segunda-feira, 30 de abril de 2012

Pelo desejo de fantasia no pós-colonialismo


(Publicado originalmente no Filmologia)

Quando se comenta sobre a história da representação num duelo e namoro entre a pintura, a fotografia e o cinema, uma história do centro contada pelo centro para o centro, a invenção de Nicéphore Niépce e a subsequente provocação dos irmãos Lumière são sinalizadas como artefatos fundadores, não apenas por terem redirecionado o desejo realista das artes visuais e libertado a potência dos sonhos naquele campo, estimulando demandas que desembocariam no Modernismo, mas especialmente por esboçarem pela primeira vez uma gama imagética do mundo nunca dantes experimentada e consumida pelo próprio mundo. Os franceses, nesse período, financiavam inúmeros técnicos para viajarem os quatros cantos em busca de registros, de modo que lugares mais ou menos exóticos apenas contados, relatados, fantasiados, ganhavam um rosto e um vislumbre de olhos, fundava-se ali um estatuto de visão eurocêntrico, que procurava diminuir gradualmente o espaço das lendas e tradições orais mais ou menos exageradas. Ao serem confirmadas, desfeitas, relidas, as fantasias cediam o seu poder particular de incompletude e ambiguidade à uma fria instância de certeza (e, claro, só aparente certeza). 

Aliás, como comenta o sociólogo Paulo Menezes, ninguém poderia imaginar que tais artefatos pudessem se transformar numa das influências mais determinantes do olhar no século XIX e século XX, afinal imagens tão perfeitas do exterior desorganizavam em absoluto os esquemas pelo quais as pessoas decifravam o caminho datado das representações. Aguçava-se, assim, uma capacidade de memória individual e coletiva, o passado íntimo e social deixava de lado o imaginário muitas vezes preconceituoso para ganhar uma existência concreta, ainda que paulatinamente se confirmasse como uma postura de dominação do centro em relação às periferias, uma guerra de objetivos políticos constituída através da produção de subjetividade. Por isso, quase um século depois, no processo de descolonização, o cinema de Djibril Diop Mambéty parece recontar todo esse dilema por vias esquecidas, pela volta de um desejo de fantasia, não apenas repensando a representação produzida pelos colonizadores, mas indo além da afirmação identitária proposta inicialmente pelos colonizados. Nem o apelo exótico de uns, nem a autocomplacência de outros. 

O senegalês em Contra’s City, Badou Boy, Touki Bouki ou La Petite Vendeuse de Soleil é responsável por outro tipo de desenho do rosto de seu país, como se livre da necessidade de ser fiel ao retrato proposto por seus antecessores, presos a necessidade do negro representar o próprio negro, do senegalês contar a história do Senegal, estivesse mais preocupado com os motivos do sorriso, com os desejos escondidos, criando máscaras sobre máscaras dentro da instância do sonhar. Parece contraditório, mas a história é inversa em relação ao centro: se fotógrafos pioneiros como Seydou Keita, cujos eloquentes retratos produzidos na transição entre colônia francesa e independência, registravam a contradição corporal de nativos que desejavam serem identificados como europeus ou por outro lado, que desejavam reforçar suas raízes do que verdadeiramente significava ser africano, Mambéty surge da superação de esboço da realidade por uma imprescindível abertura irônica de afetos e pulsões. Para ele, a liberdade pós-colonial era desconhecida até então, atachada entre regimes de dominação e resistência, do velho modelo dicotômico, surgindo apenas quando fosse possível não esquecer o passado, não negar o presente e, ainda assim, ser plenamente possível fantasiar. 

Certamente, na história do centro contada pelo centro para o centro, a fotografia encerrou as funções utilitárias da pintura, colocando como questão não o caso da fotografia ser ou não um tipo de arte, mas ressaltando um problema anterior: se a fotografia e consequentemente o cinema não havia alterado a própria natureza da arte. Quase um século depois, no continente africano, a questão da representação assume um dilema ainda mais profundo, pois na impossibilidade de pensar uma história da imagem africana, inicialmente limitada ao registro de colonizadores e em sequência submetida a uma necessidade de autorepresentacão dos colonizados, é como se no primeiro caso os negros só existissem quando os brancos falassem de sua existência e no segundo, como só existissem quando passassem a serem vistos pelos brancos. Apesar da importância de pensar por essa lógica, afinal vemos todas as partes do mundo muito mais do que vemos a África, matizando um estatuto do olhar bastante cruel, mesmo no segundo caso, a liberdade ainda parece enclausurada pro uma obrigação de resposta. 

 Emerge, então, numa tendência brilhante de intuição que se desvia de ambos os caminhos, o cinema de Mambéty explorando as formas para além do colonialismo e do renascimento cultural pós-colonialista, introduzindo de maneira bastante poética – e não submetendo o continente – ao contexto de globalização. O cineasta parece mais preocupado em lançar imagens que menos representam o seu país, o Senegal, por meio do embate entre hegemônico ou subalterno, ambos preocupados com seu próprio realismo, mas traçando um inventário de sonhos obstruídos, por vezes infantis e ingênuos, que revelam a necessidade que sobrevoa o conflito direto, para abarcar, numa política de pequenos passos, um universo que se perde. O ambiente é hostil, sim, as dificuldades são imensas, sim, as consequências foram desastrosas, claro, mas a negação da luta por um imaginário particular parece ser mais importante, afirmando assim uma luta subjetiva, que utiliza dessa realidade exterior como dimensão espacial de um ensaio alegórico. Há em Mambéty um despretensioso projeto de invenção cotidiana e cinematográfica. 

 O caminho percorrido adentra universos da microesfera, da relação entre as pessoas, os marginais dentro da marginalidade, a ironia como modelo de verdade, os anseios contraditórios de cosmopolitismo, mixando referências encrostadas através de entradas invisíveis, redesenhando o lugar não pela concretude, mas justamente pelo intangível. A fragilidade e bravura de seus personagens denotam inclusive atualizações internas em sua carreira, entre a década de 1970 e sua produção final da década de 1990, pensando, inclusive, no pulo do gato de não-produção durante quase vinte anos. Do primeiro momento para o segundo, redescobre novas instâncias de liberdade para com as próprias que havia instaurado, de modo que claramente abandona a vontade de experimentação formal por uma intensificação dramática, nunca piegas, sempre onírica. Brinca com os gêneros, aposta nos ângulos, destrincha suas fábulas duras e certeiras, como as frases de fundo dos Mammy Wagons (caminhões de passageiros que carregam placas similares às brasileiras), pensando que nenhuma condição é permanente, que a vocação de fazer ou não fazer cinema é transmutável, quiçá efêmera, que melhor que retratar apenas o mundo material dos olhos é preciso, enquanto podemos, apostar nos mundos imaginários de outros olhos.

Badou Boy (Senegal, 1970), de Djibril Diop Mambéty


(Publicado originalmente no Filmologia)

Não foram poucos os cineastas que nos anos iniciais de carreira se apropriaram da figura do bandido para reforçar os contornos de um cinema experimental e de vanguarda, alinhando a transgressão narrativa que propunham nos ângulos, planos, cortes e durações aos elementos diegéticos da história contada. É quase como se, esboçando o poder menos como propriedade e mais como estratégia, procurassem contestar um padrão estético e assim afirmar uma postura política por meio da marginalidade como arma inquieta, hedonista e liberta. Trata-se de um ponto que, correndo o risco do imaginário glamourizado, liga o cineasta enquanto ator de um mercado simbólico ao personagem enquanto ator de um sistema de representação. Ambos marginais. Jean Vigo, por exemplo, usou de adolescentes revolucionários, um misto radical de suas experiências com a memória anárquica do seu pai, na luta contra a ordem estabelecida pelos professores em Zero de Comportamento (França, 1933). No seu único produto audiovisual, Um Canto de Amor (França, 1950), Jean Genet revela o desejo sexual de presos como caminho para ultrapassar as fronteiras da prisão, colocando as fantasias sexuais enquanto instâncias de criação / transgressão. O espírito libertário atravessa fendas nas paredes, fechaduras, transpõe guardas noturnas, cadeados, assume forma de fumaças passadas boca a boca, de falos eretos, peitos ossudos e suados, não tomando conhecimento das restrições da gaiola. Só pelo cinema francês, a lista poderia seguir interminavelmente, com Truffaut esboçando seu alter-ego da juventude rebelde em Os Incompreendidos (França, 1959) ou Godard fazendo das infrações de Michel Poiccard para com o mundo em Acossado (França, 1960), sua própria vontade de rejeitar as normas institucionalizadas do universo cinematográfico. Acontece que a simbologia de Bonnie e Clyde ronda essa vontade de arte-crime, uma necessidade dos cineastas fazerem os outros escutarem um som ensurdecedor, abrirem os olhos para a marca inevitável da história, por meio de uma rede de insubordinações inseridas em variadas esferas, fundamentando a transversalidade indiscutível entre a estética e a política. 

No caso do média-metragem Badou Boy, o senegalês Djibril Diop Mambéty segue alguns cacoetes do cinema que aprendemos a identificar como de vanguarda – ele próprio é considerado um dos pioneiros do experimental no cinema africano – filmando uma câmera que parece estar durante uma filmagem, num truque metalinguístico que poderia ser classificado como ingênuo em pleno início da década de 1970, mas que ganha segundas e terceiras camadas pelo uso jazzy do som – ora disjuntivo, ora reflexivo, sempre irônico e auto-irônico – característica que viria a ser uma das marcas de seu cinema. Aliás, a presença de vozes dubladas em tons mordazes, que claramente denuncia uma dificuldade de captação direta, uma aplicação meio Telephone Colorido que chega a beirar Os Trapalhões, aproxima o cineasta do desbunde proposto por Rogério Sganzerla – outro, que tomou a história de um bandido, o da luz vermelha, para dizer como gostaria de fazer a partir dali a história de seu cinema. Ainda que também tenham usado a figura do marginal, cangaceiros, poetas, operários, essa postura é bem diferente da pleiteada por certo cinema terceiromundista, o paradigma que envolve Glauber, Solañas e Getino, pois a política deixa a evidência para encontrar sua potência nas nuances, de forma que Badou Boy fala do pós-colonialismo sem falar, tematiza o lugar do subalterno por relações internas ou por ações lúdicas, formulando uma gama de outras maneiras de contestação, sem deixar de lançar olhares sobre a falta de rumo dos renegados e a incapacidade de organizarem ferramentas de resistência. Há apenas a vontade intensa de viver o sonho da fuga, uma persistência na crença de que a o final feliz está em outro lugar. O filme reporta as desventuras de um garoto transgressor de profunda inclinação onírica, seguindo por um lado a tradição do jardim dos delinquentes já pontuada e, por outro, o diálogo proposto por Jean Rouch em Eu, um Negro (França, 1958) e especialmente Jaguar (França, 1967), nessa busca desesperada pela invenção de pequenas felicidades, aparentemente falsas e ficcionais, onde o rapaz emula cavaleiros, onde o marginal se passa por herói, mas cuja estrutura interior carrega o seu próprio modelo de verdade. 

Certamente o uso do som no filme além de imprimir um caráter pop e cômico acoplado ao cenário paupérrimo, conjugando uma estranha conexão entre riffs do mundo ocidental e interações urbanas subalternas, almeja instaurar a atmosfera do cosmopolitismo periférico, uma espécie de modernidade alternativa, cujas contingências locais desfilam ambiguidades e contradições do processo. Entre marcas sutis da dominação e da resistência, Mambéty aposta em algumas alegorias passageiras, cheias de sarcasmo e humanidade, seja quando denota com um afinco engajado a sutil diferença de classes pelo uso do chapéu, seja pela cena em que o menino brinca com balões coloridos num cenário seco, terroso, com tons que variam entre o cinza dos muros e o marrom do chão. Os balões são levados pelo vento, passam o muro, somem, com um corte preciso entre dois planos, o enfante consegue recuperar. Aliás, a presença humana é que matiza a imagem, as roupas, os panos, adereços, atitudes, mulheres com ânforas, de modo que Badou Boy – arruaceiro, bagunceiro, treloso – segue o jogo de gato e rato com o comissário da polícia, um jogo entre Senegal e a França, terminando seus dias estrangulado pelos sonhos e pelas mãos de seu algoz. Ele não passa de mais um garoto como outros, morto num terreno abandonado e ainda assim, não perde seu interesse pela brincadeira, não se entrega aos braços do conformismo. Mambéty sugere que se nos centros mundiais, a efervescência política e cultural procurava intuir um modus operandi de luta subversiva por meio do uso de flores contra armas, o Flower Power, ali no Senegal, eles estavam literalmente comendo as flores. Não procura, no entanto, despertar a complacência em seus espectadores ou opressores, só acredita que o espírito juvenil é um templo antagônico em relação às figuras de autoridade e aposta nesse universo com uma certeza ímpar. Badou então olha a estrada, usa do velho truque do falso cego, sabe que dali pela frente, um longo caminho lhe espera.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

#Occupyeverything / #Ocupetudo

Ainda que tenha passado despercebida por parte da população, a eclosão simultânea e contagiosa de protestos no ano passado, com reivindicações particulares em diferentes regiões do globo, firmou-se como o maior fenômeno político contestador desde maio de 1968, avizinhando as suas considerações pelas formas de luta similares e a consciência de solidariedade mútua entre as iniciativas. A onda de mobilizações começou com a Primavera Árabe, no norte da África, derrubando ditaduras na Tunísia, no Egito, na Líbia e no Iêmen; prosseguiu pela Europa, com ocupações e greves na Espanha, Grécia e revolta nos subúrbios de Londres, eclodiu no Chile e ocupou Wall Street, o coração especulativo dos Estados Unidos, gerando frequências para diferentes partes do mundo. Justamente procurando pensar o desenrolar dessa sequência de eventos num futuro próximo, a Boitempo Editoral lançou o livro Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (R$ 10, vendido a preço de custo), com ensaios de estudiosos de diferentes áreas, como os filósofos Slavoj Zizek e Vladimir Safatle, o sociólogo Emir Sader e o teórico David Harvey. 

O estopim do protesto na Tunísia aconteceu no final de 2010 com o suicídio por imolação (ateando fogo ao próprio corpo) de Mohamed Bouazizi, um vendedor de frutas que protestava contra a apreensão de suas mercadorias, simbolizando não apenas um desespero individual, mas ressonando como um esgotamento psicológico de muitos povos em um mesmo momento. No Brasil, tivemos não apenas a sistemática repressão policial em marchas da maconha, durante a expulsão / massacre dos moradores de Pinheirinho em São Paulo, mas na própria maneira como sistematicamente o poder político vem cedendo ao poder econômico, empurrando modelos de desenvolvimento urbano cada vez menos preocupados com os direitos públicos e coletivos. Basta ver a situação de inúmeros recifenses, que sentem na pele todos os dias, a condição logística de assentamento vertical / destruição de patrimônio cultural, que resulta num trânsito cada vez maior, assim como soluções profundamente equivocadas. 

Nos diferentes países houve a mesma forma de ação: espaços públicos foram ocupados pelos manifestantes exercendo a sua cidadania, os eventos foram organizados através de redes alternativas e todo movimento parte de uma vontade espontânea sem vínculos partidários. Para David Harvey, essa passagem do mundo virtual para o mundo real é chamada de união dos corpos no espaço público e essencial para efetivar as mudanças. Zizek, por sua vez, ressalta que o ano de 2012 é importante para dar continuidade ao processo: "os carnavais saem baratos - a verdadeira prova de seu valor é o que permanece no dia seguinte, o modo como o nosso cotidiano se transforma". Assim, aponta o cuidado que os cidadãos / rebeldes precisam ter não apenas com os inimigos, mas com os falsos amigos, afinal "eles tentarão transformar os protestos num gesto moralista inofensivo". Já no belo ensaio Amar uma Ideia, Vladimir Safatle ressalta que as forças opressoras podem repelir protestantes, mas não podem destruir ideias. "Elas explodem contextos, dão novas configurações para uma relação radical e fundamental de igualdade. Manifestantes não podem ser tratados como sonhadores vazios sem a dimensão concreta dos problemas". Se a frase deles começa com "não acreditamos na proposta que vocês nos apresentam", logo se torna em "agora sabemos o que queremos".

#Ocupeestelita

Dispostos a repensar a forma como o projeto de desenvolvimento urbano do Recife vem sendo conduzido e propor alternativas aos empreendimentos encampados por grandes construtoras na Cidade, o coletivo Direitos Urbanos, atualmente com quase 3,5 mil integrantes, está organizando no próximo domingo, dia 15, durante todo o dia, o primeiro movimento estilo occupy no Cais José Estelita. A iniciativa, que vem contando com uma farta movimentação via redes sociais, especialmente Facebook, visa protestar contra o projeto Novo Recife, que pretende demolir os antigos armazéns da região para erguer quinze torres, entre prédios comerciais e residenciais de alto luxo.

A manifestação ganhou força pouco antes de duas audiências públicas, que contaram com uma massiva participação popular e fortificaram a petição online entregue na primeira ocasião (que até ontem contava com 2207 assinaturas). Entre os membros da mesa que condenavam o projeto, o representante da sociedade civil, professor Tomás Lapa da UFPE, foi enfático: "Não tenho intenção de impedir o progresso, nem a transformação necessária da Cidade, mas isso deve se fazer segundo a ética. A paisagem não é só uma imagem visual, é algo feito pela participação, pela atitude, pelas crenças, pelas práticas sociais, pelo dia a dia dos cidadãos. Aquela área não pode ficar restrita ao uso ou ao usufruto de uma pequena parcela da população". Em resumo, a paisagem do Cais, uma das mais bonitas da Cidade, não pode ser privatizada.

Ele também reforçou que "a lógica de verticalização é uma lógica que segrega as pessoas nos condomínios, eliminando completamente qualquer capacidade de circulação, de mobilidade ou de acesso direto às mais banais necessidades". Assim, a movimentação no domingo, que contará com apresentações musicais, oficinas de stencil, discussões e participação de diferentes figuras representativas da sociedade, procurará mobilizar justamente a população contra a construção desumanizada de edifícios, anotando os efeitos ampliados na vida coletiva, além de ressaltar a falta de investimentos da Prefeitura em transportes públicos e o não apoio aos meios alternativos, como bicicleta ou transporte fluvial.

Experiência urbana, experiência estética

Não é surpresa afirmar que a experiência urbana é também uma experiência estética. Se cada vez mais pessoas estão se mobilizando contra o projeto Novo Recife, com construções faraônicas no Cais José Estelita, ou contra os viadutos da Agamenon Magalhães, o impulso parte da vontade em pensar a Cidade como um espaço público a ser usufruído por toda população de maneira coletiva. No entanto, não podemos cair na simplória demonização dos prédios, apropriando-se da hipócrita lógica “quem vive em casa é bom, quem vive em edifício é lobo mau”, afinal trata-se de lançar um olhar sobre a reorganização espacial, padronizada e sem resquícios de criatividade alguma, a princípio uma discussão estética que, claro, não deixa de ser política, pois atravessa o imenso risco em aceitar um projeto de desenvolvimento da cidade ditado pelos interesses comerciais das grandes construtoras. O fato é que Recife está se transformando em um simulacro de cidade, sempre empurrando as classes mais baixas para outro lugar (Gentrification) e capitalizando cada metro quadrado no mercado imobiliário. A fileta básica de caráter público deixa de ser condição do espaço urbano, o que gera uma desmobilização da convivência compartilhada e uma cultura de shopping contaminada em todos os patamares da vida social. Cada vez mais, como é muito bem representado em Praça Walt Disney, de Sérgio Oliveira e Renata Pinheiro, espaços privados, imbuídos da segurança do lar e do isolacionismo burguês, emulam espaços públicos limpinhos em seus parquinhos, quadras e piscinas particulares. A experiência estética da cidade também pede que conheçamos nossos vizinhos, deixemos nossos filhos na escola sem precisar de carro, pede para utilizarmos as vias não como um lugar em que passamos e deixamos passar a nossa vida, mas um espaço físico e espiritual que definitivamente ocupamos, mantemos relações afetivas e cuidamos.

O artista de quatro mãos


Apesar de existirem inúmeros artistas que demonstram admiração uns pelos outros, assim como coletivos cujos trabalhos giram em torno de uma mesma poética, não é tão comum encontrarmos iniciativas colaborativas em que dois ou mais indivíduos estabelecem uma mútua intimidade e confiança, a ponto de seus traços se tornarem complementares, orgânicos, indiscerníveis numa mesma obra. Com uma pegada de quem já passou inúmeras aulas desenhando enquanto o professor falava e falava, de quem aprendeu a brincar com o tempo através das formas, o recente projeto Imarginal delineia seu emblema, tanto por colocar em consonância um esquema de desenho compartilhado com um lance monocromático detalhista, próximo na técnica e distante no tema da dupla paulista Mulheres Barbadas, como pela atmosfera inquieta e militante criada pelas canetas mais ou menos finas - e ferozes - dos jovens pernambucanos Raone Ferreira e Fernando Moraes. Como diz uma das frases escolhidas por eles para preencher a parede: "me passa um lápis e uma caneta que eu desenho o universo".

Ambos selecionaram / desenvolveram uma série de desenhos, 12 quadros em papel A3 e uma parede conjuntamente preenchida, para a exposição Animal vs Deus, cuja proposta parte de uma perspectiva de cunho religioso para além de um embate pelo sagrado. Enquanto Raone é ateu, Fernando é cristão praticante de uma igreja de rua, a Arca - ação de rua e cultura alternativa com encontros todos os sábados na Praça 13 de maio, mas esse aparente antagonismo inicial serve como ponto criativo, colocando as formas em diálogo e impossibilitando a separação da parte de um da do outro. Há dentro do paralelismo estabelecido, um todo, único, cujas mãos se confundem, gerando uma diegese macabra em que figuras sinistras brotam com texturas rugosas, fazendo com que o tempo de produção das obras - um tempo dilatado - se assemelhe ao tempo dos visitantes desvendarem as minúcias que se escondem em meio aos traços e pontilhados. A dimensão diminuta não só estimula um olhar mais dedicado, poderiam até disponibilizar lupas, como resgata um ato básico do campos da artes, a contemplação, sem o tom carregado que essa palavra ganhou nas rodas culturais, depois dos quilos históricos de afetação e paetês.     

A relação distinta de crença entre Raone e Fernando segue o caminho contrário do contexto contemporâneo em que a religião vem sendo usada como ímpeto de intolerância, de maneira especialmente fascista pelos neo-pentecostais (vide o Pastor Silas Malafaia que recentemente declarou guerra ao que ele chama de Ditadura Gay). “Mesmo com crenças diferentes, temos valores convergentes”, comenta Fernando, afinal “a questão é não usar a fé para impor uma verdade absoluta aos outros“, completa Raone. Essa perspectiva auxiliou a aproximação dos dois nos tempos da faculdade, trocando os cadernos de rabiscos, colocando lado a lado os desenhos até fundarem o Imarginal há menos de um ano, atualmente com ateliê na Rua do Hospício. Aliás, foi nesse espaço que se tornaram mais antenados com os acontecimentos e demandas da cidade, vivenciando de perto a efervescência dos recentes protestos contra o aumento das passagens de ônibus, de modo que alguns de seus desenhos carregam o grafismo “2,15”, em um deles, inclusive, identificado como o número da besta.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

A psicanálise segundo Cronenberg


(Publicado originalmente no Filmologia)

Sabemos que entre nós analistas, nenhum deve ter vergonha de seu pedaço de neurose. Mas aquele que, conduzindo-se anormalmente, grita sem parar que é normal, desperta a suspeita que lhe falta a intuição da doença. Eu lhe proponho, pois, que rompamos totalmente nossas relações privadas (Trecho da última carta de Freud a Jung, 1913).

Eu me dobrarei ao seu desejo de romper nossa relação pessoal, porque eu nunca imponho a minha amizade. Quanto ao resto é o senhor, sem dúvida, que melhor saberá o que este momento significa para si. O resto é silêncio. (Resposta de Jung, 1913).

Quando um cineasta repagina visualmente a maneira de apresentar os temas caros da sua carreira, os críticos mais apressados tendem a determinar esse deslocamento como uma guinada estética, apontando às vezes transformações mais aparentes que consistentes. Nesse sentido, o caso do canadense David Cronenberg parece emblemático e a armadilha do rótulo um tanto engenhosa, pois se ao longo de seus filmes investigou, por distintos ângulos e imensa coerência, a encruzilhada que interliga ciência, corpo, mente e sexualidade, o fez através de dois caminhos de vestes distintas, ultimamente encaixados numa falsa dicotomia. Entre as décadas de 1970 e 1990 deleitava-se na escatologia e se aproximava do cinema trash e de outros gêneros escusos, chegou a ganhar a alcunha de Barão do Sangue e Rei do Horror Venéreo, mas com a virada do século assumiu uma limpidez clássica, narrando mais sobriamente sua inquietação com as fronteiras entre a existência humana e as tecnologias da inteligência. No entanto, se muitos espectadores passaram a acessar a obra do diretor justamente após essa limpeza imagética, estranhamente revivendo e expelindo uma hierarquia estilística similar ao grande divisor entre alta e baixa cultura, deixaram de compreender o perverso âmago que dota o cinema dele por inteiro, sem antes e depois, sem pré ou pós, como um verdadeiro totem do pensar contemporâneo (a mesma lógica acomete também o pensamento contrário, o de que Cronenberg bom é Cronenberg sujo).

Em Um Método Perigoso, o cineasta vai diretamente na fonte conceitual de seu projeto estético ao resgatar a amizade e ruptura entre Freud (Viggo Mortensen) e Jung (Michael Fassbender), nos anos iniciais da Psicanálise (1904-1913), costurando o fascínio mútuo e embate dos mestres com seus próprios filmes, especialmente no deleite em desvendar os buracos negros e potências repressivas da mente humana. Seu interesse não se restringe ao trabalho de um deles isoladamente, mas justamente no confronto metodológico de projetos, seja pela vontade do primeiro em firmar um campo científico sólido e legitimado, seja pela leve inclinação do segundo em apropriar o misticismo e a espiritualidade como fontes válidas de pesquisa laboratorial. Se em Senhores do Crime, as tatuagens que cobrem absolutamente todo corpo do mafioso russo transforma a pele numa paisagem mnemônica, importando a lógica das cicatrizes carcerárias junto ao processo de intervenção técnica da agulha na carne; se em Scanners a luta entre indivíduos com poderes telepáticos resulta na fusão corporal entre dois irmãos, onde um deles se mostra dominante na aparência (corpo) e o outro na consistência (mente), na produção mais recente o cineasta resgata de maneira ensaística as origens de um discurso, retomando uma eloquente epistemologia sobre as metamorfoses do corpo, passando por dilemas entre instinto, recalque e repressão; as fontes dos estranhos prazeres; a distância entre pesquisador / pesquisado e, novamente, a flexibilidade ética dos meios científicos. Digamos que Cronenberg usa de vestes felpudamente mais literárias e menos sangrentas para meter o dedo visceral nas mesmas feridas.

Jung é um psiquiatra que no início de sua carreira ao mesmo tempo em que aplica a teoria de Freud, a cura pela fala, precisa lidar com suas próprias pulsões sexuais, misturando-se ao universo sobre o qual se debruça, quando se envolve com uma de suas pacientes. Trata-se da futura psicanalista Sabine Spielrein (Keira Knightley), uma jovem russa que chega ao hospital psiquiátrico em meio a uma crise histérica, momento em que o cinema de Cronenberg aparece inteiro implicado no corpo da mulher, através da curvatura anormal de sua coluna, dos deslocamentos frontais da mandíbula, da falta de ar, voz e do prazer que ela revela sentir, desde pequena, quando era agredida pelo pai. Se a cena inicial é irmã da cena final na aparência, na primeira Sabine berra dentro da carruagem, sendo segurada por dois homens, na segunda, ela também dentro da diligência, mas controlada, grávida e oficialmente discípula de Freud, os detalhes indicam como a ciência havia transformado a sua existência, como seu corpo fora domado a partir do momento em que conseguira verbalizar e realizar sua pulsões sexuais. Aliás, o filme é todo articulado com pequenos movimentos que demonstram como nosso corpo, inconscientemente, deixa transparecer os indícios de nossos desejos e das subsequentes repressões, elemento básico que eleva o ser humano da categoria de animal para a de ser civilizado. O que fica claro, entretanto, é que justamente há um ponto em que o aumento da repressão não significa uma amplitude da civilização, mas um retorno violento ao animalesco, de modo que a figura do psiquiatra hedonista Otto Gross surge para liberar as pulsões de Jung, fazendo com que ele se esquive do esforço imenso para conter seus instintos mais básicos.

Freud, por sua vez, surge como uma figura patriarcal, centralizadora – até Jung literalmente treme quando pretende discordar dele – um sedutor intelectual preocupado em firmar as bases de sua ciência, para só, então, abrir outras portas no estudo da mente. Freud está acima dos pacientes, todos os seus discípulos são inexpressivos e a relação que mantém com o suíço é marcada por discretas hierarquias: refere a si mesmo na terceira pessoa, lembrando que Jung seria seu sucessor, mas vemos inúmeras cenas em que o suíço se distancia das teorias do austríaco, em especial de sua obsessão pela sexualidade como fonte de todos os distúrbios. No entanto, só consegue verbalizar com terceiros, inclusive Sabine, nunca enfrentando diretamente Freud. Há dois detalhes que parecem resumir bem a relação ambígua entre eles, tanto no campo dos pesquisadores enquanto pessoa física, como na incompatibilidade de seus projetos epistemológicos. O primeiro está presente nas sucessivas vezes que Jung conta seus sonhos, inicia uma análise sobre ele e termina por escutar Freud dar a interpretação final, sempre associando alguma imagem com o falo e aproximando qualquer alusão de poder intelectual a ele mesmo. Só que em um determinado momento, quando o austríaco já ciente da ruptura que os espera, comenta sobre um sonho que teve, Jung pede que compartilhe o relato e o pai da Psicanálise com seu tradicional charuto na boca, enfaticamente nega, “para não colocar em questão a sua autoridade”. Freud jamais desce um degrau. O segundo momento parece velado, mas termina por esboçar o conceito de inconsciente coletivo que Jung desenvolveria posteriormente, quando Cronenberg de maneira sutil cria uma série de antagonismos de classe e raça entre os dois psiquiatras, Freud judeu e Jung ariano, atingindo o ápice quando o segundo tem um colapso nervoso a partir de um sonho recorrente, como se estivesse prevendo os horrores da Segunda Guerra Mundial.

Voltando ao objeto básico do gesto fundador da Psicanálise, não apenas a título de curiosidade, vale lembrar que até o final do século XIX, quando Freud instituiu a fala em substituição da hipnose no tratamento da histeria, essa neurose enquanto patologia vivia presa entre argumentos objetivos médicos e promessas subjetivas, o cinema segundo Cronenberg, sendo inicialmente considerada uma crise apenas feminina causada por uma perturbação no útero, na Idade Média passou a ser confundida com possessão do diabo, geralmente tratada por sacerdotes, mesmo com o desenvolvimento da medicina ao longo dos séculos, a falta de provas físicas que comprovassem uma doença orgânica, mantinha a dúvida sobre os ataques não passarem de um teatro perversamente encenado. Apenas por meio do método catártico, ou seja, uma forma da pessoa retomar o recalque que afastou algo da consciência, fez com que as características da histeria ficassem claras, formalizando-se como um sofrimento causado, sobretudo, de reminiscências, isto é, os pacientes sofrem por aquilo que não conseguem lembrar (trauma). Há nessa retomada dos dois clássicos e de suas longas discussões – dizem que no primeiro encontro passaram cerca de treze horas conversando – uma vontade de Cronenberg em encontrar, talvez pela primeira vez, a palavra necessária para verbalizar as angústias recorrentes de carreira, realçando mais uma vez seu interesse por um corpo, de seus personagens e de seu cinema, transversalmente em profundo movimento.

domingo, 25 de março de 2012

Farda

Adelma é cabeleireira. Adelma tem uma irmã chamada Adilma. Adelma folga nas quartas e domingos, gosta de curar a ressaca do sábado com cerveja e detesta fazer cortes especiais em clientes carecas. Eles esperam que Adelma, munida de um pente e uma tesoura, faça o milagre do cabelo em suas cabeças. O caso é que todo mundo se mete na vida de Adelma, ela recebe mais conselhos que as mulheres da igreja do padre Helder, inclusive, nas quartas e domingos, quando está de folga, Adelma é o grande tema das conversas das outras funcionárias. Passam horas e horas tricotando tin tin por tin tin da vida de Adelma, discordando, concordando e apostando em cima dos acontecimentos mais recentes passados pela amiga. A irmã de Adelma, Adilma, fez de tudo para ela, Adelma, se casar com um rapaz trabalhador do Alto do Capitão, Ademar. Enfim, casaram, mas poucos meses depois, Ademar teve um problema no trabalho, foi acusado pela secretária do patrão de ter furtado um material do estoque. Ademar não pensou duas vezes e ofendido pediu demissão. Tinha uma honra a zelar, mas depois de passar semanas procurando um novo serviço, tinha experiência com limpeza e segurança, estava vivendo o limbo de não se achar bom o bastante. Adilma então virou o jogo e não parava de sussurrar no ouvido da irmã: "Adelma, deixa de ser besta, mulher, você precisa de um homem para ajudar nas contas, não para gastar o que é seu. Se liga, Adelma". Claro que havia algo de hipócrita nas acusações, afinal quando saíam juntas, Adelma e Adilma, às vezes Adelma, Adilma e Ademar, quem sempre terminava pagando a conta era Adelma. Num sábado, depois de cortar sei lá quantos cabelos, Adelma chegou em casa cansada, colocou a única farda de molho num balde verde, mas o marido tinha preparado uma panelada de feijão preto, com tudo que tem direito, de forma que Adelma andando já de calcinha não teve escapatória, cancelou o mitigado sono, tomou aquele banho, chamou as amigas por cima do muro, botaram o som no quintal e se entupiram de comida, cantoria e cachaça até amanhecer. Adelma terminou deitada com seu nego, Ademar, fazendo amor até mais tarde, apagando absolutamente nus com o sol resplandecendo em seus corpos. Quando Adelma acordou, Adelma desceu o morro e passou o dia na casa de Adilma, tomando umas cervejas para limpar o corpo da noite anterior e escutando umazinha sem sal que apareceu por lá dizendo que tinha conhecido Zezé di Camargo no camarim de um show no Clube Português. "Ele me disse que nunca tinha contado isso para ninguém, mas vocês sabiam que É o Amor nasceu quando ele estava pensando na Maria Bethânia? Quer dizer, em uma música dela, chamada Negue. Eu nem conheço, mas ele disse que os primeiros versos surgiram de uma vez só: eu não vou negar que sou louco por você, sou maluco para te ver, eu não vou negar. Isso faz uns vinte anos, ele disse que tinham na época várias músicas, mas o produtor queria um sucesso, daí ele chegou em casa, disse que deu aquele comichão e assim nasceu. Pra você ver, né? Uma música tão bonita e nasce assim tão rápido”. Adelma sorriu, mas não estava realmente interessada, bebeu mais uns doze copos e terminou dormindo por lá mesmo. Na segunda, acordou para trabalhar, esqueceu a carteira na casa de Adilma, subiu o morro com pressa e lembrou que tinha esquecido de tirar a única farda do molho. Ficou desesperada, torceu a roupa o quanto pode, colocou no sol, o sol não estava lá essas quenturas, ligou para a chefe, explicou a situação e pediu para trocar a folga da quarta para a segunda-feira. A chefe não deixou, disse que ela podia chegar um pouco atrasada, trouxesse um ferro de passar roupa, porque chegando no salão, Adelma secava com o secador, depois Adelma passava a roupa e mesmo que ficasse molhadinha, Adelma ia ter que trabalhar de farda. E assim foi.

terça-feira, 20 de março de 2012

Vigário

Não que gostasse de soar dramático anunciando aos seus amigos a maior polêmica de todos os tempos da última semana; nunca teve simpatia pelos palermas que cultivavam em qualquer coffee break uma síndrome de plantão da Globo, mas antes mesmo do dia que Marcelo colocou o pé pela primeira vez em seu novo trabalho, um jornal popularesco do centro turístico da cidade, a Prefeitura já estava realizando uma reforma nos paralelepípedos da rua vizinha, numa rotina basicamente composta pela retirada, limpeza e reorganização das pedras. Como gosta de quantificar suas histórias e usar expressões de seu tio Nogueira, Marcelo nunca deixava de ressaltar: "digamos que essa obra já tem coisa de ano, mais de ano, todo dia os trabalhadores estão lá, mas acho que eles recebem ordens para irem devagar, devagarinho, quase parando". Recentemente, no entanto, o rapaz começou a notar para além da lentidão que algumas partes, depois de finalizadas, eram em seguida reabertas, as pedras novamente retiradas, limpas e reorganizadas, de modo que as obras simplesmente se arrastavam, se arrastavam e nunca chegavam ao fim. Depois de todo esse tempo, apenas uma rua de um projeto de oito, a Vigário de alguma coisa, tinha quase chegado ao fim do processo que oficialmente era chamado de requalificação, contava com incentivo de R$ 1,2 milhões do Banco Interamericano de Desenvolvimento e deveria ser concluído em seis meses. O pior acontecia com as calçadas. Primeiro foram inteiramente consertadas e depois inteiramente destruídas, afinal os pedreiros precisaram incluir as tampas de esgoto / encanamento, algo que tinha sido aparentemente esquecido quando os urbanistas / restauradores deram a largada na pedra fundamental. É um caso pequeno, localizado, mas Marcelo tomava-o para si como parábola do funcionamento de tudo em sua cidade, cuja administração do prefeitinho manco vinha tontamente trabalhando na lógica da tentativa e erro, com a incrível margem de mais erros e menos tentativas, de modo que todos os dias antes de subir as velhas escadas de madeira, tinha a impressão de que estavam lavando dinheiro público bem ali, na frente de todos, literalmente no meio da rua. O rapaz pensava no assunto praticamente todos os dias, mas não conseguia tirar da cabeça uma história que tinha escutado anos antes, reforçada no início destas obras, falando que a iniciativa previa embutir os fios que inundam a vista aérea da região para potencializar a revitalização do patrimônio histórico. Nenhum fio tinha desaparecido da paisagem e Marcelo temia que as escolhas dos gestores terminassem no mesmo caminhar, destruindo e virando lesma tudo de novo para então descobrir, a impossibilidade de fazer o serviço. Só que aí os paralelepípedos não poderiam ser reaproveitados.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Barros se despede de Bernardo

Inúmeros autores costumam criar personagens que ganham sobrevida em mais de uma obra, alguns chegam a confundir sua necessidade de escrita com a necessidade de vida de suas crias, de modo que acompanhamos passo-a-passo um amadurecimento brotar diante de nossos olhos, geralmente transmutado de acordo com a incondicional situação narrativa. No caso do andarilho Bernardo, Bernardo da Mata, além de personagem do universo poético de Manoel de Barros, sua condição é ser o primeiro habitante de uma cidade pantaneira e famoso por encurtar águas, apanhar rio com as mãos e apertar contra os vidros. No recém-lançado livreto “Escritos em verbal de ave”, o autor encerra sua relação através da morte melancólica e cândida de seu protagonista. Trata-se, portanto, de uma obra de despedida, como uma carta inundada de combinações, sendo também uma obra de linguagem, de desconcertos hipotéticos provindos da permanente presença da natureza: “Deixamos Bernardo de manhã / em sua sepultura / De tarde o deserto já estava em nós”. O livro estimula uma experiência diferenciada de leitura, não existem propriamente páginas, mas uma dobradura simples e infantil sem ordem clara, que remonta todo trabalho do poeta em investigar e evocar leituras dos tempos primeiros.

Aos 96 anos, Manoel de Barros se firmou como um dos poetas mais importantes do País, seu estilo encontra sua concretude em versos simples, nunca simplórios, e em palavras e construções doces, nunca piegas. Na recente publicação, mantém seu fino aspecto sereno, renova sua percepção das pequenezas do mundo para lidar com a perda de um amigo inspirado no seu irmão de criação, o rapaz Bernardo que costumava ser inocente como uma ave: em forma de trechos curtos, semelhantes aos haikais, monta uma espécie de mapa com os sapos da manhã, as garças que batem suas asas à tarde, o silêncio das pedras, as borboletas e os ventos, os rios e os sotaques. “Queria que um passarinho / escolhesse minha voz / Para seus cantos”. O livro começa com uma “desbiografia” de Bernardo, que já esteve presente nos poemas “O guardador de águas”, “Livro de pré-coisas” e “Menino do mato”, e termina com uma lista de “desobjetos”, que incluem entre outros, “um prego de farfalha”, “um fazedor de amanhecer”, “um guindaste de levantar vento”, “um ferro de engomar gelo” e “um alarme de silêncio”. Manoel de Barros parece se despedir enquanto coleta fagulhas de beleza, como se precisasse traçar um inventário para inflar os doloridos suspiros antes da queda.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Best Youth

Não costumo escrever muito sobre música, primeiro porque não tenho propriedade técnica, só me arrisco numa gaita experimental no fundo da piscina e às vezes sequer consigo identificar os instrumentos em cena, segundo porque não sou dos que ficam vasculhando e raspando os cantinhos da internet atrás de novidades, geralmente me contento com o que já escuto, gosto, alguém coloca no Facebook e pronto. Também tem o reles fato de que passei boa parte da minha juventude restritamente satisfeito com bandas novas da década de 1960, em alguns momentos sentia-me livre do que era produzido no meu tempo. Contudo, no último ano, tenho entrado em cada vez mais sites específicos de música, ornando um percurso meio mambembe dentro do que vem sendo produzido recentemente, de modo que por meio destes apontadores estou de quando em vez assumindo minhas próprias epifanias sonoras. Uma delas foi inspirada pelo duo português Best Youth, formado pelo músico Ed Rocha Gonçalves e pela cantora Catarina Salinas, que só possuem cinco músicas lançadas no EP Winterlies - disponível para download - e só tenho a dizer que a última vez que entrei num estado semelhante foi quando escutei o disco Third, do Portishead e estava fossilizado num amor platônico. Acho que basta.

Hang Out

Best Youth - Hang Out from Best Youth on Vimeo.


Honey Trap

Best Youth - Honey Trap from Best Youth on Vimeo.


Wait for me

Best Youth - Wait for me from Best Youth on Vimeo.

Dentro da matéria


"Nos devaneios cósmicos primitivos, o mundo tem corpo humano"
Gaston Bachelard. A Poética do Devaneio. São Paulo: Martin Fontes, 1998.

Muitos pintores produzem suas telas sem uma inspiração específica e sem a pretensão de antever o resultado do processo criativo, entram no baile de imprevistos, partindo de uma espécie de caos de sentido ou de vazio insustentável, no intuito de abrirem caminho através de seus próprios inconscientes. Seguindo esse caminho, a artista francesa Solange Magalhães, que contabiliza 60 anos desde sua primeira visita ao País, apresenta a exposição Pinturas Recentes no Museu do Estado de Pernambuco, procurando isolar o caminho da arte, das curvas apreendendo formas, até fundi-lo com as texturas do surgimento do univer­so. "Enquanto vou pintando, costumo colocar a tela de cabeça para baixo, de cabeça para cima até o momento em que ela define sua posição e afirma sua coerência. Tenho me interessado ultimamente por coisas que vêm de muito longe, uma pintura do invisível, despertando o lado cósmico e voltando às origens”, ressalta a artista. Apropriando o discurso de pensadores como Merleau Ponty e Gaston Bachelard, Solange evitou curadores enquanto desanuviava os elementos primevos das formações rochosas do planeta, com ênfase na terra, no vento e no fogo, raramente também dedicando suas pinceladas abstratas ao reino das águas.

A discussão presente na exposição coloca em perspec­tiva o nascimento do univer­so, a evolução dos corpos celestes e o desenvolvimento do corpo humano, co­mo numa tela em que os a­néis de um suposto planeta se assemelham aos círculos que formam o nosso olho. Para a artista, que estudou física teórica na juventude, “se pensarmos que o universo veio de um átomo é como se naquele momento inicial, todas as relações atuais estivessem condensadas, prontas para desabrocharem. Meu trabalho obriga os espectadores a mergulharem dentro de si mesmos, exigindo que entrem em áreas que geralmente evitam e sentem pavor”. O cruzamento entre universo orgânico e corpo celeste certamente nos remete às imagens gelatinosas de 2001 - Uma Odisséia no Espaço (EUA, 1968), de Stanley Kubrick, de A Árvore da Vida (EUA, 2011), de Terence Malick e dos documentários variados produzidos pela BBC. Solange ao produzir suas séries costuma pintar várias telas simultaneamente e nunca escolhe títulos, aliás ela própria monta todo material bruto prévio no melhor estilo francês, para então sobrepor camadas e camadas que sugerem as nuances da expansão descontínua pós big bang. Seus quadros instigam uma viagem dentro da matéria, escavando fundo o não paradoxo de "sermos um todo e pertencermos simultaneamente a outro todo".

quinta-feira, 8 de março de 2012

Infância como utopia



Uma infância potencial habita em nós. Quando vamos reencontrá-la nos nossos devaneios, mais ainda que na sua realidade, nós a revivemos em suas possibilidades. Sonhamos tudo o que ela poderia ter sido, sonhamos no limite da história e da lenda. (...) Essa infância, aliás, permanece como uma simpatia de abertura para a vida, permite-nos compreender e amar as crianças como se fôssemos os seus iguais numa vida primeira. Gaston Bachelard. Poética do Devaneio, 1996, p. 85.
Os primeiros anos de nossas vidas marcam um tempo em que os sonhos mais inocentes ainda são permitidos, a criança não assimilou as repressões e normas que vão se enraizando individual ou socialmente, de modo que o comportamento cotidiano demonstra uma liberdade de quem não apenas copia ou deseja copiar o universo dos adultos, mas desenvolve uma poética de invenção própria; por vezes, antagônica. Nesse sentido, os vídeos produzidos por Nan Goldin, Cao Guimarães e Paula Trope, reunidos na exposição Infância, sintetizam essa forma de inteligência, cujas reverberações surgem através das percepções e dos deslocamentos do próprio corpo, em algum momento assumem um caráter simbólico e fantasioso, dando um contorno involuntariamente político à época em que, segundo Piaget, melhor desenvolvemos nossa criatividade. Moacir do Anjos, curador da mostra, por sua vez, ressalta que a iniciativa "trata a infância como uma utopia, uma passagem em que não fomos tolhidos o suficiente e inúmeros projetos de futuro concorrem entre si. Trata-se de um momento em que as regras são ignoradas ou desfeitas com pouco custo". 

Queridinha instantânea da geração instagr.am e de todos que curtem o lápis de cor, a fotógrafa americana Nan Goldin está em cartaz em diferentes cidades do mundo simultaneamente, apresentando em algumas delas Fire Leap, seu mais recente slideshow. A iniciativa funciona como uma caixinha de música em que deposita um discreto afeto em dezenas de fotos, produzidas nos últimos trinta anos, de crianças de seu círculo pessoal íntimo em situações que variam da melancolia infantil ao desprendimento de máscaras. Além de participar da Bienal de São Paulo de 2010 e de ver sua exposição ser censurada no Rio de Janeiro, por causa do intenso Balada da dependência sexual, a artista se tornou reconhecida pela "característica despojada da fotografia caseira ao registrar diferentes formas de família, legitimando no campo da arte o baixo padrão da imagem", assinala o curador. Evocando um ímpeto do cotidiano, as fotos alinhadas e acompanhadas de uma trilha cantada pelos infantes, incluindo o clássico Space Oddity, geram uma atmosfera de sinfonia obscura e pueril, quase como se adentrasse estados de espírito próprios de um tempo pelo qual todos nós já atravessamos. 

O mineiro Cao Guimarães, um dos nomes nacionais mais fortes no cruzamento entre arte, cinema e experimentação, conta com dois vídeos que apreendem o mundo de maneira singular, tomando o acaso das situações como forças mobilizadores de fratura da ordem oficial. Da janela do meu quarto registra uma menina e um menino em posições dúbias, pois não sabemos se são irmãos, apesar da notável aproximação familiar, ou sequer temos certeza se estão numa briga ou numa brincadeira. Há um desajuste nos corpos que nos coloca diante daquela situação terrível, geralmente vivida pelos pais, de não sabermos se devemos ou não interferir, lembrando por vezes o nervosismo da combinação entre crianças hiperativas e pais desatenciosos. Peiote segue um caminho similar: uma criança mexicana se infiltra no meio de uma dança indígena dos adultos, mas ironicamente não segue nenhuma das convenções da coreografia ensaiada, gerando uma sucessão desautorizada diante de uma manifestação cujo semblante se liga à resistência popular. Evidencia, assim, uma fluência para além da circularidade das tradições, lembrando situações típicas de qualquer boa festa.

Por fim, a carioca Paula Trope apresenta Contos de Passagem e Traslados, o primeiro vídeo reunindo entrevistas com crianças que moram e trabalham nas ruas do Rio de Janeiro, comunicando sensações menos pelas palavras e mais pelos gestos associados à falta de luz da captação precária, enquanto o segundo alinha fotografias de pequenos brasileiros e cubanos, aproximando por meio de suas projeções lugares apartados, não apenas pela distância espacial. Sua abordagem percorre um universo marginal da cidade maravilhosa, o espaço na contracapa dos cartões postais, mas sua hesitação no campo da representação gera uma sensação datada, não apenas por uma tendência documental da última década, mas especialmente pela justificativa quase burguesa - ao menos assistencialista - de aproximação patriarcal quando ali já está plenamente firmada uma distância social. O segundo projeto parece mais intenso no sentido de estimular o desejo de um imaginário criativo da tenra idade,  fazendo com que no jogo de idas e vindas com fotografias, os participantes terminem esboçando rastros de um encontro cuja robustez se desloca da escassez material para edificações de subjetividade. A nostalgia, menos como lamento, mais como projeto, desenha o itinerário da infância como (re)descoberta da utopia.

terça-feira, 6 de março de 2012

Chronicle

"I killed all the rainbows and the species"
M83. The Bright Flash.
(Publicado originalmente no Filmologia)

Praticamente todos os jovens e adultos estão prontos a reviver a intensa vontade de ganhar superpoderes, saciando um desejo em geral desenvolvido durante a infância, através dos quadrinhos ou das inúmeras horas diante da televisão, não apenas materializando a experiência de voar, levantar pesos inimagináveis ou lançar raios com as mãos, mas, essencialmente, buscando escapar da entediante vida cotidiana que encurrala todos os nossos sonhos pueris. Aproveitando do que há de mais melancólico nesse contexto, Poder Sem Limites (Reino Unido / EUA, 2012), primeiro filme dirigido por Josh Trank e com roteiro escrito por Max Landis, filho do diretor John Landis, consegue aproximar o campo do impossível sobrehumano do espectador até ficar rente ao seu corpo, especialmente por seguir a linhagem de produções conhecidas como filmagem encontrada. Iniciada com A Bruxa de Blair (1999), essa tendência foi popularizada com REC (2007), Cloverfield (2008), Atividade Paranormal (2007) e até o mais recente A Filha do Mal (2012), firmando-se como obras que usam da estética documental da câmera caseira, tremida e carregada geralmente por um dos atores, para intensificar um efeito de realidade, revisitando e subvertendo os clichês de diferentes gêneros cinematográficos caros à Cultura Pop (filmes de zumbi, filmes de monstro, filmes de fantasmas, e, nesse caso, os filmes de super-heróis).

Contudo, a diferença de Poder sem Limites é que o filme parece consciente das outras produções similares e anteriores, como se colocasse de antemão em cima da mesa, um registro de filiação ao gênero espertinho da última década, revelando num perspicaz comentário metalinguístico, sinais de um esgotamento do tal efeito de realidade. O plot é bem simples: três amigos, Andrew, Matt e Steve, encontram uma estranha formação luminosa no interior de um buraco e adquirem poderes de telecinese, capacidade de voo e força extrema. O primeiro, protagonista e responsável pela câmera, encarna o protótipo do loser, é espancado regularmente pelo pai e pelos colegas do colégio, tem uma mãe com doença terminal, de modo que se os superpoderes servem primeiro como caminho de integração, com pequenas brincadeiras descontraídas, levantar a saia das garotas, fazer pegadinha na loja de conveniência, depois assumem a dimensão da vingança. Nesse meio tempo, os dois personagens secundários parecem estabelecer caminhos alternativos, um vomita filosofia de bolso com leves traços de misticismo oriental, o outro reforça o papel de ser popular e alcançar o sucesso. No entanto, o passo adiante dado pelo diretor reside no fato de conseguir, dentro do formato caseiro, superar a visão de um dos personagens como a visão da câmera, aproveitando da telecinese para transformar a imagem subjetiva num registro em terceira pessoa.

Naturalmente, isso cria na narrativa uma obsessão pela câmera que está filmando, os mais perfeccionistas perceberão algumas falhas espaciais entre uma tomada e outra, mas o grande lance do filme se assenta na ampliação de filmagens, através de todas as câmeras que nos cercam, como se as histórias pudessem ser contadas apenas pelas lentes programadas para registrar e nos proteger. Sejam as de segurança, as jornalísticas, as policiais ou mesmo celulares. Nesse sentido, a captação generalizada, a naturalidade em querer ver o vídeo de qualquer tragédia que ouvimos falar, termina confundindo essa complexa rede imagética com o que tomamos como inconsciente coletivo, ou seja, uma herança psicológica formada também por esse arcabouço compartilhado de referências visuais, cada vez mais comum entre grandes grupos de seres humanos. Youtube chora. Num breve e não tão interessante texto de Nildo Viana, ele compara a aventura dos super-heróis como o conceito desenvolvido por Jung e ampliado por Erich Fromm, no sentido que o primeiro expressa ou carrega um desejo de poder, de estabelecer, por meio da fantasia e de arquétipos, uma ruptura com a burocracia, instituições e repressões da vida individual ou social presentes no segundo.

Caridade

"A maioria dos homens arruínam suas vidas por força de um altruísmo doentio e extremado – são forçados, deveras, a arruiná-las. Acham-se cercados dos horrores da pobreza, dos horrores da fealdade, dos horrores da fome. É inevitável que se sintam fortemente tocados por tudo isso. As emoções do homem são despertadas mais rapidamente que sua inteligência; e, como ressaltei há algum tempo em um ensaio sobre a função da crítica, é bem mais fácil sensibilizar-se com a dor do que com a idéia. Conseqüentemente, com intenções louváveis embora mal aplicadas, atiram-se, graves e compassivos, à tarefa de remediar os males que vêem. Mas seus remédios não curam a doença: só fazem prolongá-la. De fato, seus remédios são parte da doença. Buscam solucionar o problema da pobreza, por exemplo, mantendo vivo o pobre; ou, segundo uma teoria mais avançada, entretendo o pobre.

Mas isto não é uma solução: é um agravamento da dificuldade. A meta adequada é esforçar-se por reconstruir a sociedade em bases tais que nela seja impossível a pobreza. E as virtudes altruístas têm na realidade impedido de alcançar essa meta. Os piores senhores eram os que se mostravam mais bondosos para com seus escravos, pois assim impediam que o horror do sistema fosse percebido pelos que o sofriam, e compreendido pelos que o contemplavam. Da mesma forma, nas atuais circunstâncias na Inglaterra, os que mais dano causam são os que mais procuram fazer o bem. Por fim presenciamos o espetáculo de homens que estudaram realmente o problema e conhecem a vida – homens cultos do East End – virem a público implorar à comunidade que refreie seus impulsos altruístas de caridade, benevolência e coisas desta sorte. Fazem-no com base em que essa caridade degrada e desmoraliza. No que estão perfeitamente certos".

Oscar Wilde. A Alma do Homem sob o Socialismo. Porto Alegre: L&PM, 2009.

quinta-feira, 1 de março de 2012

CDU Várzea 45

Lá estava eu mais uma vez no décimo oitavo sono, quando o motorista tentou atropelar um menino de rua, terminou batendo o fundo do ônibus num papa entulho e rasgou boa parte da lateral do coletivo. Acordei com o barulho sem sacar nadica de nada, fiquei meio nervoso porque precisava descer e não queria perder a parada novamente, voei longe diante do maior burburinho do mundo entre os passageiros e continuei pescando com os olhos a cada dois vírgula sete segundos. Chegamos ao Cais de Santa Rita. Desci. O menino, então, apareceu gritando: "você tentou fuder a minha alma, mas terminou se fudendo". Eis que o motorista respondeu: "e tu que passa fome". O menino pegou uma pedra, desejei com todas as forças que ele acertasse a cara do motorista, o motorista buzinou desesperadamente para chamar a polícia, o menino largou a pedra no chão, saiu pela tangente e ficou isso por isso. Ok, gente, quero descer.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Rasgos Culturais: Consumo Cinéfilo e o Prazer da Raridade

Nem acredito que finalmente consegui publicar a versão em e-book da minha dissertação, não por ter defendido numa fatídica sexta-feira em março de 2010 ou por ter passado os dois últimos anos martelando e remartelando linha a linha ou diagramando e rediagramando cada espacinho, o que sinceramente nem foi o caso, estive trabalhando em outras coisas, mas o tiro certeiro é que sou um desses homens que na impossibilidade de colocar um ponto final nas coisas, vai abrindo fendas e mais fendas incompletas que não podem ser concluídas até que a mais ancestral delas seja encerrada. Nesse sentido, publicar Rasgos Culturais: Consumo Cinéfilo e o Prazer da Raridade é como oficializar a cura de minha ferida mais antiga e mais incômoda. As cicatrizes decerto vão me atormentar de quando em quando, não estou lá com aquele sentimento de realização operístico, estou com sono, admito meus sérios problemas com os capítulos finais, mas paciência, precisava apenas de uma dose de alívio para seguir adiante e escavar novas fendas. Então, é isso, aproveitem a leitura.

Ps.: Para baixar em .pdf, basta entrar no link original da publicação.


sábado, 25 de fevereiro de 2012

Encenação e escapismo

Nos primórdios do curso de jornalismo, quando escutei pela primeira vez o significado de mise-en-scène, provavelmente na mesma época em que estive obcecado por Eisenstein, numa tentativa obstinada de entender seu conceito de montagem intelectual, imaginava que ambas as frentes defendiam um cinema cujos mínimos e sutis elementos da cena eram apresentados numa síntese / explosão, fortalecendo planos e sequências, com o objetivo último de adensar a textura do próprio filme. Desde então, contudo, passei a perceber mais claramente produções em que toda vaidade era direcionada exclusivamente para um elemento: seja uma direção de fotografia charmosinha que vira grife no cinema nacional, seja a dispendiosa e inabalável direção de arte, com figurinos de época, maquiagens insalubres ou, os mais detestáveis, as películas motivadas apenas para que os atores narcisisticamente afirmem seu talento. É o caso de A Dama de Ferro, de alguma diretora qualquer que pouco importa, filme em que Meryl Streep interpreta a ex-primeira ministra britânica Margaret Thatcher, desenhada já bastante idosa, frágil, demente e solitária, não apenas para despertar uma condescendência do público, mas no intuito de facilitar a estratégia também demente da edição. Cada cena mostrada nos flashbacks da personagem confusa, numa construção mnemônica estúpida, é interrompida por um lance de total irrelevância, como se o filme escapasse de si próprio o tempo inteiro para que Meryl pudesse, enfim, brilhar na frente das câmeras. A política aqui é absolutamente reduzida à pantomima.

A pior consequência disso é que A Dama de Ferro esconde todo contexto histórico dentro da encenação de Meryl Streep, não com o interesse íntimo e desmistificador que levou Sokurov a fazer a trilogia Moloch, Taurus e O Sol ou mesmo Stephen Frears a realizar A Rainha, mas tentando instaurar um falso e nojento feminismo que coloca Thatcher como firme num mundo dominado por homens, estimulando uma noção epidérmica da situação, vez ou outra obrigando o espectador a demonstrar simpatia quando ela pega seus DVDs para assistir alguma coisa. Definitivamente, não existe a mulher que serviu de inspiração para as músicas de protesto do The Clash, o seu autoritarismo sempre vem rodeado de "essa é a cena que vai render o oscar de melhor atriz", impossível lembrar que Greenaway fez O cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante encarando os olhos da cobiça dela, não temos ideia que a infâme defendia que o mundo estaria menos estável e mais perigoso se as potências não mantivessem suas armas nucleares, que discursava ressaltando a ganância capitalista como um bem, que obrigava os pobres a trabalharem mais para pagarem as contas do país, que associava em termos públicos o excesso de lucro com a respeitabilidade moral, que basicamente criminalizou a ação de sindicatos, esmagando a consciência libertária dos trabalhadores ou mesmo que, recentemente, pediu a liberdade de Pinochet por ele estar velho, fraco e doente. Não à toa, em 2002, ela foi recomendada por seu médico a não falar mais em público, também pudera, estava já confundindo a Guerra das Malvinas com os conflitos na Bósnia. Para o filme, isso parece o mais importante, daí quanto mais vemos Meryl, menos vemos Thatcher.

A Dama de Ferro nos induz fragilmente a uma identificação inexistente, até porque as alucinações de Thatcher com o marido são constrangedoras, entre uma lembrança e outra, ela está arrumando as coisas dele, recém-falecido, para se distanciar definitivamente de seu fantasma e a partir de cada toque num objeto, somos levados a diferentes momentos de sua vida. Argh! Sim, rola explosão de luz ghost quando ele finalmente vai embora, de modo que a sensação que fica ao final da sessão, além do gosto ruim na boca, é a de que acabamos de assistir a um ensaio em looping de Meryl Streep ganhando o papel, como se o filme sequer tivesse sido feito. Cineastas como Stephen Frears, Derek Jarman e Ken Loach estavam na frente na ala dos críticos de Thatcher, contrariando a sua mão de ferro que tratava a cultura como uma espécie de dissidência que não deveria ser estimulada pelo governo, em especial se tocasse em temas como homossexualidade, lutas camponesas, processos de independência. Sobre o período, Loach comenta: "Fiz uma série de documentários chamada A Question of Leadership que nunca foi exibida sobre a cumplicidade (e não uma conspiração articulada) entre os líderes sindicais e Thatcher - a colusão no sentido de que os líderes sabiam que estavam suprimindo a militância de seus próprios membros. Na década de 1980, o que deveria ter sido a liderança de esquerda foi finalmente revelado como de direita. Também tinha o filme De Que Lado Você Está?, sobre a greve dos mineiros, que era apresentada nas notícias de maneira oposta ao que realmente estava acontecendo, quis registrar a brutalidade da polícia e o subterfúgio do governo".

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Entre a militância e a melancolia


Com o disco Nó na Orelha que liderou várias listas de melhores no cenário nacional em 2011, Criolo, nascido e crescido na periferia paulistana, teve finalmente seu trabalho reconhecido, mesmo com uma carreira iniciada ainda no final década de 1980. Dono de versatilidade vocal e musical, cruzando de maneira elegante ritmos como samba e hip hop, o cantor ganhou destaque pelo tom melancólico de suas letras, mas também por seu engajamento. Passou anos atuando como arte-educador e no campo dos movimentos sociais, sempre lutou por uma distribuição mais justa das oportunidades, bateu o pé contra a homofobia num programa de TV e criticou as ações da polícia na comunidade de Pinheirinho, em São Paulo.

Pela primeira vez no Recife, Criolo se apresentará três vezes durante o Carnaval: participará da abertura (17), no Marco Zero, cantando músicas de Alceu Valença ao lado de outros artistas, subirá no palco do Alto José do Pinho na segunda-feira (20) e encerrará a programação do Rec Beat na terça-feira (21). Conversei pelo telefone com o artista sobre o disco, as expectativas da vinda à cidade e os eventos violentos da história recente do País.

Você conhece Recife? O que está esperando do Carnaval e dos seus shows por aqui?
Não conheço Recife. Uma vez estive em Triunfo, mas na verdade nunca tive oportunidade de viajar e conhecer outras cidades, nunca tive grana, mas agora estou conseguindo por causa da música. No caso do Recife, estou com uma expectativa enorme, todo mundo que cantou por aí, volta e conta a experiência com os olhos brilhando. Como vou passar todos os dias por aí, vou conhecer a comunidade da família do Maurício [percussionista da sua banda] e devo aproveitar para dar uma volta, viver essa festa de rua. Tenho muito respeito pela cidade, pelos mestres que vivem aí e pelo evento do Carnaval, até porque soube que existe no Recife um emblema de aceitar as diferenças como proposta, com palcos montados de forma descentralizada e programação gratuita em várias periferias.

Levando em conta a guinada musical que “Nó na orelha” representou, comenta um pouco sobre o processo de gravação do seu segundo disco.
Eu tinha completado 21 anos de carreira, daí é natural dar um tempo, pensar em mu­dar os rumos e contribuir de outra forma. O “Nó na Orelha” dependeu da presença de ami­gos como Marcelo Cabral e Daniel Ganja­man. A ideia inicial era fazer um registro, pa­ra deixar com minha família, de canções que compus em diferentes épocas, há 10, 15 a­nos ou mesmo recentes, alguns sambas, outros raps. No meio do processo, percebemos que existia alguma coisa ali que merecia ser reunido em outro formato e mostrado a mais gente.

Depois do sucesso do disco, você sentiu pressão para lançar um novo trabalho ou mesmo já vem produzindo canções nesse sentido?
Eu me sinto agradecido pela energia boa que venho recebendo, mas não sinto pressão porque faço música por necessidade, para abrir diálogo, disco é apenas um dos formatos de compartilhar o material. Não faço necessariamente música para disco, isso vem depois, mas essa ansiedade que as pessoas criam é positiva. Só que muitos não sabem é que, apesar de ficarem felizes escutando, sempre que canto revivo a tristeza que me fez compor. E não é suave.

Ainda que você tenha ampliado seu público depois do disco, sua carreira começou há mais de vinte anos. Como foi o começo dessa história?
Aos 11 anos, escutei a palavra rap, vi um colega fazendo verso e achei meio mágico aquele jogo com as frases. Daí fui para casa, fiz igual, depois comecei a compor e essa brincadeira era na verdade uma forma que eu e meus amigos tínhamos de contar e cantar as história do nosso bairro (Grajaú, na Zona Sul de São Paulo). Eu só subi no palco aos 13 anos, no evento de entrega solidária de comida e roupa para a comunidade. Com o passar dos anos, ao envelhecer, entendi que era natural largarmos algumas coisas e ficarmos com outras. De forma que fui largando muita coisa, enquanto a música tomava um espaço cada vez maior na minha vida. Chega uma hora que você admite que não pode deixar algumas paixões de lado.

Você vem ampliando os espaços de apresentação do rap nacional, a exemplo do Rinha de Mc's. Explica um pouco como funciona esse projeto.
O Rinha de MC's nasceu entre 2003 e 2004, a partir desse meu pensamento 'de como podemos contribuir de outras maneiras', basicamente começou com alguns amigos que se juntavam para escutar algumas músicas que apesar de gostarmos tínhamos deixado de escutar há algum tempo. Sempre tive uma simpatia por quem faz "freestyle", eu não tenho esse dom, daí era nossa vontade que os jovens chegassem, criassem seus versos e nesse embate dessem continuidade com seus próprios eventos. Apesar de ser uma batalha de rap, outras atividades também acontecem como grafitti, mas o grande lance é criar um espaço de encontro entre as pessoas, estimulamos a lógica de que precisamos aprender a lutar 'nós por nós mesmos', fomos até convidados para organizar edições em alguns eventos, mas toda nossa negociação gira em torno do fato de que só aceitamos fazer gratuitamente.

No show no Rio de Janeiro na semana passada, você segurou um cartaz fazendo referência ao caso de Pinheirinho. Como você se sente em relação à tragédia?
Não sou cientista político, não sou sociólogo, mas posso falar alguma coisa porque sou cidadão. Fico pensando nas ações que antecedem e que levam a existir esse tipo de coisa. Se há vinte anos, os governos decidissem que toda população tinha direito a educação gratuita, incluindo faculdade, se os governos tivessem apoiado uma distribuição justa da produção de alimentos, será que essas desgraças aconteceriam? É muito fácil falar que o povo é mal educado, mas se formos pensar quem decidiu os rumos da educação, só me resta pensar: quem são os verdadeiros mal educados desse País? Eu me sinto impotente diante de Pinheirinho, a dor que podemos sentir, a dor que eu posso sentir por mais que eu cante, não se compara a dor de quem estava lá e perdeu um ente querido, de quem perdeu o direito de possuir uma casa.

Comentei esse acontecimento porque teve muita repercussão na internet, mas gerou informações desencontradas nos meios de comunicação.
Então, tenho receio das duas situações, primeiro porque algumas pessoas começam a se aproveitar das tragédias para se promover e isso me magoa, pelos shows que estou fazendo em diferentes lugares, sinto que as pessoas querem mudar a realidade que vivem. Tentei até compor alguma coisa, mas a sensação de impotência diante dessa situação e de outras me assola. Vivemos num País que se precisamos de mais energia e algumas tribos estão no caminho, danem-se os índios; se é preciso desenvolver um progresso e o código florestal atrapalha, danem-se os animais. Sempre me pergunto, quando o mundo está assim, “de que adianta fazer uma música”? Não vai trazer os entes queridos de volta, não vai trazer as casas de volta, mas talvez funcione como um lampejo de esperança no ser humano. Algo que a gente não pode perder. Por isso (recitando) devemos cantar pelos mortos, chorar pelos que ficam e orar por dias melhores. O problema é que sempre quem morre é o povo.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Cronista social de traços firmes


Portinari é provavelmente o pintor brasileiro que primeiro aprendemos a reconhecer como um pintor brasileiro, não apenas pela consistência de seu imaginário temático comum nas aulinhas de estudos sociais, como pela incrustada dívida - há quem prefira usar a palavra "compaixão" - que parecemos pagar quando nos vemos diante das figuras paupérrimas, esfarrapadas e sofridas de suas telas. Depois do Cristo na cruz, a mãe com os braços para o alto em Enterro na rede, depois de Enterro na Rede, a fome e as moscas que cercam Os Retirantes, depois de Os Retirantes, a robustez dos pés e mãos de O Lavrador de Café, cuja réplica pendurada na sala de jantar da casa de praia da minha família, causava-me um desconfortável combo de espanto e perseverança. Há quem chame a fisionomia das personagens de Portinari de pintura deformista, num direto diálogo que ele estabeleceu, durante sua estadia na Europa, com os traços de Pablo Picasso, figura decisiva no processo de maturidade que o levou a abandonar os resquícios de classisismo, os vícios de um retratista de encomenda para adentrar, ao seu modo, na modernidade. "O homem de Brodowski não esqueceu de Brodowski", escreveu Manuel Bandeira em 1932 ao visitar a sua exposição na galeria do Palace Hotel, primeira em que o pintor retoma lembranças da infância por meio de um primitivismo sentimental, esboçando um programa artístico que ampara indagações político-sociais através da passagem do trem, das festas, dos bailes, enterros, do circo e das procissões. Com o correr dos anos, no entanto, acumulando conhecimento e atirando, alguns dos nossos fascínios, resguardados num passado compartilhado ou individual, vão sendo amargamente esfarelados até emularem uma situação de inexistência. Decerto, se fosse para comentar atualmente sobre a representação das classes mais baixas da sociedade no campo artístico, sem entrar no debate do urubu que voa e do urubu que ataca, as referências cinematográficas seriam as primeiras a surgir. Seja por meio do neo-realismo italiano, que após a Segunda Guerra Mundial revelou uma face poética dos indivíduos que sofreram e lutaram contra o governo fascista no país, seja pelo movimento do Cinema Novo, que através da figura emblemática, para não falar profética, de Glauber Rocha desenvolveu um projeto político que visava colher no subdesenvolvimento uma autêntica problematização estética.

Apesar de estarmos viciados na cultura visual do século XX, aquartelados numa nostalgia moderna, a pobreza como inspiração artística ou diretriz existencial possui uma história mais antiga e para não voltarmos até a jornada de Sidarta sob o regime da ascese, parece-me importante enquanto movimento pré-moderno, lembrar ao menos do realismo literário do século XIX. O livro Os Miseráveis, de Victor Hugo, por meio de um exímio entrelace narrativo-descritivo que nos mostra o peso das galés sobre os ombros, ergue-se como referência definitiva, tendo sua apropriação tupiniquim aos trancos e barrancos na figura de Aluísio de Azevedo, especialmente em romances realistas / naturalistas como O Cortiço e O Mulato. Seguindo essa mesma tendência, Cândido Portinari, que faleceu há exatos 50 anos, ocupa uma posição de destaque, graças aos seus quadros representando famílias nordestinas arrasadas pela seca, trabalhadores negros em campos de café ou captando todo sofrimento do grito de uma mãe desesperada após perder seu filho para a fome. Não é de se espantar que já com a carreira estabelecida nos anos 1940 e responsável por difudir entre os brasileitos uma alegoria firme de brasilidade, tenha se aproximado do ainda clandestino Partido Comunista Brasileiro, ao lado de Jorge Amado e Caio Prado Jr, se auto-exilando no Uruguai entre 1947-1951 por conta do acirramento da perseguição política pós Estado Novo. Só que a história começa um pouco antes, afinal o artista nasceu em 1903 nas proximidades de Brodowski, interior de São Paulo e era filho de imigrantes italianos que vieram para o País no início do século XX para trabalhar em plantações de café. Portinari é totalmente Terra Nostra. Aos 14 anos de idade, a região recebeu uma trupe de pintores e escultores italianos, cujo ofício era restaurar igrejas e ele terminou sendo recrutado como ajudante (depois de abandonar o colégio antes mesmo de terminar o primário). Essa seria a primeira experiência com arte do futuro pintor, muralista e desenhista, que preferia receber a fazer visitar, costumava usar meias de cores fortes em contrapartida aos suspensórios, colarinhos, gravatas e abotoaduras. No ano seguinte, Portinari partiu para o Rio de Janeiro para estudar na Escola de Belas Artes e antes de alcançar a maioridade, no início dos modernos anos 1920, já tinha sido reconhecido em diversos jornais.

No tempo que esteve ligado à Escola e como pode ser claramente notado na tela Dança na Roça de 1924, o pintor mantinha ainda características diferentes das que viriam torná-lo um cânone, com elementos acadêmicos, retrógrados, acomodados, de tal maneira que sequer participou ou mesmo sentiu o impacto da Semana de Arte Moderna de 1922, realizada em São Paulo, que reuniu uma boa parcela da vanguarda brasileira (mais especificamente, paulistana). Apenas quando seguiu para uma temporada de dois anos em Paris, convivendo com artistas como Van Dongen e Othon Friesz e conhecendo Maria Martinelli, uma uruguaia com quem viveria o resto da vida, é que Portinari muda radicalmente sua forma de pintar e suas intenções estéticas. Alguns estudiosos apontam a distância de suas raízes como a força mobilizadora de seu mergulho nas mazelas e agruras da sociedade, passando a se dedicar firmemente à representação de caráter social após seu retorno ao país. Quase antecipando o papel que o menino de Brodowski viria desempenhar e o espaço que ocuparia na vanguarda moderna, Mário de Andrade critica a arte brasileira da época (até 1930) por carregar “uma ausência de arte social, que reforça um diletantismo estético tipicamente burguês”. O pintor, ao lado dos escritores Rachel de Queiroz, José Lins do Rêgo ou especialmente Graciliano Ramos através de Vidas Secas, quebra essa sistemática formalista, assumindo uma postura firme diante das desigualdades da nação, sem abdicar de particularidades regionais que lhe interessavam e menos ainda das influências cubistas assumidas fora do país. Lembrado por sua série Retirantes, por quadros como O Lavrador de Café e Criança Morta, todos capazes de impor uma culpa compartilhada entre os passantes, Portinari alcançou reconhecimento internacional, sendo responsável por uma produção de quase cinco mil quadros, fazendo com que apresentasse a partir de 1954 uma intoxicação pelo chumbo presente em suas tintas. Terminou falecendo em 6 de fevereiro de 1962 ao não seguir as recomendações médicas de parar de pintar, enveredando num estágio terminal de envenenamento, após concluir dois murais de catorze metros de altura chamados de Guerra e Paz.

Don't Think




Ao lembrar de Don't Think, show do Chemical Brothers gravado no Fuji Rock Festival no ano passado e exibido nos cinemas do país no último final de semana, sinto-me um pouco conservador, escondo o preconceito embaixo do travesseiro, mas o fato é que a simpatia pelo espetáculo em si não barra o desconforto diante da tendência mundial de utilizar as salas escuras como uma arena expandida. Confesso que chego a ficar irritado com o argumento de que é uma forma de socializar eventos que seriam restritos, ampliar o alcance de iniciativas culturais, primeiro porque não passa de uma estratégia de aumento de lucro com economia de recursos, segundo porque estimula a minha cabeça a brincar com a distopia de um mundo em que os artistas apresentam suas canções por meio de uma tela para uma multidão de espectadores e isso basta. Não sei se seria a expressão, parece até um bom trailer, mas falta materialidade, falta corpo, suor não na tela, mas escorrendo do meu próprio rosto. No filme - se é que poderíamos chamar de filme - o que menos importa é uma discussão especializada mínima sobre a utilização das câmeras ou sobre os breves impulsos narrativos esboçados através dos personagens em suas lombras. Aliás, a mensagem do show é bem clara: não pense, deixe apenas fluir.

O caso é que os efeitos especiais controlados por Adam Smith se confundem com a forma em que escutamos as músicas, adensando a provocação vinda das pick-ups de Tom Rowlands e Ed Simons, dupla britânica, que definiu com seus dezoitos anos de carreira os contornos do gênero eletrônico big beat e certamente alterou estados sensórios de uma geração. Em resumo, os dois ficam no centro de um palco, cercados pela maquinaria sonora, cujo fundo é um telão interativo de ponta a ponta com cerca de vinte metros de altura: nem é preciso dizer, mas temos explosões de luzes, formas humanas multicoloridas correndo e caindo, um cavalo mecânico gigante, bolas de tinta atiradas para todos os lados e um palhaço sinistro que invoca estranhas energias. O show em nada fica devendo aos clipes psicodélicos e lisérgicos que marcaram a virada da década de 1990 para os anos 2000. Todos os sucessos estão presentes: Swoon, Hey Boy Hey Girl e Star Guitar, as batidas despertam atmosferas ora suaves, ora sombrias, quase como se recriassem pelo ritmo o extenso caminho até uma bad trip. Resta só a dúvida se dentro de uma sala de cinema, onde geralmente não se costuma beber e a etiqueta pede para que todos permaneçam sentados e calados, um espetáculo tão frenético com pouco mais de uma hora não termina se transformando num programinha enfadonho.