terça-feira, 4 de dezembro de 2012

007 - Aberturas - Parte 1

Não posso afirmar que sou desde garoto um grande entusiasta da franquia 007, no máximo sentia uma breve curiosidade por um filme ou outro por causa do meu irmão mais velho ou revia, um tanto indiferente, trechos de Octopussy (1983) nas reprises anuais que rolavam no Corujão, de modo que minha relação mais interessada se confunde com a plena devoção que desenvolvi pelo jogo de Goldeneye (1995) do Nintendo 64. Definitivamente assisti ao filme por causa do jogo, o prazer não estava em qualquer afinco mínimo pela narrativa em si, ainda que tenha aprendido a apreciar bastante, mas por uma vontade de reconhecimento de tudo que já conhecia tão bem: ficava empolgado ao adentrar cada um dos cenários, muitas vezes vistos por perspectivas que não existiam no videogame; julgava a caracterização dos personagens pela relação afetiva que já tinha estabelecido; prestava atenção nas armas para saber, no jogo, quais eram as fidedignas e quais, as arbitrárias. Havia uma fagulha da sensação que meu sobrinho atualmente traduz perfeitamente quando compara os filmes de Guerra nas Estrelas com os jogos da mesma franquia: ele é fascinado pelos filmes; se passarem mil vezes na televisão, ele assistirá as mil vezes; contudo, enquanto o jogo for relativamente novo e ele não tiver chegado até o fim, não tiver zerado, ele vai continuar gostando mais do jogo, daquele jogo em específico, por estar participando da trama, por naquela batalha espacial qualquer com centenas de milhares de naves, ele ser um dos pilotos. No caso de Goldeneye, ainda havia o agravante chamado multiplayer, um sistema que possibilitava quatro pessoas jogarem umas contra as outras ao mesmo tempo nos cenários do jogo e com todos os recursos possíveis. O elemento novidade se renovava a cada disputa, porque, pelo menos eu, sempre estava aberto para o desafio de novos amigos ou efêmeros desconhecidos. Quando ficava jogando com os mesmos perdedores ruins não tinha graça alguma. A rotatividade era um princípio.

Como de praxe em meus comentários, fiz todo esse preâmbulo só para contextualizar que finalmente resolvi expandir, de maneira sistemática, minha breve curiosidade sobre a franquia do double o seven depois de Skyfall (2012), assistindo todos os filmes em ordem rigorosamente cronológica. Sinto como se meu inconsciente soubesse que algum dia iria me propor a isso, por enquanto dava um jeitinho de empurrar com a barriga como todo mundo faz com seus ~amados~, mas com o fechamento da trilogia de Daniel Craig, iniciada com Cassino Royale (2006), talvez ele volte, talvez não, o sentimento virou uma espécie de obrigação. Há o motivo específico que já virou tema de um post, mas a grande sacada está impressa numa dupla e subversiva dimensão temporal: os três filmes mais recentes se passam nos dias atuais - há personagens que sentem saudade da Guerra Fria; os vilões são terroristas com envolvimento no Oriente Médio ou hackers que montam uma espécie de batalha virtual; o próprio James Bond ainda está em fase de formação e há uma jornada pela sua história pessoal e afetiva, tema nunca abordado com tanta profundidade -, no entanto, dentro da cronologia da série, o último filme termina basicamente pouco antes dos eventos de Dr No (1962)Até a personalidade do Bond-Craig - abusado, impulsivo, grosseiro - vai aos poucos se transformando na personalidade do Bond-Connery - irônico, bem-humorado, sedutor. Os críticos tentam rebater o desrespeito temporal em busca de um realismo, por meio do conceito de reboot, como se a série tivesse sido zerada e começado de novo. Na minha visão, trata-se de um prequel, cujo tempo cronológico está vinculado ao século XXI, mas que antecipa o tempo diegético iniciado no pós-Segunda Guerra Mundial, período histórico que condiz com o nascimento e a existência do agente secreto, como uma tentativa da indústria do entretenimento britânica de camuflar a falta de prestígio do Reino Unido na geopolítica internacional.

Seja como for, assisti nas últimas semanas, todos os filmes da década de 1960 da série 007 e logo depois das duas primeiras produções já estava viciado, nunca mais vou esquecer dos personagens secundários (M., Q. e Moneypenny), de algumas das Bond Girls - espécie de Pin Ups britânicas sempre prontas para o sexo; dos inúmeros acessórios tecnológicos, dos cenários provindos dos quatro cantos do mundo ou dos planos megalomaníacos dos vilões excêntricos e geralmente não britânicos. Aliás, fiquei um pouco chocado com um racismo triturado que existe na franquia (o machismo é descarado, as mulheres inclusive apanham de Bond), não só pelos vilões serem chineses, alemães, americanos, italianos, russos, coreanos ou latinos, mas por todos eles vincularem estranhos e escatológicos hábitos, condicionantes de um psicopatia, com suas identidades nacionais. Ainda assim, fiquei especialmente encantado com as aberturas dos filmes, uma antecipação da noção mais redonda de videoclipe e uma das marcas fundamentais das aventuras do agente britânico.

007 contra o satânico Dr. No (1962)

O comentário comum sobre a abertura de Dr. No costuma destacar a primeira aparição da vinheta em que a câmera assume a visão de dentro do cano da arma do inimigo, provavelmente o emblema maior da série, ainda que possa apostar em qualquer mesa de apostas, que certamente não é o primeiro contato que a maioria dos espectadores contemporâneos possui com a sequência. A música tema ainda não havia sido incorporada especificamente nesse momento, de modo que a banda sonora é mesclada entre o tema tradicional de Bond com um divertido ska jamaicano da banda Byron Lee's Dragonaires. Ambas as canções determinam o ritmo das formas coloridas desenvolvidas pelo designer Maurice Binder, responsável por catorze das aberturas da série, inclusive por inúmeras da década de 1960, que antecipam um caminho lógico entre a Pop Art e a Psicodelia. Se mais para frente, as aberturas passam a acumular referências subliminares sobre o tema e a trama do filme, no caso de Dr No apenas funciona como um prólogo quase infantil para a cena de assassinato que abre a produção, cujas marcas narrativas centrais da franquia já estão evidentes.


Moscou contra 007 (1963)

Vou começar com duas referências: essa abertura me lembra muito da cena em que a Brigitte Bardot dança um mambo louco e sensualiza com todos os músicos em E Deus Criou a Mulher (França, 1956),  de Roger Vadim e a cena em que Anna Karina dança num cabaré em Uma Mulher é uma Mulher (França, 1961), de Jean-Luc Godard, especialmente por essa apropriação mais sofisticada e sensual da cores sobre os corpos / rostos, tais como os inicialmente famosos propostos por Andy Warhol. Daí temos só pérolas, do 007 sobre os seios balançando freneticamente ao nome de Sean Connery projetado sobre a barriga que simula um movimento sexual. Finalmente descobri de onde veio a inspiração para os créditos finais do curta Faço de Mim o que Quero (Brasil, 2010), de Sérgio Oliveira e Petrônio de Lorena, ainda que a ligação mais próxima esteja no também curta Toques (Brasil, 1975), de Jomard Muniz de Britto, que vem com um provocativo Fim escrito logo acima dos pêlos pubianos de uma mulher nua. A referência ao corpo feminino exuberante e sedutor, revela que Moscou contra 007 conta a história de um corpo que se exibe até as últimas instâncias, mas que não pode ou deve se apaixonar, uma narrativa que não tem qualquer relação com o título em português, pois originalmente o título vem de uma falsa carta de amor recebida por Bond: from Russia, with love.


007 contra Goldfinger (1964)

Eu detesto Goldfinger, apenas porque o filme é uma distração dentro da história maior, a luta de James Bond contra a organização internacional Espectre, iniciada indiretamente com Dr No. O filme anterior mostrava um número sem fim de vilões identificados por números, coordenados pelo número 1, cuja aparência era apresentada apenas pelas mãos alisando um gato, igualzinho ao vilão do Inspetor Bugiganga. Com assisti aos três primeiros em sequência, queria saber o rosto do vilão ironizado por Austin Powers, estava realmente alimentando uma ansiedade vinda da lógica de videogame, como se cada filme fosse uma fase, com um chefão incrível no final, mas o que acontece em Goldfinger é um absoluto desvio da narrativa mitológica, como se costuma falar nos seriados, por um episódio isolado, uma missão qualquer. Fiquei #chatiado. Seja como for, essa é a primeira abertura com a música tema, interpretada por Shirley Bassey, mantendo o conceito de projeção sobre corpos femininos do filme anterior. Contudo, as projeções são de cenas do próprio filme, estimulando o espectador a traçar um fio da meada pelo que lhe é minimamente apresentado. Sem contar que as cenas versus partes do corpo combinam bem, da placa mudando na boca delineada ao agente secreto fugindo do helicóptero sobre as pernas.


007 contra a chantagem atômica (1965)

Não sei se é por causa do retorno à história principal, da luta contra a Spectre, mas esse é o meu filme favorito da década de 1960 e o primeiro, nerdices.com.ativando, em que James Bond se abaixa um pouco para atirar durante a vinheta do cano da arma. Confesso que em todos esses filmes da Guerra Fria, sou fascinado pelos que trazem uma ameaça nuclear real, com grandes líderes mundiais temendo pelas suas cidades, justamente com medo da arma que não param de produzir e acumular. O que eu acho mais incrível em 007, totalmente oposto dos sensacionais trabalhos de Resnais e John Hersey, é que a bomba nuclear é quase uma experiência lúdica, assume um caráter de entretenimento puro, como se fosse uma versão adoro passar por hurricanes com meu amor da Guerra Fria. Além disso, o filme conta com um vilão maravilhoso, tem roubo de avião, tubarão e muita pegação, além várias cenas com Sean Connery sem camisa. Não aprecio isso por tesão, mas pelo fato dele ser muito peludo, tem pêlos até nas costas, e com Daniel Craig - que eu adoro também - as coisas são muito assépticas, não tem um pelinho no sovaco. Sei que reflete esse mundo de homens com pernas raspadas e tal, mas acho bom termos também essa outra referência de macho. Então, sobre a abertura, continua a influência da Pop Art, mas com o tema ~aventura submarina~, tendo como destaque a brincadeira das silhuetas femininas nadando.


Com 007 só se vive duas vezes (1967)

Todo mundo que costuma jogar videogame já passou pela situação de penar trocentas horas até chegar no último chefe, às vezes são quatro e tantas da manhã quando você chega lá, jurando que só vai conseguir terminar às sete, daí na primeira tentativa tudo se resolve facilmente. O gasto de tempo fora muito maior no segundo ou terceiro chefão lá no começo do jogo. Há nessa situação a mesma frustração que existe nesse filme por conta da revelação do número 1 da Spectre, um absoluto fanfarrão que realmente se confunde com a paródia de Mike Myers e que ainda escapa, voltando nos filmes seguintes. O grande trunfo dessa produção é tomar a Guerra Espacial como mote, tanto pelos satélites sendo sequestrados, com efeitos especiais pré-2001 - Uma Odisséia no Espaço (1968), como pela clara evidência de que o Reino Unido não ocupava o velho espaço na macropolítica internacional. James Bond surge aqui como uma alternativa diante do inevitável embate entre as super-potências, como se o serviço secreto da rainha tivesse sido o real responsável, numa micropolítica que não está nos livros de história, por evitar uma guerra nuclear. Essa é a pior abertura da década, não possui qualquer influência da Pop Art, apostando em desenhos de alvos, colagens e fusões não bem sucedidas, com intuito de deixar claro que se o tema anterior era água, agora a história vai dialogar com o fogo.


007 a serviço secreto de Sua Majestade (1969)

Sean Connery abandona o papel de James Bond nesse filme, oficialmente por acreditar que já estava velho para o personagem do agente sedutor, mas também pelo cansaço imposto pela rotina produtiva da franquia e pelo assédio da imprensa (sempre ela enchendo o saco!). Ele terminaria voltando em Os Diamantes são Eternos (1971), porque o seu substituto, George Lazenby, não havia agradado os produtores, porque o público britânico não tinha aceitado bem que um australiano servisse de símbolo dos modos ingleses.  Um escocês podia, um australiano não. Há uma contradição não inocente nesse filme: mesmo apropriando superficialmente a cultura hippie, fazendo referências às viagens de LSD como experimentos do vilão, Bond está muito mais casto, termina se apaixonado e casando, atitude totalmente discrepante da posição de Sean Connery, afinal ele passava a impressão hedonista que estava comendo não só as personagens, mas as atrizes e as assistentes técnicas em geral. A abertura  faz uma retrospectiva dos outros filmes através de inúmeros personagens que não o próprio agente, brincando vez ou outra com o formato de uma vagina sob a voz marcante de Louis Armstrong.

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