainda está na prisão, um dos personagens secundários que aparecem e somem comumente nos filmes do argentino, ao produzir uma cadeira manualmente, comenta que “o resultado do trabalho fica melhor com o tempo”. Alonso parece transpor essa lógica dos artesãos que passam a vida produzindo objetos similares, para seus planos cada vez mais longos, como se mantivesse a crença de que é necessário esperar para conseguir aprimorar seu estilo hiperminimalista. A espera também está presente na alimentação sem intermediários e no olhar sobre gerações que lança no final de Los Muertos, pois diferentemente dos ‘civilizados’, os anos podem correr, as décadas podem passar, mas a infância na mata continuará sem grandes mudanças. Avô, filha e neto comungam do mesmo tempo, de modo que os brinquedos da última cena surgem como imagem de uma utopia pessoal. No entanto, se globalmente formos pegar os filmes do cineasta, sua trajetória só pode ser pensada como uma história da derrocada, todos elementos de um cinema artesanal, repetidos a exaustão, vão pouco a pouco perdendo ênfase, tornando-se fuligem, arruinando um ímpeto estético. Como disse um amigo certa vez, exagerando, claro, é possível escrever uma mesma crítica e usá-la para todos os filmes de Alonso. Seja como for, a decadência pode já ser percebida em Los Muertos, pois na tentativa de fazer um filme irmão do anterior, com um apuro fotográfico mais evidente, destoa da condição primitiva da narrativa com uma sofisticação rendida. Se a morte do tatu no mais antigo aparece como uma cena chave para a simbiose entre homem e natureza, algo almejado com os favos de mel no segundo, termina abandonado com a morte da cabra pelas mãos de Vargas, com a retirada de suas vísceras diante da câmera, cadenciando uma vontade de concessão narrativa, algo que explode nas películas seguintes. Há o momento em que fazer cadeiras é novo, cheio de vigor e há o momento em que fazer cadeiras para sempre nada mais é que conformismo. Alonso deveria saber disso.
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Cinema
Dos en la Vereda
(Publicado originalmente no Filmologia)
Com os olhos certamente encantados pelo tédio como um problema filosófico, Lisandro Alonso, em parceria com Catriel Vildosola, sacou sua câmera em direção ao seu primeiro filme, Dos en la Vereda (Argentina, 1995), esboçando um curta de quatro minutos que, numa única tomada, mostra dois amigos sentados embaixo de uma marquise numa viela. Eles bebem uma Quilmes, observam o mundo com desinteresse, soltando eventuais e breves frases sobre uma mulher que passa, sobre um convite nunca efetivado ou sobre a necessidade de comprar outra cerveja. Parecem cansados, enfadados, escutam rádio e fumam um cigarro, enquanto os diretores traçam de maneira bastante minimalista um registro da ausência por meio de um tempo que se dilata, um tempo arrastado em que nada acontece até o fim. Há, contudo, uma ambiguidade nas imagens, pois o tédio não surge apenas como um estado sem estímulo, o direto contrário do afeto no sentido literal de afetar, mas como um comportamento político em potência: vindo do termo latim tædium, do verbo tædere, traduzido como fastio, desgosto, aborrecimento, dissabor, enjôo, repugnância, tudo que enfada, molesta, cansa, incomoda, o conceito pode ser pensado como uma aversão completa diante dos rumos de uma sociedade mecanizada e racional que perdeu as certezas de uma fé, uma negação tão abrupta que produz uma absoluta indiferença diante da realidade. Com a ascensão reivindicada pelo Romantismo, o tédio é uma experiência própria da Modernidade, uma perda de significado, a mortificação simbólica do ser.
A apatia provinda desse estado, para alguns filósofos um estado que reforça propriedades de nossa humanidade, é marcada também por um desinteresse estético, ainda que Heidegger, dando uma conotação existencialista ao debate, destaque o tédio como o sentimento que revela a totalidade das coisas em sua indiferença. Essa é a premissa, inclusive, que inspira Alonso em boa parte de seu cinema. Há uma busca pelo momento menor entre os momentos que deveriam ser maiores e dignos de lembranças, o tédio é o tempo que não deve ser lembrado depois que estamos curados, é um tempo tentador, onde todos os movimentos forçados nos levam à falta de ação. Trata-se de um estado que funciona como resposta, um instinto de negatividade intenso por entender as arestas vacilantes de um sistema opressor, desprezando-as em absoluto, podendo chegar ao limite de tirarmos a própria vida para afirmar o desacordo. O tédio é repetição, são os jogos, os cigarros e as pequenas distrações, não necessariamente uma ausência de sentir, mas a impossibilidade de se emocionar como os dados de um mundo deveras cartografado. A própria câmera de Alonso parece sem grande interesse pelos personagens embaixo da marquise, as lentes flagram os dois rapazes apenas por acaso, observando-os por um breve tempo até seguir adiante. A amizade em cena não está distante do desinteresse, um parece totalmente previsível para o outro, como se ambos já soubessem decoradas todas as histórias – elas não serão mais contadas – de modo que marcam aquele contato ínfimo e íntimo através da indiferença.
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Cinema
Sobre homens e ratos
James Bond se consolidou ao longo das últimas seis décadas não apenas como um ícone ocidental de masculinidade, mas como o símbolo cinematográfico maior de um glamour heterossexual, também heteronormativo, por meio da figura mítica do homem britânico de meia idade, charmoso, inteligente, bem vestido, boêmio, galante, sagaz e com uma forte inclinação machista. Nada é capaz de irritar tanto Bond quanto uma mulher lhe ultrapassando no trânsito. Seja como for, mesmo não sendo a melhor cena do filme, menos ainda da franquia, a sequência de Skyfall (EUA / Reino Unido, 2012) em que o vilão, interpretado por Javier Bardem, seduz e coloca a orientação sexual do agente secreto em dúvida, pode ser considerada a mais emblemática dos últimos tempos. Bardem começa amarrando Bond numa cadeira, ele abre a camisa do agente, passa a mão sobre uma cicatriz no peito dele, então acaricia lentamente um mamilo para depois acariciar o outro. A sala de cinema essencialmente hétero reagiu com o típico “hmmmmmmmmm” vindo diretamente do fundão da 4ª série B. Em seguida, o vilão passa lentamente a mão no pescoço de 007, enquanto conta uma história sobre como exterminou uma praga de ratos de sua ilha: atraiu todos eles para um baú, lacrou e lançou no mar, de forma que os animais começaram a comer uns aos outros até sobrarem apenas dois ratos. “Então, nós os soltamos de volta na ilha, mas a partir daquele momento aqueles dois ratos só se alimentariam de ratos. Nós mudamos a natureza deles”. O vilão solta, então, a pergunta que novamente estimularia a plateia num “hmmmmmmmmm” 4ª série B por causa do duplo sentido na legenda em português: “Bond, nós somos como esses dois ratos, por que não nos comemos?”. Bardem pega com força nas coxas bem abertas do agente secreto, enfatizando que existe primeira vez para tudo. Acontece que Daniel Craig, para desconcerto da plateia masculina que se projeta nele, responde a frase capaz de ressignificar toda história do agente secreto: “e o que faz você pensar que seria a minha primeira vez, meu caro?”. Não devem ter sido poucos, que depois disso, foram assistir a todos os filmes da franquia em busca dos indícios.
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Cinema
quarta-feira, 10 de outubro de 2012
A Autonomia das Imagens, por Jacques Rancière
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quarta-feira, 3 de outubro de 2012
Plástica Divina
Estava sentando em uma das últimas cadeiras do ônibus pensando no meu horário matutino, calculando que ao sair de dez para as 7h, chego no trabalho às 7h20; que ao sair às 7h em ponto, chego às 7h50 e que ao sair às 7h10, chego somente às 8h30 e perco a hora, quando escuto uma senhora comentar com outra sobre a visita que fez ao cirurgião depois de sua plástica mais recente no rosto. Ao vê-la, ele soltou "ficou ótimo, olhando assim nem parece que fui eu o responsável pela obra!". Ela prontamente respondeu: "é porque não foi você, doutor. Foi Deus, você foi apenas um instrumento!". Sei que depois começaram a falar sobre valores, que o povo mistificava o preço, que não era tão caro, a amiga parecia interessada, mas como estava um barulho danado, perdi boa parte da conversa, só voltando a escutar muito tempo depois, quando a primeira senhora enfatizou que era a sua terceira plástica e que não seria a última, concluindo que todas seriam feitas com ele / Ele. Realmente bateu a dúvida: não sabia mais se ela estava falando do médico ou de Deus.
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Cotidiano
segunda-feira, 1 de outubro de 2012
Duras e o Fim
(Publicado originalmente no Filmologia)
Não é o caso de enfatizar uma cronologia das formas, mas depois de tantos filmes incisivos no sentido de romper com modelos narrativos clássicos, buscando incessantemente jogar com as possibilidades do contar, Les Enfants (França, 1985), o último filme de Marguerite Duras, extrapola expectativas pelo contrário, não pelo tom radical do experimento ou dispositivo, mas por ser engendrado como um retorno, ou um fim depois do fim, ao convencional. A escritora e cineasta insiste mais uma vez na discussão sobre os processos de nascimento da linguagem, conjugando a vontade inconsolável de falar com uma improvável e dura necessidade de calar. Apostando numa linearidade dos acontecimentos, com personagens cujas vozes saem de suas bocas e não utilizando a câmera para reconstruir o espaço, ela coloca o papel educativo da escola em xeque por meio de Ernesto, uma criança de oito anos num corpo de homem adulto de quarenta, que simplesmente desiste de frequentar as aulas, porque os professores só conseguiam lhe ensinar coisas que ele já sabia. Ao invés da tradicional defesa da educação como a saída para todas as mazelas, a escola representa mais o contato com uma instituição responsável por modelar, de maneira questionável, padrões morais e normas de comportamento. A criança confia no tempo em que ainda consegue desejar uma aula diferente: “esperei toda manhã. Então, esperei mais”.
Duras, alinhando-se ao lado de Zero de Comportamento, de Jean Vigo e En Rachâchant, de Jean-Marie Straub e Danièlle Huillet, procura entender o sentido do recorte pedagógico, compartilhado em dada medida de maneira internacional, do que precisamos aprender e do que podemos deixar de lado, destacando o conhecimento que temos antes de efetivamente entrarmos numa sala. Quase como uma memória pré-linguagem que vai se amortecendo depois da faculdade verbal. Naturalmente, ela destaca em primeiro plano a negação desse modelo de aprendizagem de Ernesto, sem deixar de registrar como funcionam as reações, absolutamente paradoxais, dos adultos que se apropriam de um terror pragmático para educar as crianças. Seja a garota que brinca na escada rolante, quando é surpreendida pela avó dizendo que teve uma menina que ficou com a perna presa e morreu, seja invenções como homem do saco para assegurar que a filha não vá para muito longe, seja como acontece no filme, os pais dizendo que serão presos se Ernesto não voltar à escola. Toda película se arrasta num clima ameno, quase uma comédia, que mesmo tradicional soa estranho por causa da carreira radical de Duras.
Talvez assumindo uma veia psicanalítica, a diretora resolve a crise pela conversa, montando encontros entre o aluno e o professor, este último vai ficando abalado, afinal a criança olha amplamente para fora, mas mantém vontades enclausuradas internamente. É preciso falar. Há certa parábola de que a crise na infância é o mesmo instante repetido em outras crises ao longo da vida, estamos sempre voltando ao final de nossa primeira década quando nos sentimos vulneráveis. Os pais participam do processo formatando linhas secundárias, não necessariamente pontos de vista, soam mais como intervenções do devaneio: as mães colocam seus filhos na escola para irem se acostumando com o fato de que serão abandonados. Ambos precisam se preparar para esse sofrimento: sejam os pais que veem seus filhos crescerem e saírem de casa, escapando de suas mãos como peixes; sejam os filhos que quase sempre enterram seus pais e lutam ao longo dos anos para não esquecerem suas vozes. Junto com o ciúme e a saudade, a vontade de abandonar diz bastante sobre a pessoa, espaço ou instituição que você está abandonando, mas mesmo que sintamos ciúmes ou saudades, o momento do abandono é o tempo político irreparável, o kairos, o momento em que era preciso fazer ou perderia a chance. Então foi lá, fez e tornou a vida tolerável. Les Enfants é um filme para todos aqueles que fugiram e acabaram com as aulas mil vezes antes de se transformarem em professores.
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Cinema
terça-feira, 18 de setembro de 2012
Diálogos
(Publicado originalmente no Filmologia)
Não são poucos os artistas que em determinado momento de suas carreiras terminam meditando sobre os caminhos percorridos através de uma ou outra obra específica, se não assumindo ou parodiando seus clichês, se não escolhendo enterrar a si mesmos num inventário de conquistas, naturalmente usando esse referencial de recorrências para instaurar o início de uma guinada. Il Dialogo de Roma (França, 1983), parece esquadrinhar Marguerite Duras nesses termos, explicitando seus ritmos de criação não como um paradigma fechado, encerrado enquanto processo criativo; também não necessariamente como uma lógica produtiva que não sabe onde vai desembocar, cujo pensamento nasce junto com a escolha dos elementos cinematográficos; mas como um filme em que os quadros parecem desabrochar apenas quando chegam aos olhos do espectador, de modo que a narração só passa a ter sentido – ainda que um sentido aberto e embaraçoso – quando finalmente se transforma em uma terceira experiência. A primeira seria a vivência da história e a segunda, o registro da transmissão dessa história. Duras filma Roma contemplando com especial interesse sua arquitetura e suas sombras, mas o material bruto encarna sua potência enquanto filme, quando diante das imagens capturadas, talvez incerta do filme que fez, está fazendo ou irá fazer, senta ao lado de um rapaz e comenta suas impressões sobre a tessitura narrativa.
Não são poucos os artistas que em determinado momento de suas carreiras terminam meditando sobre os caminhos percorridos através de uma ou outra obra específica, se não assumindo ou parodiando seus clichês, se não escolhendo enterrar a si mesmos num inventário de conquistas, naturalmente usando esse referencial de recorrências para instaurar o início de uma guinada. Il Dialogo de Roma (França, 1983), parece esquadrinhar Marguerite Duras nesses termos, explicitando seus ritmos de criação não como um paradigma fechado, encerrado enquanto processo criativo; também não necessariamente como uma lógica produtiva que não sabe onde vai desembocar, cujo pensamento nasce junto com a escolha dos elementos cinematográficos; mas como um filme em que os quadros parecem desabrochar apenas quando chegam aos olhos do espectador, de modo que a narração só passa a ter sentido – ainda que um sentido aberto e embaraçoso – quando finalmente se transforma em uma terceira experiência. A primeira seria a vivência da história e a segunda, o registro da transmissão dessa história. Duras filma Roma contemplando com especial interesse sua arquitetura e suas sombras, mas o material bruto encarna sua potência enquanto filme, quando diante das imagens capturadas, talvez incerta do filme que fez, está fazendo ou irá fazer, senta ao lado de um rapaz e comenta suas impressões sobre a tessitura narrativa.
Os longos planos-sequências com silhuetas de uma cidade escura, onde tudo se funde e se mistura, ganham contornos individuais nas falas de um e do outro, no diálogo socrático que arrasta a incerteza da penumbra para formas coletivas. A cidade aparece como uma representação da eternidade, dos vestígios enfileirados de diferentes épocas como um tabuleiro preparado para o anacronismo, tabuleiro que também enquadra as temporalidades da própria ação criativa da diretora, cujos instantes passam por cruzamentos dialéticos. Roma é uma cidade de combinações e contaminações. Novamente somos inundados de corredores, praças, fontes, becos e estátuas que não necessariamente correspondem ao interminável diálogo dos amigos ou amantes; daquelas histórias contadas e não bem localizadas numa precisão mnemônica. Ainda assim, são narradas sem cansaço, pois dentro da prática cotidiana dos romanos, as construções se empilham e se atrapalham, as ruínas assumem distintos marcos históricos, como se cada coluna, cada pedaço de pedra reafirmasse uma presença passada, dessas que não podem apelar à ausência para alcançar o esquecido. No meio de um proto-romance esvaziado, da crise de um casal que observa e comenta a cidade que nos obriga a uma memória; Marguerite Duras, consumida pelo diálogo que lhe transforma, descobre então que apenas no inferno de silêncio, pode, enfim, sintetizar os seus desejos definitivos.
segunda-feira, 10 de setembro de 2012
Espectros da narração
(Publicado originalmente no Filmologia)
Não podemos confiar em filmes como India Song (França, 1975), de Marguerite Duras, não por algum tipo específico de deslealdade, mas pela ânsia em romper com os pactos narrativos tradicionais que nos confortam, uma necessidade em afirmar que não se pode narrar como antes, cavando e cruzando discursos que desalinham a relação entre imagem e palavra. Duras coloca-se numa dupla posição, construindo sua carreira como cineasta experimental justamente por voltar às preocupações rudimentares da literatura. India Song é inteiramente narrado por vozes em off, vozes em fluxos de consciência que atravessam distintos patamares da linguagem e do tempo, manchando os enquadramentos com seus espectros semicerrados: Benjamin começa seu famoso artigo sobre o narrador, dizendo que "por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de distante e que se distancia ainda mais". Portanto, a mesma voz que remonta experiências passadas diante de uma dança no salão, pode ser da embaixatriz há alguns anos na França ou na Índia; talvez seja resultado de uma observação, num deslocamento sutil para outro cômodo da mansão, de um homem fora de quadro, mas certamente de olhar arguto e desejos lascivos; ou quem sabe, ser um diálogo ácido entre subalternos escondidos, deste ou de outro tempo, que não deixam passar detalhes sórdidos da protagonista deslumbrada. A estrutura das histórias contadas se acumula nas bordas e acompanha a lógica das monções, os ventos sazonais impossíveis de serem previstos que ocorrem especialmente no Oceano Índico; ventos que são como as relações entre relatos do passado e fantasmas do presente. Trata-se de um fenômeno famoso por deixar à deriva os antigos navegantes árabes e portugueses, pois, como Marguerite Duras e seu projeto de narração, os ventos estão sempre enganando a direção por meio de mudanças violentas e repentinas.
O plano de abertura, quatro minutos até o sol abandonar o céu, define o princípio da longa duração como determinante para o filme: a demora prova uma impressão de imagem, cuja potência só pode ser alcançada submetendo-se ao tempo da espera. India Song não apenas retalha a passagem cronológica, tomando a memória como uma matéria esticada em que o tempo imprime suas diferentes formas, mas segue pelos salões de um espaço em decadência, povoado por fantasmas silenciosos submetidos ao impávido destino da narração. As dimensões das vozes são tão amplas que servem inclusive como vozes dos espectadores, o fora de campo enevoa em absoluto a materialidade do visível. Aliás, a mesma camada sonora, com diálogos e efeitos, foi repetida sobre outras imagens em Son nom de Venise dans Calcutta désert – alcançando relatos para além dos testamentos falsos e das experiências inventadas. Duras reforça com India Song seu interesse pelo Oriente, um interesse que mescla suas próprias lembranças infantis na Indochina com a perspectiva ficcional da vida adulta de escritora, misturando com certa ironia ímpetos coloniais e pós-coloniais, remetendo de maneira cruelmente doce à experiência da derrota. Mantém, assim, um estatuto aristocrático / burguês – momento em que o primeiro precisa se amparar no segundo – de modo que o filme se passa na Índia, numa Índia dos brancos, das histórias que ouviram contar, uma obsessão pelos contos partidos ao meio, obviamente não deixando os saltos franceses de lado e sendo inteiramente filmado numa mansão nos arredores de Paris.
Assim como nos filmes de Grillet, India Song carrega seu espelho no meio do cenário principal, mas o espelho dentro do narrar uma impossibilidade única de narrar funciona menos por seu simbolismo e mais como definidor do espaço, pelo impacto óptico inerente a sua materialidade: personagens saem de quadro para entrarem no espelho, saem do espelho para começarem a falar, a câmera não consegue se decidir pela ilusão como escolha ou pela revelação dos artífices da ilusão como escolha. A mulher caminhando entre indiferenças, paixões, amarguras e prazeres, assim como Marguerite Duras, sente-se em dados momentos paralisada, porque imagina e pode imaginar o quanto quiser em quantas narrativas conseguir, que a vida, simplesmente, poderia ser outra. O Ganges, por exemplo, surge sempre na história dos outros, mesmo que contada pela sua boca, surge como um sétimo continente distante, uma fábula desbotada e incansável. Certamente, Duras está mais preocupada em fazer um exercício de linguagem que necessariamente propor uma aproximação afetiva entre espectadores e narrativa, há algo de Brecht nesse sentido, de modo que costurando formas e temporalidades, consegue traçar uma breve arqueologia dos tipos de narração. Há um pouco da desesperança em morar na Índia rememorada e inventada, pois ainda que rodeada de homens “não é nem prazeroso, nem penoso, nem fácil, nem difícil, não é nada”. Os personagens não estão vivos, nem mortos, comportam-se como tivessem sido destituídos de uma existência, como se fossem apenas uma carcaça, um sotaque, um aborrecimento e um olhar.
O plano de abertura, quatro minutos até o sol abandonar o céu, define o princípio da longa duração como determinante para o filme: a demora prova uma impressão de imagem, cuja potência só pode ser alcançada submetendo-se ao tempo da espera. India Song não apenas retalha a passagem cronológica, tomando a memória como uma matéria esticada em que o tempo imprime suas diferentes formas, mas segue pelos salões de um espaço em decadência, povoado por fantasmas silenciosos submetidos ao impávido destino da narração. As dimensões das vozes são tão amplas que servem inclusive como vozes dos espectadores, o fora de campo enevoa em absoluto a materialidade do visível. Aliás, a mesma camada sonora, com diálogos e efeitos, foi repetida sobre outras imagens em Son nom de Venise dans Calcutta désert – alcançando relatos para além dos testamentos falsos e das experiências inventadas. Duras reforça com India Song seu interesse pelo Oriente, um interesse que mescla suas próprias lembranças infantis na Indochina com a perspectiva ficcional da vida adulta de escritora, misturando com certa ironia ímpetos coloniais e pós-coloniais, remetendo de maneira cruelmente doce à experiência da derrota. Mantém, assim, um estatuto aristocrático / burguês – momento em que o primeiro precisa se amparar no segundo – de modo que o filme se passa na Índia, numa Índia dos brancos, das histórias que ouviram contar, uma obsessão pelos contos partidos ao meio, obviamente não deixando os saltos franceses de lado e sendo inteiramente filmado numa mansão nos arredores de Paris.
Assim como nos filmes de Grillet, India Song carrega seu espelho no meio do cenário principal, mas o espelho dentro do narrar uma impossibilidade única de narrar funciona menos por seu simbolismo e mais como definidor do espaço, pelo impacto óptico inerente a sua materialidade: personagens saem de quadro para entrarem no espelho, saem do espelho para começarem a falar, a câmera não consegue se decidir pela ilusão como escolha ou pela revelação dos artífices da ilusão como escolha. A mulher caminhando entre indiferenças, paixões, amarguras e prazeres, assim como Marguerite Duras, sente-se em dados momentos paralisada, porque imagina e pode imaginar o quanto quiser em quantas narrativas conseguir, que a vida, simplesmente, poderia ser outra. O Ganges, por exemplo, surge sempre na história dos outros, mesmo que contada pela sua boca, surge como um sétimo continente distante, uma fábula desbotada e incansável. Certamente, Duras está mais preocupada em fazer um exercício de linguagem que necessariamente propor uma aproximação afetiva entre espectadores e narrativa, há algo de Brecht nesse sentido, de modo que costurando formas e temporalidades, consegue traçar uma breve arqueologia dos tipos de narração. Há um pouco da desesperança em morar na Índia rememorada e inventada, pois ainda que rodeada de homens “não é nem prazeroso, nem penoso, nem fácil, nem difícil, não é nada”. Os personagens não estão vivos, nem mortos, comportam-se como tivessem sido destituídos de uma existência, como se fossem apenas uma carcaça, um sotaque, um aborrecimento e um olhar.
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Mentira e sobrevivência
(Publicado originalmente no Filmologia)
Quando Walter Benjamin escreve, acredito que em um dos ensaios da infância em Berlim, sobre a impossibilidade de recuperar totalmente o passado, em específico o campo do esquecido, defende incisivamente essa natureza própria da memória – largando pedaços pelo caminho, deturpando presenças e colhendo mentiras – como a única forma de compreendermos a saudade. Se fôssemos enumerar, perderíamos os números de quantas vezes contamos um mesmo passado de formas diferentes. Seja pelo transcorrer dos anos que ampliam a distância entre o acontecimento e o presente, obrigando-nos inconscientemente ao malabarismo de acentos e vírgulas; seja pela distorção premeditada, que adapta curvas narrativas aos ouvidos de um e de outro, personalizando sentidos para cada caso, no intuito de tirar vantagens ou enfatizar derrotas. L’Homme qui Ment (França, 1968), além de uma maturidade cinematográfica representada pela simultaneidade de quadros compondo um único enquadramento, firma o encontro de Alain Robbe-Grillet com seus mestres: por meio de um rapaz ambíguo, ora traidor, ora herói, cuja palavra serve para inventar passados sobrepostos e reversíveis, o filme toma como ponto de partida os paradigmas de Proust e Bergson, colocando a memória como uma massa dinâmica, passível a transmutações a cada vez que nos apoderamos dela. Boris Varissa (Jean-Louis Trintignant) sobreviveu à experiência da guerra sob rostos emprestados, volta à pequena aldeia para contar o fim do líder Jean Robin e enquanto o trauma não lhe deixa dormir – acorda sempre surpreso por estar vivo – sua inspiração pela mentira consegue lhe salvar.
A preocupação do autor pela história como um campo de conquista da representação e da narração, transpõe a mais comum linha do quem conta e sobre quem se conta, para focar na forma como se conta e quando se conta, reforçando as maneiras concomitantes e contraditórias de arranjos de passado. Não só isso: finca na película que ao manejarmos sem controle reminiscências através do véu da ficção, estimulamos o desaparecimento das propriedades de ambas as dimensões, de modo que o movimento de voltar sempre, de lembrar sempre é também um movimento de deslocar sempre, como quem troca de lugar um tesouro dentro de um labirinto. Moedas caem e novas moedas entram. Assim, a sensação do espectador diante da instabilidade narrativa de L’Homme qui Ment é semelhante à da leitura de O Processo, de Franz Kafka: quase todos os leitores pensam em desistir no miolo do livro, enquanto o protagonista vaga por corredores intermináveis em busca de uma resposta, afundando mais e mais nos trâmites burocráticos de um caso que sequer entende, não conseguindo lembrar por onde passou e para onde precisa seguir. No entanto, quando insistimos até o fim, percebermos que as digressões arredias da narrativa reverberam como diretriz sensorial, ou seja, precisamos passar pela insuportável incapacidade cognitiva para que nossa experiência estética se aproxime intimamente da experiência diegética do personagem. A identidade de Boris Varissa deixa, enfim, de ser impenetrável, mas o caminho permanece árduo, pois como um “caos de aparência”, para usar o termo de André Parente diante da imagem de Proteu, o Deus grego que podia assumir todas as formas, a figura do rapaz “continua a ser puro interstício, puro possível, uma virtualidade criadora”.
A deambulação no tempo de Boris Varissa, transitando entre a posição de traidor e salvador do líder da resistência Jean Robin, afirmando e negando, dizendo e desdizendo, dialoga diretamente com os traumas nacionais colocados embaixo do tapete por determinadas sociedades. Talvez a mais famosa história nesse sentido seja a de Anja Rosmus, mulher alemã que inspirou o filme A Cidade Sem Passado (Alemanha, 1990), de Michael Verhoeven, que ainda durante a escola começou a pesquisar sobre a sua cidade natal, que oficialmente foi palco de um campo nazista de trabalhos forçados, firmando-se ao longo das décadas como um dos poucos símbolos de resistência ao nazismo dentro da própria Alemanha. No entanto, a garota não conseguiu investigar o bastante para escrever a redação Minha cidade durante o Terceiro Reich, recebeu conselhos da mãe alertando para só falar coisas positivas, produzindo um material raso, afinal sua entrada não havia sido permitida nos arquivos municipais e aparentemente os líderes mais velhos – executivos, políticos, padres e professores – não conseguiam lembrar o período citado. Havia uma espécie de amnésia coletiva e provocada. Já na universidade, cursando História, essa mesma mulher decidiu voltar ao assunto e durante suas pesquisas preliminares, descobriu um jornal local da época da Segunda Guerra Mundial, cujo editorial defendia todos os preceitos de Adolf Hitler. Inesperadamente, ela se deu conta que o texto havia sido escrito por um de seus professores eméritos e, assim, foi novamente aos arquivos, encontrando uma série de barreiras: “primeiro, dizem que os arquivos estão emprestados; depois, que estão velhos e esfarelados demais para serem usados; mais tarde, que o material diz respeito a pessoas que ainda estão vivas, cuja privacidade não pode ser violada”, relata o historiador Robert Rosenstone.
Ao perceber que seu trabalho estava sendo obstruído, Anja Rosmus processou a cidade e ganhou o direito de entrar nos espaços, descobrindo em seguida que os documentos haviam desaparecido. Ela, contudo, não desistiu e aos poucos foi colhendo vestígios que confirmavam suas suspeitas: empreendedores judeus foram denunciados por alguns dos líderes empresariais e eclesiásticos de sua cidade natal, alguns foram mortos, outros viveram em campos de trabalhos forçados e inúmeros foram submetidos a experiências médicas. Toda produção jornalística pós-guerra que colocava o município como um símbolo de resistência havia sido resultado de uma ação coletiva dos moradores para reescrever a história, transformando os algozes ainda vivos numa espécie de heróis fantasmas (ação coletiva semelhante a que possibilita a narrativa de A Vila [EUA, 2004]), de M. Night Shayamalan). Vários chegavam a relatar seus grandes feitos pelos judeus durante o conflito, quando, na verdade, tinham arremessado tijolos nas casas de quem tentava ajudar. Ciente que essa situação não era específica em cidades da Alemanha, na sua autobiografia Robbe-Grillet conta a história dos franceses simpatizantes com o regime nazista, incluindo seus pais, de maneira fria, sem acusar ou defender, de modo que L’Homme qui Ment remete várias vezes aos documentos como provas de identidade: “preciso saber quem você é para saber se você está na lista de suspeitos”. Se a guerra incendeia a brusca relação entre dois grupos humanos em desigualdade de poder, o pós-guerra funciona como o acerto de contas da história, uma vingança, temporariamente arremessando os algozes na parede. Só que Boris Varissa possui documentos falsos e transita pelas duas épocas, saltando de um lado para o outro.
Durante a investida do protagonista sobre a aldeia, contando versões e mais versões sobre os acontecimentos durante a guerra, ele encontra um trio de mulheres que esperam por Jean Robin: são como moiras desfiando linhas passadas, no intuito de interferir, modificar, explicar e costurar as histórias contadas pelo falastrão, tudo de maneira bastante incerta, teatral, com uma associação de imagens espacial e temporalmente disjuntivas. Uma delas brinca de cabra-cega com a confiança de que as outras não lhe deixarão cair ao mesmo tempo em que simboliza um olhar agudo como morte, olhar de quem possui o tear, sabe das mentiras de Varissa e cria uma condição singular, nem crença, nem descrença, refazendo o material fílmico por meio da encenação. Dentre as mil formas de morrer, Jean Robin morre um pouco de todas elas. Sem dúvida, a compulsão pela mentira rompe em definitivo todos os laços entre imagem e verdade, não sabemos ao certo se o casal está se amando ou se matando, não conseguimos diferenciar a brincadeira da briga – como não lembrar Da janela do meu quarto?, de Cao Guimarães – iniciando um jogo em que o protagonista entrega seu companheiro de luta, depois explica como o salvou ou poderia ter salvado, para então assassiná-lo. Se um fantasma de carne não pode resistir ao tempo, certamente sua existência é baseada no ensaio não necessariamente na vivência. Não existem lembranças, Boris Varissa é um ator. Essa é sua profissão.
A preocupação do autor pela história como um campo de conquista da representação e da narração, transpõe a mais comum linha do quem conta e sobre quem se conta, para focar na forma como se conta e quando se conta, reforçando as maneiras concomitantes e contraditórias de arranjos de passado. Não só isso: finca na película que ao manejarmos sem controle reminiscências através do véu da ficção, estimulamos o desaparecimento das propriedades de ambas as dimensões, de modo que o movimento de voltar sempre, de lembrar sempre é também um movimento de deslocar sempre, como quem troca de lugar um tesouro dentro de um labirinto. Moedas caem e novas moedas entram. Assim, a sensação do espectador diante da instabilidade narrativa de L’Homme qui Ment é semelhante à da leitura de O Processo, de Franz Kafka: quase todos os leitores pensam em desistir no miolo do livro, enquanto o protagonista vaga por corredores intermináveis em busca de uma resposta, afundando mais e mais nos trâmites burocráticos de um caso que sequer entende, não conseguindo lembrar por onde passou e para onde precisa seguir. No entanto, quando insistimos até o fim, percebermos que as digressões arredias da narrativa reverberam como diretriz sensorial, ou seja, precisamos passar pela insuportável incapacidade cognitiva para que nossa experiência estética se aproxime intimamente da experiência diegética do personagem. A identidade de Boris Varissa deixa, enfim, de ser impenetrável, mas o caminho permanece árduo, pois como um “caos de aparência”, para usar o termo de André Parente diante da imagem de Proteu, o Deus grego que podia assumir todas as formas, a figura do rapaz “continua a ser puro interstício, puro possível, uma virtualidade criadora”.
A deambulação no tempo de Boris Varissa, transitando entre a posição de traidor e salvador do líder da resistência Jean Robin, afirmando e negando, dizendo e desdizendo, dialoga diretamente com os traumas nacionais colocados embaixo do tapete por determinadas sociedades. Talvez a mais famosa história nesse sentido seja a de Anja Rosmus, mulher alemã que inspirou o filme A Cidade Sem Passado (Alemanha, 1990), de Michael Verhoeven, que ainda durante a escola começou a pesquisar sobre a sua cidade natal, que oficialmente foi palco de um campo nazista de trabalhos forçados, firmando-se ao longo das décadas como um dos poucos símbolos de resistência ao nazismo dentro da própria Alemanha. No entanto, a garota não conseguiu investigar o bastante para escrever a redação Minha cidade durante o Terceiro Reich, recebeu conselhos da mãe alertando para só falar coisas positivas, produzindo um material raso, afinal sua entrada não havia sido permitida nos arquivos municipais e aparentemente os líderes mais velhos – executivos, políticos, padres e professores – não conseguiam lembrar o período citado. Havia uma espécie de amnésia coletiva e provocada. Já na universidade, cursando História, essa mesma mulher decidiu voltar ao assunto e durante suas pesquisas preliminares, descobriu um jornal local da época da Segunda Guerra Mundial, cujo editorial defendia todos os preceitos de Adolf Hitler. Inesperadamente, ela se deu conta que o texto havia sido escrito por um de seus professores eméritos e, assim, foi novamente aos arquivos, encontrando uma série de barreiras: “primeiro, dizem que os arquivos estão emprestados; depois, que estão velhos e esfarelados demais para serem usados; mais tarde, que o material diz respeito a pessoas que ainda estão vivas, cuja privacidade não pode ser violada”, relata o historiador Robert Rosenstone.
Ao perceber que seu trabalho estava sendo obstruído, Anja Rosmus processou a cidade e ganhou o direito de entrar nos espaços, descobrindo em seguida que os documentos haviam desaparecido. Ela, contudo, não desistiu e aos poucos foi colhendo vestígios que confirmavam suas suspeitas: empreendedores judeus foram denunciados por alguns dos líderes empresariais e eclesiásticos de sua cidade natal, alguns foram mortos, outros viveram em campos de trabalhos forçados e inúmeros foram submetidos a experiências médicas. Toda produção jornalística pós-guerra que colocava o município como um símbolo de resistência havia sido resultado de uma ação coletiva dos moradores para reescrever a história, transformando os algozes ainda vivos numa espécie de heróis fantasmas (ação coletiva semelhante a que possibilita a narrativa de A Vila [EUA, 2004]), de M. Night Shayamalan). Vários chegavam a relatar seus grandes feitos pelos judeus durante o conflito, quando, na verdade, tinham arremessado tijolos nas casas de quem tentava ajudar. Ciente que essa situação não era específica em cidades da Alemanha, na sua autobiografia Robbe-Grillet conta a história dos franceses simpatizantes com o regime nazista, incluindo seus pais, de maneira fria, sem acusar ou defender, de modo que L’Homme qui Ment remete várias vezes aos documentos como provas de identidade: “preciso saber quem você é para saber se você está na lista de suspeitos”. Se a guerra incendeia a brusca relação entre dois grupos humanos em desigualdade de poder, o pós-guerra funciona como o acerto de contas da história, uma vingança, temporariamente arremessando os algozes na parede. Só que Boris Varissa possui documentos falsos e transita pelas duas épocas, saltando de um lado para o outro.
Durante a investida do protagonista sobre a aldeia, contando versões e mais versões sobre os acontecimentos durante a guerra, ele encontra um trio de mulheres que esperam por Jean Robin: são como moiras desfiando linhas passadas, no intuito de interferir, modificar, explicar e costurar as histórias contadas pelo falastrão, tudo de maneira bastante incerta, teatral, com uma associação de imagens espacial e temporalmente disjuntivas. Uma delas brinca de cabra-cega com a confiança de que as outras não lhe deixarão cair ao mesmo tempo em que simboliza um olhar agudo como morte, olhar de quem possui o tear, sabe das mentiras de Varissa e cria uma condição singular, nem crença, nem descrença, refazendo o material fílmico por meio da encenação. Dentre as mil formas de morrer, Jean Robin morre um pouco de todas elas. Sem dúvida, a compulsão pela mentira rompe em definitivo todos os laços entre imagem e verdade, não sabemos ao certo se o casal está se amando ou se matando, não conseguimos diferenciar a brincadeira da briga – como não lembrar Da janela do meu quarto?, de Cao Guimarães – iniciando um jogo em que o protagonista entrega seu companheiro de luta, depois explica como o salvou ou poderia ter salvado, para então assassiná-lo. Se um fantasma de carne não pode resistir ao tempo, certamente sua existência é baseada no ensaio não necessariamente na vivência. Não existem lembranças, Boris Varissa é um ator. Essa é sua profissão.
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Cinema
sexta-feira, 7 de setembro de 2012
Imortalidade e inexistência
(Publicado originalmente no Filmologia)
She said, “I know what it’s like to be dead.I know what it is to be sad.”And she’s making me feel likeI’ve never been born.Lennon/McCartney – She Said, She Said
Mesmo escrevendo o roteiro de L’Immortelle pouco antes de Ano Passado em Marienbad, Alain Robbe-Grillet só conseguiu finalizar o projeto dois anos depois de Alain Resnais, usando a experiência concreta do cineasta sobre seu texto para traçar sua própria vereda cinematográfica. Por meio de similares enquadramentos, deslizes laterais de câmera e um programa minimalista de encenação, o escritor-cineasta enfatiza em sua primeira incursão audiovisual não apenas uma proposta que desata os nós do compromisso com o realismo clássico, mas uma narrativa transformada em barafunda através de ruínas de linguagem, descascadas e cuidadosamente colhidas de camadas subterrâneas da realidade psíquica freudiana. Assim como seus companheiros de Rive Gauche, Marguerite Duras, Agnès Varda e Chris Marker, ele escava no campo do empírico dimensões transcendentais, por meio de sua poética da sugestão, nunca definição, costurando delírios e camafeus na manta do visível. Como instantes que perduram, suas imagens, portanto, carregam duplicidades, contradições, são raízes de um estímulo vertiginoso de desorientação, fazendo com que Grillet, em seu fascínio por lugares desconhecidos, invada a história monumental com suas versões alternativas e espaços de subjetividade. Como escreveu Deleuze, o filme não segue “o curso empírico do tempo como sucessão de presentes, nem sua representação indireta como intervalo ou como todo, é sua apresentação direta, seu desdobramento constitutivo em presente que passa e passado que se conserva, a estrita contemporaneidade do presente com o passado que ele será, do passado com o presente que ele foi”. Os personagens perambulam numa cidade inundada de significantes, responsáveis por significados confusos, instáveis; tropeçam em temporalidades, confiando sua existência na palavra, mas palavra não como explicação, palavra como um código de impossível redução.
Acompanhamos em L’Immortelle o encontro decisivo e breve em Istambul de um homem melancólico, perdido e procurando por informações, com uma sedutora mulher, numa série de passeios pelo campo limítrofe de paradigmas territoriais. Caminham com tempo livre para se apaixonar, entram nas mesquitas, visitam ruínas, declinam passagens e voltam para o ponto inicial. A mulher apenas quer ser desejada e isso é pontuado numa consciência cinematográfica, que toma como princípio de certeza, contraditoriamente, a lógica de que a sedução presume talhos de mistério. "Todo viajante ou residente europeu no Oriente tinha de se proteger de suas influências desestabilizadoras. As excentricidades da vida oriental, com seus calendários esquisitos, suas configurações espaciais exóticas, suas línguas irremediavelmente estranhas, sua moralidade de aparência perversa, eram bastante reduzidos quando apresentados num estilo de prosa normativa", escreve Edward Said. A figura feminina se torna um totem: da brincadeira com a noção de identidade nacional aos seus delineamentos faciais, ela pode ser francesa, turca ou grega; dança com o ventre quase furtando uma cultura inteira; é fantasma, sonho, vinga-se como uma lembrança que insiste em aparecer. O francês lançando seus protagonistas num estado letárgico, ele se apaixona pela imagem dela, imagem que desaparece, não cansa de projetar o que Virginia Woolf comenta na sua conferência Profissão para mulheres: “demorou para morrer. Sua natureza fictícia lhe foi de grande ajuda. É muito mais difícil matar um fantasma que uma realidade”. A disjunção cronológica entre os planos reforça a obsessão do rapaz em reencontrar a mulher que lhe escapa, cujas informações são falsas e cuja materialidade não respeita os trâmites de uma cognição racional. Tal qual a tradicional cena de horror do labirinto de espelhos, nesse caso sob uma trilha sonora concretista, Grillet como um malabarista do tempo e do espaço, utiliza o movimento ou a ausência de movimento para que a passagem de um andarilho em frente à câmera seja um sinal para a transmutação da paisagem.
O filme enquanto exercício extremo de descontinuidade narrativa, encerrado entre certezas moribundas e a exacerbação do mistério, mantém as repetições com variações gradativas do Novo Romance, desenhando e redesenhando a mesma imagem, de tal modo que a mulher some aos poucos de uma sequência de fotografias passadas ad nauseam pela mão do rapaz. Grillet alfineta uma percepção histórica convencional: a mesquita X é a mais antiga da cidade, contudo foi destruída e reconstruída depois da guerra; essas esculturas são do período helênico, mas foram produzidas há trinta anos; aqui fica um cemitério dos servos de Constantino, mas as tumbas estão vazias, ninguém está enterrado sob essa terra. O cineasta não cansa de sobrepor tempos coletivos e tempos individuais: “não olhei o relógio. Se tivesse olhado, descobriria que tinha menos de quatro horas para conhecê-la e talvez isso tivesse me desesperado. Como não olhei, escoei pelo presente”. Não adianta olhar os relógios ou passantes que são estátuas, não adianta camuflar desejos obtusos com persianas fechadas, o casal não pode se beijar diante da geometria do corpo inanimado, emoldurado pela câmera rígida, câmera como uma fita métrica, um pouco mais desvairada que a utilizada por Resnais em Marienbad. “Tudo é produto de sua imaginação”, ela avisa. Grillet parece testar o próprio campo do inteligível, cruzando peregrinos, cabarés e recalques, observando jovens que se desnudam sob qualquer pretexto, mulheres sequestradas, amarradas, flageladas, num jogo sadista e erótico não efetivado pelo protagonista impotente. O filme termina, ela morre, ele morre, ninguém morre, ela continua viva na cabeça dele, porque a imortalidade só pode estar contida em alguém que, decerto, nunca existiu.
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terça-feira, 4 de setembro de 2012
Jornalista
ou como se desesperar pelo novo sem conseguir lembrar de absolutamente nada.
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Comunicação
terça-feira, 7 de agosto de 2012
O cinema pernambucano entre gerações
(Artigo escrito ao lado do amigo Fernando Mendonça para o catálogo da Mostra Cinema de Garagem)
Durante a comemoração dos dez anos de Cinema da Fundação, mal terminara a concorrida sessão dupla de lançamento de Muro (2008), curta-metragem de Tião premiado
no Festival de Cannes, quando os presentes no tradicional
reduto do cinema pernambucano ouviram um grito estrondoso vindo da última fileira: “finalmente minha geração foi superada. Tião, você superou a nossa geração!”. O
responsável pelo berro, que naturalmente se transformou
num gesto poético, foi ninguém menos que Cláudio Assis,
acompanhado na ocasião de seu amigo e também cineasta
Lírio Ferreira. O resto da sala, ainda imóvel diante da potência vista na tela, permanecia num devastador silêncio,
não podendo saber que aquele momento representava um
passo decisivo para que novos horizontes cinematográficos
fossem testados no estado, adentrando estatutos imagéticos diversos, buscando singularidades do dispositivo, passeando nos limites do documentário enquanto linguagem,
abrindo espaço para afetos, gêneros e memórias, articulando pontes com diferentes cinematografias mundiais e,
especialmente, entrelaçando estética e política de maneira
mais contundente. A sessão também projetava o encontro
simbólico entre o cânone do cinema pernambucano da retomada e a subversão desse cânone, subversão maior por negar sem negar um projeto recém estabelecido, não precisando fazer remissões ou entrar em conflito direto, mas
simplesmente dirigindo o olhar para outro lado.
No entanto, essa anedota serve menos para escavar um
abismo ou fosso entre duas gerações da produção audiovisual de Pernambuco e mais para pensar como o longa
Baile Perfumado, realizado há quinze anos, e seus sucessores diretos Simião Martiniano – O Camelô do Cinema
(1998), Clandestina Felicidade (1999), Texas Hotel (1999),
O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas
(2000), Amarelo Manga (2002), Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), Baixio das Bestas (2006), Árido Movie (2006) e
Deserto Feliz (2007), abarcando o trabalho de cineastas, roteiristas e produtores como Paulo Caldas, Marcelo Gomes,
Hilton Lacerda, João Vieira Jr, Camilo Cavalcante e os já
citados Cláudio Assis e Lírio Ferreira, fundamentaram um
terreno mais firme para que a geração posterior pudesse
experimentar. Afinal, existe uma ligação umbilical em termos de campo entre subversão e cânone: o primeiro passa a existir quando o segundo demonstra o seu inevitável
cansaço, estimulando pontos transversais que terminam
até por reverter a direção da influência (ou seja, subversão
influenciando o cânone). Enquanto os mais velhos viveram
a necessidade de afirmação de projeto, um cinema árido-movie como conceito, proclamando uma juventude tardia
do mangue beat encurralada entre tradição, rebeldia e modernidade, em muitos casos visitando espaços da cultura
popular com uma intenção cosmopolita, a produção dos
últimos quatro anos atua justamente numa dispersão de
projeto único como projeto: tanto nas narrativas, como nos
modelos de produção e circulação.
Portanto, caminhamos aqui pela produção audiovisual
pernambucana dos últimos quatro anos, discorrendo de
forma panorâmica e ciente da impossível totalidade, no
intuito de montar ao final uma lista comentada de doze
filmes representativos do período, marcado pelo trabalho
de cineastas como Marcelo Pedroso, Gabriel Mascaro,
Kleber Mendonça Filho, Leo Sette, Marcelo Lordello, Felipe Peres Calheiros, Leo Lacca, o casal Sérgio de Oliveira
e Renata Pinheiro, Daniel Aragão, o também casal Tião e
Nara Normande, Pedro Sotero, Chico Lacerda, Mariana
Porto, entre outros. Eles foram responsáveis por uma das
cinematografias mais festejadas do país, incluindo, entre
curtas, médias e longas, títulos como Garotas do Ponto de
Venda (2007), Amigos de Risco (2007), Muro (2008), Solidão
Pública (2008), Sentinela (2008), KFZ – 1138 (2008), Eiffel
(2008), Décimo Segundo (2008), Ocidente (2008), O Menino Aranha (2008), O Incrível Trem que Alçou Vôo (2008),
Nº 27 (2009), Superbarroco (2009), Cinema Império (2009),
Balsa (2009), Pacific (2009), Um Lugar ao Sol (2009), Recife
Frio (2009), Confessionário (2009), Não me Deixe em Casa
(2009), Avenida Brasília Formosa (2010), As Aventuras de
Paulo Brusky (2010), Vigias (2010), Acercadacana (2010),
Tchau e Benção (2010), A Banda (2010), Aeroporto (2010),
Pacífico (2010), Faço de Mim o Que quero (2010), Ela Morava na Frente do Cinema (2011), Calma Monga, Calma
(2010), Mens Sana in Corpore Sano (2011), Dia Estrelado
(2011), Zenaide (2011), [Projetotorregêmeas] (2011), Projetos
Vurto (a partir de 2011), Corpo Presente (2011), Praça Walt
Disney (2011), A Febre do Rato (2011), Projeto Desurbanismo (a partir de 2012) e o ainda inédito na cidade, O Som Ao
Redor (2012).
Antes de prosseguirmos, contudo, é importante contextualizar uma cena com alguns apontamentos. Primeiro, praticamente todos os cineastas aqui citados, desta geração
e os da geração anterior, possuem uma intensa formação
cineclubista, movimento que se fortaleceu com a criação da
Federação de Cineclubes de Pernambuco em julho de 2008,
mas cuja história transcorre décadas atravessando iniciativas como o Jurando Vingar no início da década de 1990,
o Barravento em meados dos anos 2000 e o Dissenso já no
final dessa primeira década e ainda em atividade. Hoje o
estado conta oficialmente com 30 cineclubes em funcionamento. Essa formação se associa à própria consolidação do
Cinema da Fundação como reduto da cinefilia e o lugar
preferido dos realizadores pernambucanos para promoverem suas criações em curtas e longas-metragens (atualmente dividindo esse entusiasmo com o recém restaurado
Cinema São Luís). Com curadoria de Kleber Mendonça Filho e Luiz Joaquim, a salinha discreta de 196 lugares rompe
diariamente com a dependência da distribuição blockbuster da cidade, mesmo com alguns recentes problemas técnicos no sistema de som, mantendo firme uma política da
diversidade e do cinema poliglota, além de funcionar como
um lugar de encontros, alguns dos quais silenciosos, entre
pessoas que não se conhecem, não se acenam, mas cuja copresença no mesmo local foi percebida algumas dezenas de
vezes. Há sempre um rosto anônimo ou amigo saindo de
alguma sessão.
Naturalmente, o repertório cinematográfico da geração mais nova está condicionado pelo acesso a filmes de
diferentes lugares e épocas através da internet, fortalecido
por meio da criação de comunidades virtuais em nível global, da ascensão da crítica cultural nesse meio e do visível
aumento da velocidade de transferência de dados. Gabriel
Mascaro, por exemplo, comenta repetidas vezes como suas
melhores experiências cinematográficas foram diante de
um computador e vários dos realizadores finalizam o percurso de seus filmes, depois de festivais e mais festivais,
disponibilizando-os no ciberespaço. Além disso, na ausência de um curso formal de cinema na cidade (o curso na
UFPE foi aprovado em 2008, com primeira turma em 2009
e poucos resultados criativos até então) todos começaram
a fazer seus primeiros filmes num modus operandi conhecido localmente como brodagem, ou seja, sem dinheiro algum, contando apenas com ajuda dos amigos, usando os
amadores equipamentos que tinham em mãos, seguindo
numa lógica de aprender fazendo. Finalizado esse primeiro
momento, alguns deles, como o próprio Mascaro e Daniel
Aragão, envolveram-se em algumas produções profissionais da cidade para ganharem experiência de set na produção de longas-metragens, ambos trabalhando com Marcelo
Gomes em Cinema, Aspirinas e Urubus. Quando seus filmes foram lançados não apenas no circuito local e participaram de vários festivais ao redor do país e do mundo,
esses jovens voltavam e ainda estão voltando não apenas
com prêmios, mas com vínculos formados, entre contatos e
afetos, com cineastas que viviam uma ansiedade estética e
um contexto produtivo semelhante, tais como o Alumbramento, do Ceará e a Teia, de Minas Gerais.
A experiência formativa num cinema de baixíssimo orçamento, com os olhos atentos para onde poderiam enxugar gastos de produção, igualmente ampliando vislumbres
estéticos, fez com que alguns cineastas ganhassem editais
para desenvolverem curtas-metragens, podendo simular
condições quase ideais de filmagem, mas voltassem ao fim
do processo com um média ou um longa prontos. É o caso
do longa Vigias, de Marcelo Lordello, vencedor do Concurso de Roteiros Rucker Vieira da Fundação Joaquim Nabuco, assim como do média Balsa, de Marcelo Pedroso, e
do longa Um Lugar ao Sol, de Gabriel Mascaro, ambos premiados com o edital Ary Severo / Firmo Neto. No caso dos
dois últimos, ainda existiu um dilema na entrega do produto final, pois o edital pedia um curta finalizado em 35mm,
mas eles tinham entregue um média e um longa digitais.
O ano de 2008 também marca o nascimento de um novo
festival na cidade do Recife, algo bastante emblemático
para pensar uma distinção entre as gerações: se a primeira
edição do Cine PE aconteceu em 1997, ano do lançamento
de Baile Perfumado, o Janela Internacional de Cinema do
Recife surge com ênfase na curadoria de curtas-metragens,
estimulando jovens no desenvolvimento de um pensamento crítico, trazendo trabalhos de ímpar qualidade a
nível mundial e com olhar aguçado para o escoamento da
própria produção marginal do país. A presença de realizadores de fora na cidade também proporciona parcerias,
intercâmbios e experiências sobre as inúmeras fragilidades
do circuito independente. Aliás, se falamos num cansaço
de projeto no início do texto, talvez seja importante pensar na própria falência gradual e encolhimento do Cine PE,
festival que enfrentou um protesto, no ano passado, dos
cineastas pernambucanos durante a cerimônia de encerramento. Quando o primeiro deles ganhou um prêmio, todos
os presentes subiram no palco em forma de bolo de quinze
anos e, para apontarem um desarranjo de intenções entre
realizadores e festival, abriram uma faixa com letras garrafais: “Menos glamour, mais cinema”.
A principal reivindicação era o respeito técnico pela
projeção das obras, pois alguns filmes eram cortados antes do final dos créditos, e, especialmente, a incorporação
da mostra exclusiva de filmes pernambucanos ao espaço
do Teatro Guararapes, onde é realizado todo o resto do
festival. As demandas, nesse ano, foram atendidas; no entanto, a iniciativa viveu sua edição mais esvaziada e ainda
inchada de cafonas homenagens, com problemas técnicos
registrados todos os dias, de filme com som prejudicado
pelo equipamento até outro exibido com os rolos trocados.
Não podemos esquecer também que, apesar de a produção pernambucana figurar entre as mais representativas do
país, o ainda escasso parque exibidor comercial do estado,
praticamente inexistente no interior, não incorporou minimamente o cinema pernambucano em sua grade. Os filmes
terminam restritos aos iniciados do circuito independente,
rodando o mundo em festivais, espalhando internacionalmente uma vontade intensa de observar e lutar por uma
sociedade menos refém do urbanismo da desfaçatez, mas
não estabelecendo uma relação sensível com o público de
seu próprio lugar e com o qual, em teoria, deveriam melhor
se comunicar. Os pernambucanos não conhecem o cinema
de seu estado, a garagem de produção fica no Recife, mas a
plataforma de exibição está sempre lá fora. Uma saída que
vem sendo encontrada na cidade pode ser visualizada no já
citado Balsa, que apenas por ser um média já colocava em
questão seu espaço no próprio circuito alternativo, seguindo por um lançamento que contemplou simultaneamente
exibições em mostras como a Semana dos Realizadores, espaços como Cineclubes e sessões em escolas públicas, com
presença do diretor. A distribuição contou ainda com uma
tiragem de mil DVDs, estimulando projetos posteriores e
mais amadurecidos como o de Pacific, Um Lugar ao Sol e
Avenida Brasília Formosa, cada qual com a distribuição
gratuita de um DVD para pontos de exibição gratuitos, junto com uma cartilha de cunho educativo com artigos
para subvencionar o debate com o público (depois, claro,
de terem sido exibidos em alguns cinemas do país por meio
do projeto Vitrine).
Seja como for, o último pressuposto refere-se à afirmação de uma política pública de cultura consolidada, que
mudou as condições materiais do cinema pernambucano
de uma forma ampla. Só para termos ideia, a quinta edição do Funcultura – Audiovisual, mantido pelo Governo
do Estado em parceria com a Prefeitura do Recife e modelo
de inspiração para propostas semelhantes em vários outros
estados, destinou nesse ano R$ 11,5 milhões para distintas
categorias, tais como longas-metragens, curtas, produtos
para televisão, oficinas, festivais, mostras e até incentivo ao
cineclubismo. Essa iniciativa é resultado de uma pressão de
anos por parte dos envolvidos com o audiovisual que perpassam ambas as gerações e que sempre produziram sem
um apoio financeiro efetivo. Preocupada com o futuro e a
instabilidade recorrente durante mudanças de gestão, tomando inclusive o caso de Paulínia como exemplo, a classe
audiovisual já começou a se articular para transformar o
edital do Funcultura em lei, fincando em definitivo esse
compromisso do estado com a cultura (independentemente de quem seja o gestor). Se por um lado, o edital pode terminar gerando uma dependência entre cineastas e poder
público, condicionando a realização a partir do incentivo
financeiro e apagando uma experiência histórica, por outro tornou a produção do estado mais profissional; cineastas, produtores e atores estão conseguindo viver de seus
trabalhos e ainda assim continuam envolvidos em iniciativas, digamos, mais ideológicas, propostas com um caráter
efetivo de garagem e de luta cidadã, na promoção de conteúdos livres para internet, especialmente refletindo sobre o
assombroso desenvolvimento urbano da cidade.
A cidade ocupa o cinema, o cinema
ocupa a cidade
Se pensarmos em termos comparativos, alguns centros
urbanos subalternos da América Latina modificaram realmente o aspecto de sua paisagem no período entre 2001
e 2011, apostando numa conduta da verticalização conduzida por grandes construtoras, cuja lógica é transformar
espaços públicos em espaços privados, não convivendo
com o patrimônio cultural, mas destruindo brutalmente a
história e a memória das cidades. Esse é o caso do Recife,
que atualmente ocupa o posto de 21ª cidade mais vertical
do mundo (no Brasil, fica atrás apenas de São Paulo e do
Rio de Janeiro), um lugar cujos vinte maiores arranha-céus
foram todos construídos nos últimos dez anos e que vem
vivendo sucessivos confrontos entre sociedade civil organizada, administradores das empresas e gestores públicos.
Diante desse cenário de transformação abusiva disfarçado
de modelo de desenvolvimento, intensificado a partir da
construção arbitrária das Torres Gêmeas — dois edifícios
residenciais com 40 pisos cada um — no bairro histórico
de São José, a cidade passou a protagonizar inúmeros filmes produzidos em Pernambuco. Recife ocupa o cinema
e o cinema ocupa o Recife. Dispostos a repensarem a forma como o projeto de desenvolvimento urbano vem sendo
conduzido, apontando contradições e propondo alternativas aos empreendimentos, cineastas vêm se reunindo, inclusive com diversos segmentos da sociedade, de maneira
sistemática, todos acusando a própria prefeitura de ter se transformado num mero balcão imobiliário. Não é novidade para ninguém que a lógica de verticalização é uma
solução que segrega as pessoas nos condomínios, eliminando completamente qualquer capacidade de circulação,
de mobilidade ou de acesso direto às mais banais necessidades. O cinema pernambucano está prontamente mobilizado contra a construção desenfreada de edifícios, muitos
dos quais sem estudos de impacto ambiental e que anotam
efeitos ampliados na vida coletiva, formulando uma urbanização — ou desurbanização — que desumaniza o espaço
compartilhado da cidade.
Nesse sentido, um primeiro produto a mostrar a cidade sem delongas turísticas, o longa Amigos de Risco,
dirigido por Daniel Bandeira, mas com participação de
metade do Recife — todos presentes na sessão de lançamento para se reconhecerem e serem reconhecidos pelos
outros — remonta a Veneza Brasileira como um lugar que
vem perdendo suas particularidades, um lugar distante
dos cartões-postais que rodam o mundo, revelando uma
periferia encardida numa noitada fétida por meio de uma
imagem igualmente suja. O filme produzido com menos
de R$ 50 mil, imanta seu projeto estético com um caráter
duplo, as imagens granuladas captadas em Mini DV endossam o ambiente hostil de um espaço em plena perda
de personalidade, assim como escancara os limites do seu
orçamento, apontando a garra e os percalços da produção
independente. Seguindo por uma pegada mais sociológica,
Gabriel Mascaro (que ao lado de Bandeira, Marcelo Pedroso e Juliano Dornelles formavam, até o ano passado, a
produtora Símio Filmes) desenvolveu Um Lugar ao Sol, tomando como objeto de seu documentário uma elite específica: habitantes de diferentes cidades do Brasil que moram
em coberturas. O filme foi muito criticado por criar uma
teoria falsa, resumindo uma situação complexa em depoimentos de um grupo isolado, de modo a induzir os espectadores ao erro simples de acharem que a culpa estava ali,
na tela diante deles. No entanto, o cineasta consegue captar
a cidade em suas linhas e sombras de maneira inquietante,
rompendo com o pressuposto básico da linhagem mais clichê dos documentários ao quebrar qualquer compromisso
de complacência entre documentarista e entrevistados. Sua
postura ideológica fica clara como alguém que usa a câmera como uma arma e filma um inimigo e especialmente seu
discurso.
Sem dúvida, a iniciativa mais emblemática desses filmes
sobre urbanismo, não necessariamente pelo resultado em
si, mas pelo processo e por plantar uma plataforma vigorosa de debate, é o [projetotorregêmeas], disponível na página http://projetotorresgemeas.wordpress.com/. A iniciativa
reuniu durante dois anos cerca de 60 pessoas, direta ou indiretamente envolvidas, tomando os prédios da construtora
Moura Dubeux, para conglomerar distintas visões sobre os
rumos e transformações da cidade. O modo de produção
foi bastante incomum, com abertura de inscrições para que
as pessoas interessadas em participar enviassem vídeos, fotografias, áudios, ilustrações, trilhas sonoras, entre outros.
O resultado trouxe uma variedade de linguagens, formatos
e possibilidades de roteiro que, depois de sucessivas reuniões, terminaram decupados por cinco editores com a
missão de transformarem um material bruto desvinculado
entre si num filme. As várias mudanças e opiniões, contudo, não mudaram o intuito do projeto: debater as relações
de poder em Recife, a partir de iniciativas que influenciam
o cotidiano de quem reside na cidade. Todos os indivíduos que participaram do [projetotorresgêmeas] se mostraram
inquietos com a situação, queriam protestar, revelar o nível
problemático que atingimos, de tal modo que o filme funciona — para além das dissonâncias internas — como um
manifesto que marca o fim da melancolia e da nostalgia
enquanto pontos de fuga do cinema pernambucano, algo
muito presente em outras produções sobre o mesmo tema,
assumindo um tom acima para reafirmar sua militância cidadã diante da paisagem arquitetônica da cidade. Lamentar para sempre não os levariam a lugar algum. O filme
foi lançado simultaneamente no IV Janela Internacional
de Cinema do Recife e disponibilizado na internet, contando com mais de cinco mil visualizações. Atualmente, o
mesmo grupo está começando a produzir da mesma forma
colaborativa, material para um novo projeto, com o título
temporário de Eleições: Crise de Representação.
A não só vontade, mas necessidade, de problematizar
os modelos de desenvolvimento do Recife ganhou força
com aproximação da Copa do Mundo e a ansiedade administrativa dos gestores em resolver em pouco tempo
problemas estruturais da cidade, sempre numa lógica de
priorizar edifícios e o transporte de carros em detrimento
das ciclovias e do elemento humano. Dois empreendimentos são importantes de serem citados. O primeiro propõe
“resolver” o problema do trânsito – sempre vale repetir a
frase de que não estamos no trânsito, nós somos o trânsito – com a construção de quatro viadutos sobre a Avenida
Agamenon Magalhães, uma das mais importantes da cidade, ignorando em absoluto os impactos visuais e sociais,
além de suplantar a existência de pedestres e ciclistas enquanto habitantes da cidade. O segundo é um empreendimento imobiliário faraônico, chamado cinicamente de
Novo Recife, que pretende numa região próxima às Torres
Gêmeas, no Cais José Estelita, destruir os antigos armazéns ali existentes para construir nada menos que treze
torres, entre residenciais e comerciais de luxo. Para quem
não conhece essa história, trata-se de um terreno de mais
de 100 mil m², que era da União, mas foi leiloado em 2008
e arrematado por um grupo de empresas. A participação se
tornou mais ativa, transpondo as telas, colocando cineastas
e outras pessoas como interlocutores em audiências públicas, envolvendo-os na produção de uma petição online e
até mesmo na ocupação de espaços em termos similares ao
movimento #occupy. Nessa leva surgiram ao menos dois
coletivos que estão produzindo conteúdo exclusivo para a
internet e divulgando de maneira ampla nas redes sociais,
com olhares pujantes e renovados. São eles o Vurto (http://www.vurto.com.br/) e o Contravento (http://vimeo.com/user11414332), o primeiro reunindo nomes como Marcelo Pedroso, Felipe Peres Calheiros e Gabriela Alcântara, o
segundo, bem mais interessante e com menos sentimento de “Justiceiros da Cidade”, é levado por Luís Henrique
Leal, Caio Zatti, Cristiano Borba e Lívia Nóbrega. Todos
estão mobilizados na intenção de ampliar o debate sobre
a privatização da Praia do Paiva e sobre a forma como os
gerentes de uma grande construtora observam áreas estratégicas do Recife, trazendo, para frente das câmeras, especialistas de diferentes áreas para falarem sobre os recentes
acontecimentos e o direcionamento geral desse processo,
muitas vezes resgatando uma história cíclica de desmandos
e equívocos ou mesmo retratando de maneira crítica a ideia
desenvolvimentista presente no Porto de Suape.
Fica clara a preocupação nesse conjunto de filmes como
a paisagem não é só uma imagem visual, mas algo feito pela participação, pela atitude, pelas crenças, pelas práticas sociais, pelo dia a dia dos cidadãos. É unânime a ideia de que
as áreas em discussão não podem ficar restritas ao uso ou
ao usufruto de uma pequena parcela da população, ou seja,
tomando como parábola de outros espaços, a paisagem do
Cais, uma das mais bonitas da cidade, não pode ser simplesmente privatizada. Não é surpresa afirmar que a experiência urbana é também uma experiência estética. Se cada
vez mais pessoas estão se mobilizando contra o projeto
Novo Recife ou contra os viadutos da Agamenon Magalhães, o impulso parte da vontade em pensar a cidade como
um espaço público a ser usufruído por toda a população
de maneira coletiva. No entanto, alguns filmes realmente
caem na simplória demonização dos prédios, apropriando-se da hipócrita lógica “quem vive em casa é bom, quem vive
em edifício é lobo mau”, enquanto outros lançam um olhar
com mais afinco sobre a reorganização espacial, padronizada e sem resquícios de criatividade alguma; a princípio
uma discussão estética que, claro, não deixa de ser política, pois atravessa o imenso risco em aceitar um projeto de
desenvolvimento da cidade ditado pelos interesses comerciais das grandes construtoras (sob o aval da Prefeitura, do
Governo do Estado, do IPHAN e total supressão da lei dos
doze bairros sancionada em 2001, que controlava o ritmo
frenético dos prédios em determinadas regiões da cidade).
O fato é que Recife está se transformando em um simulacro de cidade, sempre empurrando as classes mais baixas para outro lugar (Gentrification) e capitalizando cada
metro quadrado no mercado imobiliário. A fileta básica de
caráter público deixa de ser condição do espaço urbano, o
que gera uma desmobilização da convivência compartilhada e uma cultura de shopping — muito bem representada em Recife Frio — contaminada em todos os patamares
da vida social. No mesmo sentido, Praça Walt Disney, de
Sérgio Oliveira e Renata Pinheiro, desenha com extrema
habilidade e sutileza, espaços privados, imbuídos da segurança do lar e do isolacionismo burguês, que emulam
espaços públicos limpinhos em seus parquinhos, quadras
e piscinas particulares. A experiência estética da cidade
também pede que conheçamos nossos vizinhos, deixemos
nossos filhos na escola sem precisar de carro, pede para
utilizarmos as vias não como um lugar em que passamos e
deixamos passar a nossa vida, mas como um espaço físico
e espiritual que definitivamente ocupamos, mantemos relações afetivas e cuidamos.
Os olhares singelos de um cinema
sem fronteiras
Com a transformação do cenário global e o intenso movimento tecnológico daí decorrente, as limitações que outrora prevaleciam junto às convergências do audiovisual
passaram a inexistir e a própria concepção de ‘influência’
dentro das cinematografias tornou-se flexível, pois as semelhanças e reflexos buscados pelos cinemas que não mais
encontram uma resistência física do espaço-tempo passam
a ocorrer em intervalos cada vez menores. A antiga velocidade com que os cinemas se disseminavam, com que os
filmes atravessavam as fronteiras e alcançavam novos públicos, em atrasos que podiam chegar a 5 anos ou a uma
década, foi há muito vencida. Assim, questões que são colocadas hoje num determinado lugar do mundo podem ser
ampliadas ou resolvidas do outro lado do planeta antes que
o sol se ponha, um fato que se observa em qualquer área do conhecimento e, inclusive, nas artes. Consideramos que o
diálogo nutrido por realizadores ao redor do mundo, direta ou indiretamente, é fruto de uma realidade igualmente
dilatada, daí serem os anseios perseguidos por muitos tão
paralelos e sintonizados.
A crescente dificuldade de se falar no cinema de um
território (um cinema pernambucano, em nosso caso) sem
que, para isso, recorramos a estéticas e soluções de outros
estados, países e continentes, demarca uma transitoriedade
que até se localiza em períodos passados da história, mas
que, sem sombra de dúvida, representa uma das condições
do tempo presente. Já não é possível avaliar uma obra sem
localizar os pares que, simultaneamente, estão se desenvolvendo a despeito de um contato prévio, sem uma referencialidade planejada. Por isso, a necessidade de se pensar um
cinema asiático, ou ibérico, ou latino-americano, quando
refletimos a situação local do cinema hoje produzido em
Pernambuco.
Experimentações de linguagem, diluição dos gêneros,
rompimento de formatos canônicos, são constantes mundiais do cinema contemporâneo, verificadas em filmes nas
mais variadas durações e, muitas vezes, intensificadas no
curta-metragem. Os bons ventos que têm caracterizado a
renovação do cinema pernambucano acompanham um
fluxo de qualidade global. O que nossos diretores têm provocado na linguagem, na fusão entre o documental e a ficção, e em tantos aspectos que determinam uma maneira
de pensar o cinema, muito além de fazê-lo, não deve nada
ao que Kiarostami, Godard, Hsiao-Hsien, ou tantos outros
referenciais, no que há de mais novo no audiovisual, vem
fazendo nos últimos anos.
É muito estimulante perceber que os diálogos atuais
não se limitam aos problemas de ordem técnica, ou aos temas explorados; o que vemos se formar é um verdadeiro
emaranhado de questionamentos que tocam o domínio
da representação em pontos nevrálgicos do entendimento
criativo: quais as possibilidades de se guardar um mundo
em imagens quando, ele próprio, já se tornou uma imagem
distanciada de si? Como identificar um espaço de subjetividades que já não subsistem isoladamente, que dependem
de sua constante exposição para serem ‘reais’? Qual o lugar
do drama numa época que já não consegue interromper a
ação ou fazer dela um contraponto da existência humana?
Os anseios se acumulam na mesma medida em que a própria mecânica cinematográfica atravessa um período de
transformações, dos mais radicais que já se registrou, seja
em sua forma de produção, nos parâmetros de exibição e
consumo, como no resguardo de sua memória.
De certa forma, é também na manutenção de memórias
particulares que localizamos todo um projeto comum do
cinema, em expansão desde o séc. XIX, e identificamos as
específicas semelhanças que saltam aos olhos do trabalho
pernambucano na relação com os circuitos mundiais. São
memórias dos pequenos gestos, dos cotidianos em repouso urgente, ‘memórias das coisas’ — para ficarmos numa
expressão corrente aos estudos recentes do audiovisual* —, derivadas de um tratamento preocupado em localizar
o natural afeto que a relação mundo x imagem apresenta. As filmagens dos corpos e das paisagens, a ‘rostidade’
resgatada pela composição de movimentos que reposicionam o cinema a um lugar de encontro, percorrem o que
há de melhor na safra de filmes pernambucanos que vem
ultrapassando os limites dos festivais para encontrar, num
público atento, o interesse por novidade de experiência,
olhares que redimensionem a expectativa de um cinema e
do entorno que o cerca e faz vir à luz.
É nesse sentido que reunimos, a seguir, uma lista comentada de filmes que potencializaram esta abordagem
singela do cinema pernambucano, chegando mesmo a
diluir esta concepção local (sem jamais negá-la) e favorecendo uma compreensão da identidade múltipla que hoje
caracteriza o nosso cinema. São filmes que se equilibram
entre o íntimo, o político, o visível, o poético, expressões
que, além de um lugar, definem um tempo.
Muro (Tião, 2008)
“Alma no vazio, deserto em expansão”. O verso divulgado como sinopse oficial do filme que redefiniu o cenário
pernambucano — e por que não, mundial — de produção
cinematográfica, reflete em palavras uma impressão certeira do que sua experiência provoca. Afronta aos sentidos,
o trabalho de Tião é muito mais do que a apressada convicção de um rompimento, está mais para resgate, para continuidade aos nomes a quem reverencia diretamente em sua
estrutura (de Méliès a Eisenstein), para a defesa de um cinema livre das amarras lógicas, consciente do artifício, em
pleno domínio do que percebemos como temporalidade.
Ponto de partida de uma carreira particular, Muro inaugura em si um novo mundo. Faz nascer o cinema.
Nº 27 (Marcelo Lordello, 2008)
Filmar a adolescência, uma constante na prática do curta-metragem contemporâneo, é o ponto de partida para
Marcelo Lordello compor um dos retratos afetivos mais
contundentes dos últimos anos. Sua observação da sala de
aula, dos corredores e banheiros colegiais, carrega uma delicadeza sintonizada ao que há de melhor no cinema mundial de sua década, a exemplo da relação direta que traça
com o imaginário dos filmes de Gus Van Sant. O drama
de seu protagonista é o pretexto para uma verdadeira experimentação do tempo, da sonoridade, do extracampo, de
detalhes que fazem do cinema um artesanato, uma singela
composição de lembranças e sensações. Nº 27 é a imagem
que carregamos não apenas quando sua projeção encerra,
mas aquilo que vemos no espelho todos os dias, ainda que
relutemos em enxergar.
Pacific (Marcelo Pedroso, 2009)
Dispositivo exposto em suas mais profundas engrenagens, o
gesto de Pedroso sobre os olhares que coleta de turistas num
cruzeiro é o motivo de uma intenção criativa das mais originais que o cinema contemporâneo demarca. As filmagens
íntimas de um tempo que só é vivido depois de guardado,
revestidas de significado cinematográfico a partir da rigorosa montagem efetuada, dão forma nas mãos do diretor a
uma teia que se revela pura ficção, a despeito de sua origem
documental. Um trabalho limite que atropela os gêneros
para configurar uma determinada vivência em estado bruto,
um intercâmbio de observações que resguarda a subjetividade ao domínio extremo da projeção. Do movimento mais
simples, uma complexa significação do estar no mundo sob
a mediação da imagem, a conscientização do espetáculo.
Confessionário (Leonardo Sette, 2009)
É na cuidadosa exposição que faz das limitações de sua
linguagem que Confessionário amplia a noção de registro
cinematográfico, a despeito do que se compreende por documental ou ficcional. As margens do espaço/tela, a efemeridade do plano, a finitude da película, são elementos que,
contrapostos ao tom nostálgico do padre entrevistado —
que somente pela sua retórica de memórias sedimenta um
cinema autônomo —, dão brecha a significados emergentes
na própria condição criativa de se fazer um filme. Ouvir o
corte de Leonardo Sette, experimentar a pausa para o troco dos rolos e não ter acesso às imagens de continuidade,
é romper com tudo que se pode esperar do cinema, com
aquilo que inconscientemente se absorve do movimento,
em qualquer filme, mas que aqui se desnuda sem timidez.
É a extrema obscenidade, o que não se encena.
Balsa (Marcelo Pedroso, 2009)
Possivelmente o trabalho que melhor concentra, neste
novo painel de filmes, o interesse de retornar a um estado
primitivo do cinema para fazer com que ele se renove, Balsa é um olhar que suspira carregado de melancolia, pesado
de sentimentos, situado na contemplação de um mundo
agônico, moribundo. O ponto de vista fixado no transporte
em vias de extinção, a balsa, reconfigura o movimento que
desde os Lumière resguarda os acasos da vida, dos gestos
cotidianos que se acumulam e renovam na densidade de
expressão. Sob o conceito da câmera-olho (Vertov), Marcelo Pedroso ilumina um estado de sobrevivência latente,
não apenas do que é filmado, mas daquilo que usa para
filmar, do que insiste em ser linguagem e instrumento de
memória.
Recife Frio (Kleber Mendonça Filho, 2009)
Uma das raras experiências criativas dentro da ficção científica no presente século, Recife Frio funciona tão bem porque constrói a sua realidade a partir de imagens que não
precisaram ser forjadas, mas apenas organizadas dentro
de uma coerência indicadora da preciosidade que um bom
roteiro ainda pode constituir. É do real que Kleber M. F.
extrai a ilusão, erige o seu mundo, acentuando sempre em
justa medida a tonalidade crítica que lhe é tão cara, aqui
aplicada ao contraste social, ao desequilíbrio urbano das
grandes cidades, ao conflito político que se estabelece até
mesmo dentro de um núcleo familiar. Sua fantasia em tempo presente desafia (e vence) não só as expectativas de um
público geograficamente restrito, mas vai além, no sentido
de refletir uma violência com doçura e humor, de encontrar no caos a graça da vida.
Avenida Brasília Formosa (Gabriel Mascaro, 2010)
Estabelecido numa lógica orgânica, em que o olhar da câmera
ecoa o olhar primeiro do mundo na relação nutrida entre o espaço natural e as intervenções urbanas, há no cinema de Gabriel Mascaro uma abertura estética em que o sentido formal
e o narrativo subsistem ‘em construção’, como nas residências
do bairro de Brasília Teimosa, locação principal de seu filme.
Ele nos convida a uma contemplação que não pode ser adiada.
Sensibiliza os espaços reintegrando o homem ao meio e em
suas relações sociais. Do painel sensorial equilibrado entre as
observações arquitetônicas e as condições físicas que levam
um lugar ao enfrentamento da transformação, Avenida BF resulta numa procura pela respiração da cidade e dos núcleos de
convivência, da vida que resta nas desgastadas estruturas de
pacificação moral. É o que também resta para o cinema.
A Banda (Chico Lacerda, 2010)
Desdobrando um procedimento de captação visual entre
o registro e o questionamento da imagem, Chico Lacerda
propõe através de um gesto muito simples — mas também
complexo, pois talvez seja o travelling o movimento mais
enigmático da linguagem cinematográfica — uma discussão da visibilidade em camadas, daquilo que vemos e negamos ou confirmamos a partir dos pequenos códigos do
olhar. Não ouvimos a banda, não englobamos a totalidade
do evento (uma parada gay), mas construímos pelo repertório de cenas coletadas uma vívida impressão do acontecimento, de sua presentificação. A inexistência da ‘banda
sonora’ no filme, submerso no mais profundo silêncio em
toda sua duração, atualiza a perspectiva essencial de uma
linguagem que ainda é luz, é sombra. E não precisa de mais
para o ser.
As Aventuras de Paulo Brusky (Gabriel Mascaro, 2010)
Concebido dentro de uma estética virtual, um viés da animação, o filme que marca o encontro de Paulo Brusky com
Gabriel Mascaro dentro da plataforma ‘Second Life’ reflete
questões fundamentais ao prosseguimento do cinema no
séc. XXI. A partir de uma perspectiva autoral (de Brusky),
a invenção sem limites técnicos (de Mascaro) conecta a mais
pura fantasia à dura realidade — econômica, política — da
criação artística. A dolorosa lembrança metalinguística que
permeia todo o filme, de tratar-se única e simplesmente de
um filme, é o que transcende o ilusório, que reveste e resgata
toda uma associação entre o cinema e o sonho, concretizando o impossível e materializando subjetividades outrora apenas potenciais. Uma brincadeira muito séria que desenferruja
algumas motivações há muito abandonadas pelo cinema.
Mens Sana In Corpore Sano (Juliano Dornelles, 2011)
Se o novo século é também caracterizado por uma intensificação do ‘cinema dos corpos’, na maneira como as
imagens tocam as superfícies da forma humana e fazem da
pele do filme um núcleo imediato de percepção, o bizarro
trabalho de Juliano Dornelles se confirma inserido numa
problemática inerente ao seu tempo histórico. Inspirado
por uma estética do terror e do grotesco, e trabalhado sob
uma rigorosa paleta de cores e sons que o aproximam do
período mudo sem perder o equilíbrio nas referências do
cinema B, Mens Sana é uma das mais felizes apropriações
recentes de gênero, imprevista e eloquente, questionadora
de sua própria concepção formal e do imaginário em que
mergulha. Uma perfeita imagem da imperfeição.
[Projetotorresgêmeas] (Coletivo, 2011)
Dentro do formato de criação coletiva — em expansão na
contemporaneidade —, possivelmente, nenhum outro filme tenha alcançado um resultado político e estético tão
incisivo, em Pernambuco, quanto este [Projeto]. Motivado
pela disputa imobiliária e a decorrente transformação no
cartão postal e no imaginário cultural afetivo do Recife, o
filme reúne um híbrido de artistas e expressões, que assinam um verdadeiro manifesto, provocação certeira a encontrar no cinema um caminho para o pensamento sobre
o tempo e o espaço de uma cidade, sobre a sua transformação/diluição. A arrojada proposta de divulgação do trabalho (na rede, em festivais, cineclubes e centros de educação)
acentua a urgência de sua visibilidade, enquanto propõe
uma arte democrática, acessível. Ao se reclamar uma cidade, inclui-se aí o direito a seu cinema.
A Febre do Rato (Cláudio Assis, 2011)
Se, em meados dos anos 2000, Assis realizou Amarelo
Manga como um tapa na cara do Recife, deixando na época
os próprios recifenses fascinados com tamanha brutalidade, o diretor conseguiu através de seu mais recente filme
escrever uma carta de amor à fragilizada cidade, um amor
que contesta todas as formas de opressão, misturando um
ímpeto libertário trôpego a uma crença histórica na poesia
marginal. Filmado em preto e branco, vemos uma cartografia de corpos e afetos; encontros intensos, ébrios, apaixonados e inocentes, que servem bem ao intuito confuso de
escárnio e celebração, fazendo com que os recifenses (não
só eles!) visualizem um tempo que transcorre, uma duração, um cinema-território entre gerações que se apontam.
A Febre do Rato se baseia numa escrita poética em que cada
verso (cena) impulsiona, diante do real, um vivaz universo.
* Conceito desenvolvido pela profª Laura U. Marks em importantes publicações na teoria do cinema deste século, como The Skin of The Film (2000) e Touch: intercultural cinema, embodiment and the senses (2002).
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