(Publicado originalmente no Filmologia)
Quando Walter Benjamin escreve, acredito que em um dos ensaios da infância em Berlim, sobre a impossibilidade de recuperar totalmente o passado, em específico o campo do esquecido, defende incisivamente essa natureza própria da memória – largando pedaços pelo caminho, deturpando presenças e colhendo mentiras – como a única forma de compreendermos a saudade. Se fôssemos enumerar, perderíamos os números de quantas vezes contamos um mesmo passado de formas diferentes. Seja pelo transcorrer dos anos que ampliam a distância entre o acontecimento e o presente, obrigando-nos inconscientemente ao malabarismo de acentos e vírgulas; seja pela distorção premeditada, que adapta curvas narrativas aos ouvidos de um e de outro, personalizando sentidos para cada caso, no intuito de tirar vantagens ou enfatizar derrotas. L’Homme qui Ment (França, 1968), além de uma maturidade cinematográfica representada pela simultaneidade de quadros compondo um único enquadramento, firma o encontro de Alain Robbe-Grillet com seus mestres: por meio de um rapaz ambíguo, ora traidor, ora herói, cuja palavra serve para inventar passados sobrepostos e reversíveis, o filme toma como ponto de partida os paradigmas de Proust e Bergson, colocando a memória como uma massa dinâmica, passível a transmutações a cada vez que nos apoderamos dela. Boris Varissa (Jean-Louis Trintignant) sobreviveu à experiência da guerra sob rostos emprestados, volta à pequena aldeia para contar o fim do líder Jean Robin e enquanto o trauma não lhe deixa dormir – acorda sempre surpreso por estar vivo – sua inspiração pela mentira consegue lhe salvar.
A preocupação do autor pela história como um campo de conquista da representação e da narração, transpõe a mais comum linha do quem conta e sobre quem se conta, para focar na forma como se conta e quando se conta, reforçando as maneiras concomitantes e contraditórias de arranjos de passado. Não só isso: finca na película que ao manejarmos sem controle reminiscências através do véu da ficção, estimulamos o desaparecimento das propriedades de ambas as dimensões, de modo que o movimento de voltar sempre, de lembrar sempre é também um movimento de deslocar sempre, como quem troca de lugar um tesouro dentro de um labirinto. Moedas caem e novas moedas entram. Assim, a sensação do espectador diante da instabilidade narrativa de L’Homme qui Ment é semelhante à da leitura de O Processo, de Franz Kafka: quase todos os leitores pensam em desistir no miolo do livro, enquanto o protagonista vaga por corredores intermináveis em busca de uma resposta, afundando mais e mais nos trâmites burocráticos de um caso que sequer entende, não conseguindo lembrar por onde passou e para onde precisa seguir. No entanto, quando insistimos até o fim, percebermos que as digressões arredias da narrativa reverberam como diretriz sensorial, ou seja, precisamos passar pela insuportável incapacidade cognitiva para que nossa experiência estética se aproxime intimamente da experiência diegética do personagem. A identidade de Boris Varissa deixa, enfim, de ser impenetrável, mas o caminho permanece árduo, pois como um “caos de aparência”, para usar o termo de André Parente diante da imagem de Proteu, o Deus grego que podia assumir todas as formas, a figura do rapaz “continua a ser puro interstício, puro possível, uma virtualidade criadora”.
A deambulação no tempo de Boris Varissa, transitando entre a posição de traidor e salvador do líder da resistência Jean Robin, afirmando e negando, dizendo e desdizendo, dialoga diretamente com os traumas nacionais colocados embaixo do tapete por determinadas sociedades. Talvez a mais famosa história nesse sentido seja a de Anja Rosmus, mulher alemã que inspirou o filme A Cidade Sem Passado (Alemanha, 1990), de Michael Verhoeven, que ainda durante a escola começou a pesquisar sobre a sua cidade natal, que oficialmente foi palco de um campo nazista de trabalhos forçados, firmando-se ao longo das décadas como um dos poucos símbolos de resistência ao nazismo dentro da própria Alemanha. No entanto, a garota não conseguiu investigar o bastante para escrever a redação Minha cidade durante o Terceiro Reich, recebeu conselhos da mãe alertando para só falar coisas positivas, produzindo um material raso, afinal sua entrada não havia sido permitida nos arquivos municipais e aparentemente os líderes mais velhos – executivos, políticos, padres e professores – não conseguiam lembrar o período citado. Havia uma espécie de amnésia coletiva e provocada. Já na universidade, cursando História, essa mesma mulher decidiu voltar ao assunto e durante suas pesquisas preliminares, descobriu um jornal local da época da Segunda Guerra Mundial, cujo editorial defendia todos os preceitos de Adolf Hitler. Inesperadamente, ela se deu conta que o texto havia sido escrito por um de seus professores eméritos e, assim, foi novamente aos arquivos, encontrando uma série de barreiras: “primeiro, dizem que os arquivos estão emprestados; depois, que estão velhos e esfarelados demais para serem usados; mais tarde, que o material diz respeito a pessoas que ainda estão vivas, cuja privacidade não pode ser violada”, relata o historiador Robert Rosenstone.
Ao perceber que seu trabalho estava sendo obstruído, Anja Rosmus processou a cidade e ganhou o direito de entrar nos espaços, descobrindo em seguida que os documentos haviam desaparecido. Ela, contudo, não desistiu e aos poucos foi colhendo vestígios que confirmavam suas suspeitas: empreendedores judeus foram denunciados por alguns dos líderes empresariais e eclesiásticos de sua cidade natal, alguns foram mortos, outros viveram em campos de trabalhos forçados e inúmeros foram submetidos a experiências médicas. Toda produção jornalística pós-guerra que colocava o município como um símbolo de resistência havia sido resultado de uma ação coletiva dos moradores para reescrever a história, transformando os algozes ainda vivos numa espécie de heróis fantasmas (ação coletiva semelhante a que possibilita a narrativa de A Vila [EUA, 2004]), de M. Night Shayamalan). Vários chegavam a relatar seus grandes feitos pelos judeus durante o conflito, quando, na verdade, tinham arremessado tijolos nas casas de quem tentava ajudar. Ciente que essa situação não era específica em cidades da Alemanha, na sua autobiografia Robbe-Grillet conta a história dos franceses simpatizantes com o regime nazista, incluindo seus pais, de maneira fria, sem acusar ou defender, de modo que L’Homme qui Ment remete várias vezes aos documentos como provas de identidade: “preciso saber quem você é para saber se você está na lista de suspeitos”. Se a guerra incendeia a brusca relação entre dois grupos humanos em desigualdade de poder, o pós-guerra funciona como o acerto de contas da história, uma vingança, temporariamente arremessando os algozes na parede. Só que Boris Varissa possui documentos falsos e transita pelas duas épocas, saltando de um lado para o outro.
Durante a investida do protagonista sobre a aldeia, contando versões e mais versões sobre os acontecimentos durante a guerra, ele encontra um trio de mulheres que esperam por Jean Robin: são como moiras desfiando linhas passadas, no intuito de interferir, modificar, explicar e costurar as histórias contadas pelo falastrão, tudo de maneira bastante incerta, teatral, com uma associação de imagens espacial e temporalmente disjuntivas. Uma delas brinca de cabra-cega com a confiança de que as outras não lhe deixarão cair ao mesmo tempo em que simboliza um olhar agudo como morte, olhar de quem possui o tear, sabe das mentiras de Varissa e cria uma condição singular, nem crença, nem descrença, refazendo o material fílmico por meio da encenação. Dentre as mil formas de morrer, Jean Robin morre um pouco de todas elas. Sem dúvida, a compulsão pela mentira rompe em definitivo todos os laços entre imagem e verdade, não sabemos ao certo se o casal está se amando ou se matando, não conseguimos diferenciar a brincadeira da briga – como não lembrar Da janela do meu quarto?, de Cao Guimarães – iniciando um jogo em que o protagonista entrega seu companheiro de luta, depois explica como o salvou ou poderia ter salvado, para então assassiná-lo. Se um fantasma de carne não pode resistir ao tempo, certamente sua existência é baseada no ensaio não necessariamente na vivência. Não existem lembranças, Boris Varissa é um ator. Essa é sua profissão.
A preocupação do autor pela história como um campo de conquista da representação e da narração, transpõe a mais comum linha do quem conta e sobre quem se conta, para focar na forma como se conta e quando se conta, reforçando as maneiras concomitantes e contraditórias de arranjos de passado. Não só isso: finca na película que ao manejarmos sem controle reminiscências através do véu da ficção, estimulamos o desaparecimento das propriedades de ambas as dimensões, de modo que o movimento de voltar sempre, de lembrar sempre é também um movimento de deslocar sempre, como quem troca de lugar um tesouro dentro de um labirinto. Moedas caem e novas moedas entram. Assim, a sensação do espectador diante da instabilidade narrativa de L’Homme qui Ment é semelhante à da leitura de O Processo, de Franz Kafka: quase todos os leitores pensam em desistir no miolo do livro, enquanto o protagonista vaga por corredores intermináveis em busca de uma resposta, afundando mais e mais nos trâmites burocráticos de um caso que sequer entende, não conseguindo lembrar por onde passou e para onde precisa seguir. No entanto, quando insistimos até o fim, percebermos que as digressões arredias da narrativa reverberam como diretriz sensorial, ou seja, precisamos passar pela insuportável incapacidade cognitiva para que nossa experiência estética se aproxime intimamente da experiência diegética do personagem. A identidade de Boris Varissa deixa, enfim, de ser impenetrável, mas o caminho permanece árduo, pois como um “caos de aparência”, para usar o termo de André Parente diante da imagem de Proteu, o Deus grego que podia assumir todas as formas, a figura do rapaz “continua a ser puro interstício, puro possível, uma virtualidade criadora”.
A deambulação no tempo de Boris Varissa, transitando entre a posição de traidor e salvador do líder da resistência Jean Robin, afirmando e negando, dizendo e desdizendo, dialoga diretamente com os traumas nacionais colocados embaixo do tapete por determinadas sociedades. Talvez a mais famosa história nesse sentido seja a de Anja Rosmus, mulher alemã que inspirou o filme A Cidade Sem Passado (Alemanha, 1990), de Michael Verhoeven, que ainda durante a escola começou a pesquisar sobre a sua cidade natal, que oficialmente foi palco de um campo nazista de trabalhos forçados, firmando-se ao longo das décadas como um dos poucos símbolos de resistência ao nazismo dentro da própria Alemanha. No entanto, a garota não conseguiu investigar o bastante para escrever a redação Minha cidade durante o Terceiro Reich, recebeu conselhos da mãe alertando para só falar coisas positivas, produzindo um material raso, afinal sua entrada não havia sido permitida nos arquivos municipais e aparentemente os líderes mais velhos – executivos, políticos, padres e professores – não conseguiam lembrar o período citado. Havia uma espécie de amnésia coletiva e provocada. Já na universidade, cursando História, essa mesma mulher decidiu voltar ao assunto e durante suas pesquisas preliminares, descobriu um jornal local da época da Segunda Guerra Mundial, cujo editorial defendia todos os preceitos de Adolf Hitler. Inesperadamente, ela se deu conta que o texto havia sido escrito por um de seus professores eméritos e, assim, foi novamente aos arquivos, encontrando uma série de barreiras: “primeiro, dizem que os arquivos estão emprestados; depois, que estão velhos e esfarelados demais para serem usados; mais tarde, que o material diz respeito a pessoas que ainda estão vivas, cuja privacidade não pode ser violada”, relata o historiador Robert Rosenstone.
Ao perceber que seu trabalho estava sendo obstruído, Anja Rosmus processou a cidade e ganhou o direito de entrar nos espaços, descobrindo em seguida que os documentos haviam desaparecido. Ela, contudo, não desistiu e aos poucos foi colhendo vestígios que confirmavam suas suspeitas: empreendedores judeus foram denunciados por alguns dos líderes empresariais e eclesiásticos de sua cidade natal, alguns foram mortos, outros viveram em campos de trabalhos forçados e inúmeros foram submetidos a experiências médicas. Toda produção jornalística pós-guerra que colocava o município como um símbolo de resistência havia sido resultado de uma ação coletiva dos moradores para reescrever a história, transformando os algozes ainda vivos numa espécie de heróis fantasmas (ação coletiva semelhante a que possibilita a narrativa de A Vila [EUA, 2004]), de M. Night Shayamalan). Vários chegavam a relatar seus grandes feitos pelos judeus durante o conflito, quando, na verdade, tinham arremessado tijolos nas casas de quem tentava ajudar. Ciente que essa situação não era específica em cidades da Alemanha, na sua autobiografia Robbe-Grillet conta a história dos franceses simpatizantes com o regime nazista, incluindo seus pais, de maneira fria, sem acusar ou defender, de modo que L’Homme qui Ment remete várias vezes aos documentos como provas de identidade: “preciso saber quem você é para saber se você está na lista de suspeitos”. Se a guerra incendeia a brusca relação entre dois grupos humanos em desigualdade de poder, o pós-guerra funciona como o acerto de contas da história, uma vingança, temporariamente arremessando os algozes na parede. Só que Boris Varissa possui documentos falsos e transita pelas duas épocas, saltando de um lado para o outro.
Durante a investida do protagonista sobre a aldeia, contando versões e mais versões sobre os acontecimentos durante a guerra, ele encontra um trio de mulheres que esperam por Jean Robin: são como moiras desfiando linhas passadas, no intuito de interferir, modificar, explicar e costurar as histórias contadas pelo falastrão, tudo de maneira bastante incerta, teatral, com uma associação de imagens espacial e temporalmente disjuntivas. Uma delas brinca de cabra-cega com a confiança de que as outras não lhe deixarão cair ao mesmo tempo em que simboliza um olhar agudo como morte, olhar de quem possui o tear, sabe das mentiras de Varissa e cria uma condição singular, nem crença, nem descrença, refazendo o material fílmico por meio da encenação. Dentre as mil formas de morrer, Jean Robin morre um pouco de todas elas. Sem dúvida, a compulsão pela mentira rompe em definitivo todos os laços entre imagem e verdade, não sabemos ao certo se o casal está se amando ou se matando, não conseguimos diferenciar a brincadeira da briga – como não lembrar Da janela do meu quarto?, de Cao Guimarães – iniciando um jogo em que o protagonista entrega seu companheiro de luta, depois explica como o salvou ou poderia ter salvado, para então assassiná-lo. Se um fantasma de carne não pode resistir ao tempo, certamente sua existência é baseada no ensaio não necessariamente na vivência. Não existem lembranças, Boris Varissa é um ator. Essa é sua profissão.
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