segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Espectros da narração


(Publicado originalmente no Filmologia)

Não podemos confiar em filmes como India Song (França, 1975), de Marguerite Duras, não por algum tipo específico de deslealdade, mas pela ânsia em romper com os pactos narrativos tradicionais que nos confortam, uma necessidade em afirmar que não se pode narrar como antes, cavando e cruzando discursos que desalinham a relação entre imagem e palavra. Duras coloca-se numa dupla posição, construindo sua carreira como cineasta experimental justamente por voltar às preocupações rudimentares da literatura. India Song é inteiramente narrado por vozes em off, vozes em fluxos de consciência que atravessam distintos patamares da linguagem e do tempo, manchando os enquadramentos com seus espectros semicerrados: Benjamin começa seu famoso artigo sobre o narrador, dizendo que "por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de distante e que se distancia ainda mais". Portanto, a mesma voz que remonta experiências passadas diante de uma dança no salão, pode ser da embaixatriz há alguns anos na França ou na Índia; talvez seja resultado de uma observação, num deslocamento sutil para outro cômodo da mansão, de um homem fora de quadro, mas certamente de olhar arguto e desejos lascivos; ou quem sabe, ser um diálogo ácido entre subalternos escondidos, deste ou de outro tempo, que não deixam passar detalhes sórdidos da protagonista deslumbrada. A estrutura das histórias contadas se acumula nas bordas e acompanha a lógica das monções, os ventos sazonais impossíveis de serem previstos que ocorrem especialmente no Oceano Índico; ventos que são como as relações entre relatos do passado e fantasmas do presente. Trata-se de um fenômeno famoso por deixar à deriva os antigos navegantes árabes e portugueses, pois, como Marguerite Duras e seu projeto de narração, os ventos estão sempre enganando a direção por meio de mudanças violentas e repentinas.

O plano de abertura, quatro minutos até o sol abandonar o céu, define o princípio da longa duração como determinante para o filme: a demora prova uma impressão de imagem, cuja potência só pode ser alcançada submetendo-se ao tempo da espera. India Song não apenas retalha a passagem cronológica, tomando a memória como uma matéria esticada em que o tempo imprime suas diferentes formas, mas segue pelos salões de um espaço em decadência, povoado por fantasmas silenciosos submetidos ao impávido destino da narração. As dimensões das vozes são tão amplas que servem inclusive como vozes dos espectadores, o fora de campo enevoa em absoluto a materialidade do visível. Aliás, a mesma camada sonora, com diálogos e efeitos, foi repetida sobre outras imagens em Son nom de Venise dans Calcutta désert – alcançando relatos para além dos testamentos falsos e das experiências inventadas. Duras reforça com India Song seu interesse pelo Oriente, um interesse que mescla suas próprias lembranças infantis na Indochina com a perspectiva ficcional da vida adulta de escritora, misturando com certa ironia ímpetos coloniais e pós-coloniais, remetendo de maneira cruelmente doce à experiência da derrota. Mantém, assim, um estatuto aristocrático / burguês – momento em que o primeiro precisa se amparar no segundo – de modo que o filme se passa na Índia, numa Índia dos brancos, das histórias que ouviram contar, uma obsessão pelos contos partidos ao meio, obviamente não deixando os saltos franceses de lado e sendo inteiramente filmado numa mansão nos arredores de Paris.

Assim como nos filmes de Grillet, India Song carrega seu espelho no meio do cenário principal, mas o espelho dentro do narrar uma impossibilidade única de narrar funciona menos por seu simbolismo e mais como definidor do espaço, pelo impacto óptico inerente a sua materialidade: personagens saem de quadro para entrarem no espelho, saem do espelho para começarem a falar, a câmera não consegue se decidir pela ilusão como escolha ou pela revelação dos artífices da ilusão como escolha. A mulher caminhando entre indiferenças, paixões, amarguras e prazeres, assim como Marguerite Duras, sente-se em dados momentos paralisada, porque imagina e pode imaginar o quanto quiser em quantas narrativas conseguir, que a vida, simplesmente, poderia ser outra. O Ganges, por exemplo, surge sempre na história dos outros, mesmo que contada pela sua boca, surge como um sétimo continente distante, uma fábula desbotada e incansável. Certamente, Duras está mais preocupada em fazer um exercício de linguagem que necessariamente propor uma aproximação afetiva entre espectadores e narrativa, há algo de Brecht nesse sentido, de modo que costurando formas e temporalidades, consegue traçar uma breve arqueologia dos tipos de narração. Há um pouco da desesperança em morar na Índia rememorada e inventada, pois ainda que rodeada de homens “não é nem prazeroso, nem penoso, nem fácil, nem difícil, não é nada”. Os personagens não estão vivos, nem mortos, comportam-se como tivessem sido destituídos de uma existência, como se fossem apenas uma carcaça, um sotaque, um aborrecimento e um olhar.

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