sábado, 29 de dezembro de 2012

O Hobbit (EUA / Nova Zelândia), de Peter Jackson


A sensação horas antes de sair de casa para assistir O Hobbit era a de que estava gradualmente, talvez tenebrosamente, voltando para o ano de 2002, sendo mais preciso para o dia primeiro de janeiro, quando A Sociedade do Anel entrou em cartaz no país. Diferente daquela época, a histeria não veio com tanta intensidade antes do filme, dez anos pareciam o suficiente para encerrar qualquer ímpeto mais eufórico, de modo que não entrei na procrastinação da curiosidade minimalista sobre os rumos da produção. Assimilei apenas o básico impossível de resistir: tanto o oba oba (só que o contrário) em relação à captação hiperrealista em 48 fps (frames per second), como o repercutido lenga lenga de fãs e críticos, acusando Peter Jackson de, apenas por causa dos lucros, ter transformado um livro curto infantil numa trilogia. Pior que para quem olha de longe ou de muito perto é isso mesmo. Como queria olhar numa distância agradável, olhar para além do velho lamento sobre a indústria cinematográfica, para além dos exageros ortodoxos dos fanáticos e me focar na adaptação enquanto estratégia, arrumei um tempo dentro da rotina apertada para ler o livro de Tolkien na mesma semana. Nunca suportei o argumento de falta de fidedignidade ao original como desculpa para não gostar de um filme. Quando terminei na manhã da sexta-feira de estreia, estava ávido pelas imagens, passei algumas horas contentando-me com os trailers oito vezes ou mais, o bastante para perceber o quão estava morrendo de saudades da Terra Média. Daí nem preciso relatar o embasbacamento emocionando quando as luzes se apagaram, quando começou a trilha sonora, quando apareceram os primeiros mapas, quando os anões cantaram, quando Gandalf contou sobre a existência de apenas cinco magos – deixando-nos a pergunta de “como nasce um mago?” - e quando se desenrola a impressionante batalha do trovão (algo só sublinhado sem forma no livro, mas captado com proeza pela interpretação hollywoodiana de Jackson). 

Admito de antemão que desde pequeno meu fascínio pelos gêneros da Fantasia e da Ficção Científica, nunca consegui criar uma hierarquia entre eles, estava ligado a certo tédio desenvolvido pelo mundo material que eu habitava. Tenho a crença de que esse é o sentimento clássico das crianças que entram numa jornada inesperada em qualquer narrativa (História sem Fim; Fantástica Fábrica de Chocolates, etc). Seguindo com um punhado de referências do cinema, da televisão, da literatura, dos quadrinhos e dos videogames, transformava o cotidiano, o meu e o dos outros, num espaço imantado de fagulhas de tempos mitológicos, provindas de civilizações reais ou imaginárias, passando por universos distantes anos luz até recuperar acontecimentos históricos grandiosos. É mais ou menos assim que nasce um nerd. Durante a adolescência, confesso que passei alguns anos esperando um grande acontecimento, se necessário fosse uma grande tragédia, qualquer coisa que animasse um pouco, que movimentasse a diferença e tirasse o mundo como conhecemos da rotina. O ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 correspondeu em parte às expectativas. Seja como for, acredito que a nostalgia, pensando como uma projeção saudosa pelo que foi, pelo que poderia ter sido e pelo que poderá ainda acontecer, é a força motriz e criativa que movimenta esse embate entre o sujeito e fantasia (vide Caverna do Dragão). E a Terra Média é pura nostalgia: são os anões querendo recuperar a sua casa e contando histórias daquele tempo, é Bilbo acanhado, triste e distante, lembrando da quentura de sua lareira, é Gollum – mais incrível do que nunca, na cena talvez melhor adaptada do livro – brincando de adivinha e desesperado procurando reaver o anel roubado. Peter Jackson redimensiona a mitologia de Tolkien através de uma sensibilidade Pop, algo que desagrada os fãs radicais e que me parece a maneira mais emblemática de trabalhar esse universo, algo que ele pesa a mão e acentua em O Hobbit, uma trama mais doméstica e familiar, para aproximar do tom épico do Senhor dos Anéis

No entanto, vale dizer que, apesar das semelhanças cinematográficas, há uma distinção clara entre a narrativa de O Hobbit e a trilogia do Senhor dos Anéis, não só porque o livro foi escrito para os filhos de Tolkien e lançado no final de 1937, mas, e fazendo a primeira defesa do filme, as páginas do primeiro não se perdem em descrições ilimitadas como no segundo, as palavras vão direto ao ponto. Assim sendo, uma mesma ação que se desenrola em duas páginas ou que é apenas levemente citada termina se transformando em longas sequências, como se o diretor estivesse aproximando o argumento do livro isolado da maneira de contar da trilogia, ampliando seu domínio e mapeamento audiovisual da Terra Média. Ou seja, mesmo só adaptando os seis primeiros capítulos em Uma Jornada Inesperada, os roteiristas inseriram referências provindas de apêndices ou trechos de outros livros do autor, num claro movimento de acoplar a trilogia vindoura com a anterior. A ênfase no Necromante, por exemplo, deve render nos próximos filmes uma gênese mais detalhada de Sauron (algo totalmente inexistente no livro). De maneira geral, O Hobbit é um bom exemplar de narrativa de travessia, formato em que um grupo com uma missão segue em direção a um determinado destino, atravessando paisagens completamente diferentes, tais como florestas selvagens, descampados, pântanos, montanhas congeladas e cidades de Orcs. Um dos integrantes da comitiva, geralmente o último a decidir participar, no caso Bilbo Bolseiro, atravessa a sua jornada também passando de figura desacreditada pelos outros, ganhando pouco a pouco o respeito até se tornar uma espécie de líder. Essa premissa, aliás, é bastante próxima da aventura de Frodo, só que o pequeno amigo de Sam não assume a postura de líder, mas de salvador. São duas posições bem diferentes. 

Lendo algumas críticas depois de assistir ao filme e depois de fuçar em busca de toda merda possível vinculada, livro de receitas dos anões, livro de auto-ajuda dos hobbits, percebi a repetição de uma mesma ~opinião~: a cena inicial é ~cinematograficamente~ enfadonha. A festa inesperada é o primeiro capítulo do livro, acredito que a duração na tela seja cirúrgica no sentido de destrinchar, com a devoção e apropriação de Jackson, os hábitos de um hobbit, o contato com os anões e o jeito ardiloso do mago Gandalf. Bilbo, com todas as suas antiguidades e panos ornamentais, um ser miúdo e simpático que gosta de receber visitas, mas que jamais se meteria por vontade própria numa aventura, surge como uma parábola de todos que têm medo e receio de abandonar, temporariamente ou não, suas vidas confortáveis e acomodadas. Ele é simultaneamente a vida adulta estabilizada e a criança entediada com seu mundo. Nada mais justo que o convencimento, num contrato que fala sobre lacerações e incinerações, dure pelo menos quinze minutos. Ainda nesse momento, parece que não, mas é muito importante quando os anões começam a cantar, porque eles são um povo festivo, adoram beber e comer, mas são também um povo ferido, nômade, que teve seu lar assolado pelo dragão Smaug. Eles costumam usar das canções para anunciar uma jornada ou para comentar o que aconteceu com seus antepassados, cantam tanto a própria história como o prenúncio dos próximos passos, quase como se arquitetassem planos e lembrassem através de versos. A relação dos personagens em O Hobbit é mais de cumplicidade e respeito do que de intimidade desenvolvida por homens marcados pela guerra, como em Senhor dos Anéis (que foi lançado apenas na década de 1950, unindo a experiência ativa do autor durante a Primeira Guerra Mundial com a partida do filho para lutar na Segunda Guerra Mundial). 

Portanto, a obra de Tolkien, muito bem adaptada por Jackson, não fascina pelos seres mágicos jogados de maneira aleatória, mas pela minuciosa capacidade de criar diferentes culturas e intricadas relações dentro de um mundo mitológico imaginário (ok, que presta contas com várias culturas européias). Cada uma das raças possui elementos específicos facilmente reconhecíveis, traços que passam pelo próprio porte físico, mas adentram a indumentária, o cotidiano, a gastronomia, a moradia até atingir o ápice do detalhismo por meio das línguas distintas e dos artefatos mágicos que tensionam todo o universo da saga. O autor filólogo também criou, aliás, o que mais me interessa, uma história dessas culturas, de modo que os seres dos livros / filmes estão inseridos numa temporalidade, que envolve não apenas a genealogia dos personagens – Thorin filho de Thráin filho Thrór – mas fatos históricos de outras eras, além de manuscritos em idiomas extintos, hábitos que foram sendo perdidos; moradas que foram abandonadas. Há a própria história da criação da Terra Média no Silmarillion, um dos textos criacionistas mais belos que já li na minha vida. Então, aos 27 anos, quando achava que qualquer fanatismo bobo já teria perdido o sentido, quando as pessoas vão pouco a pouco acalmando a exposição dos sentimentos, O Hobbit, com alguns problemas como a aparição de Radagast, o vestido cafona de Galadriel, a criação do Orc vilão Azog e o nome inverossímil, Sebastian, para o porco-espinho, veio para me provar outra direção da experiência, cujo fluxo do envelhecimento não serve para as pessoas se tornarem mais secas, não é a mera substituição do deslumbramento pelo conhecimento. O filme de Peter Jackson também é sobre isso. 

Ps.: Fui rever O Hobbit em 48fps para saber se realmente tinha alguma diferença ou se era ~pura~ jogada de marketing. Tem diferença. No começo, o filme fica um pouco acelerado, mas estabiliza essa sensação logo, no entanto, fiquei agoniado durante quase toda a projeção quando a câmera enquadra com proximidade os atores numa cena clara. Isso não só porque tudo remete muito à televisão, mas porque me lembrou diretamente aqueles filmes de mitologia grega, tipo Hércules, que passava à tarde no SBT (que eu adorava assistir, mas paciência!). Por outro lado, desde o começo é impressionante o nível de detalhismo que conseguimos enxergar, especialmente nas grandes cenas abertas com muitos efeitos especiais, em dado momento bate até uma sensação de que até ali não estávamos vendo os filmes direito. Chega o ponto de que não basta perceber com minúcia o volume dos ambientes e objetos, mas perceber com clareza os materiais de que são compostos. Ainda assim, concordo com um amigo sobre o assunto: primeiro é necessário saciar a vontade nerd e assistir normal (ou em 3D normal), depois saciar a vontade / curiosidade cinéfila em 48 fps.

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