segunda-feira, 30 de abril de 2012

Pelo desejo de fantasia no pós-colonialismo


(Publicado originalmente no Filmologia)

Quando se comenta sobre a história da representação num duelo e namoro entre a pintura, a fotografia e o cinema, uma história do centro contada pelo centro para o centro, a invenção de Nicéphore Niépce e a subsequente provocação dos irmãos Lumière são sinalizadas como artefatos fundadores, não apenas por terem redirecionado o desejo realista das artes visuais e libertado a potência dos sonhos naquele campo, estimulando demandas que desembocariam no Modernismo, mas especialmente por esboçarem pela primeira vez uma gama imagética do mundo nunca dantes experimentada e consumida pelo próprio mundo. Os franceses, nesse período, financiavam inúmeros técnicos para viajarem os quatros cantos em busca de registros, de modo que lugares mais ou menos exóticos apenas contados, relatados, fantasiados, ganhavam um rosto e um vislumbre de olhos, fundava-se ali um estatuto de visão eurocêntrico, que procurava diminuir gradualmente o espaço das lendas e tradições orais mais ou menos exageradas. Ao serem confirmadas, desfeitas, relidas, as fantasias cediam o seu poder particular de incompletude e ambiguidade à uma fria instância de certeza (e, claro, só aparente certeza). 

Aliás, como comenta o sociólogo Paulo Menezes, ninguém poderia imaginar que tais artefatos pudessem se transformar numa das influências mais determinantes do olhar no século XIX e século XX, afinal imagens tão perfeitas do exterior desorganizavam em absoluto os esquemas pelo quais as pessoas decifravam o caminho datado das representações. Aguçava-se, assim, uma capacidade de memória individual e coletiva, o passado íntimo e social deixava de lado o imaginário muitas vezes preconceituoso para ganhar uma existência concreta, ainda que paulatinamente se confirmasse como uma postura de dominação do centro em relação às periferias, uma guerra de objetivos políticos constituída através da produção de subjetividade. Por isso, quase um século depois, no processo de descolonização, o cinema de Djibril Diop Mambéty parece recontar todo esse dilema por vias esquecidas, pela volta de um desejo de fantasia, não apenas repensando a representação produzida pelos colonizadores, mas indo além da afirmação identitária proposta inicialmente pelos colonizados. Nem o apelo exótico de uns, nem a autocomplacência de outros. 

O senegalês em Contra’s City, Badou Boy, Touki Bouki ou La Petite Vendeuse de Soleil é responsável por outro tipo de desenho do rosto de seu país, como se livre da necessidade de ser fiel ao retrato proposto por seus antecessores, presos a necessidade do negro representar o próprio negro, do senegalês contar a história do Senegal, estivesse mais preocupado com os motivos do sorriso, com os desejos escondidos, criando máscaras sobre máscaras dentro da instância do sonhar. Parece contraditório, mas a história é inversa em relação ao centro: se fotógrafos pioneiros como Seydou Keita, cujos eloquentes retratos produzidos na transição entre colônia francesa e independência, registravam a contradição corporal de nativos que desejavam serem identificados como europeus ou por outro lado, que desejavam reforçar suas raízes do que verdadeiramente significava ser africano, Mambéty surge da superação de esboço da realidade por uma imprescindível abertura irônica de afetos e pulsões. Para ele, a liberdade pós-colonial era desconhecida até então, atachada entre regimes de dominação e resistência, do velho modelo dicotômico, surgindo apenas quando fosse possível não esquecer o passado, não negar o presente e, ainda assim, ser plenamente possível fantasiar. 

Certamente, na história do centro contada pelo centro para o centro, a fotografia encerrou as funções utilitárias da pintura, colocando como questão não o caso da fotografia ser ou não um tipo de arte, mas ressaltando um problema anterior: se a fotografia e consequentemente o cinema não havia alterado a própria natureza da arte. Quase um século depois, no continente africano, a questão da representação assume um dilema ainda mais profundo, pois na impossibilidade de pensar uma história da imagem africana, inicialmente limitada ao registro de colonizadores e em sequência submetida a uma necessidade de autorepresentacão dos colonizados, é como se no primeiro caso os negros só existissem quando os brancos falassem de sua existência e no segundo, como só existissem quando passassem a serem vistos pelos brancos. Apesar da importância de pensar por essa lógica, afinal vemos todas as partes do mundo muito mais do que vemos a África, matizando um estatuto do olhar bastante cruel, mesmo no segundo caso, a liberdade ainda parece enclausurada pro uma obrigação de resposta. 

 Emerge, então, numa tendência brilhante de intuição que se desvia de ambos os caminhos, o cinema de Mambéty explorando as formas para além do colonialismo e do renascimento cultural pós-colonialista, introduzindo de maneira bastante poética – e não submetendo o continente – ao contexto de globalização. O cineasta parece mais preocupado em lançar imagens que menos representam o seu país, o Senegal, por meio do embate entre hegemônico ou subalterno, ambos preocupados com seu próprio realismo, mas traçando um inventário de sonhos obstruídos, por vezes infantis e ingênuos, que revelam a necessidade que sobrevoa o conflito direto, para abarcar, numa política de pequenos passos, um universo que se perde. O ambiente é hostil, sim, as dificuldades são imensas, sim, as consequências foram desastrosas, claro, mas a negação da luta por um imaginário particular parece ser mais importante, afirmando assim uma luta subjetiva, que utiliza dessa realidade exterior como dimensão espacial de um ensaio alegórico. Há em Mambéty um despretensioso projeto de invenção cotidiana e cinematográfica. 

 O caminho percorrido adentra universos da microesfera, da relação entre as pessoas, os marginais dentro da marginalidade, a ironia como modelo de verdade, os anseios contraditórios de cosmopolitismo, mixando referências encrostadas através de entradas invisíveis, redesenhando o lugar não pela concretude, mas justamente pelo intangível. A fragilidade e bravura de seus personagens denotam inclusive atualizações internas em sua carreira, entre a década de 1970 e sua produção final da década de 1990, pensando, inclusive, no pulo do gato de não-produção durante quase vinte anos. Do primeiro momento para o segundo, redescobre novas instâncias de liberdade para com as próprias que havia instaurado, de modo que claramente abandona a vontade de experimentação formal por uma intensificação dramática, nunca piegas, sempre onírica. Brinca com os gêneros, aposta nos ângulos, destrincha suas fábulas duras e certeiras, como as frases de fundo dos Mammy Wagons (caminhões de passageiros que carregam placas similares às brasileiras), pensando que nenhuma condição é permanente, que a vocação de fazer ou não fazer cinema é transmutável, quiçá efêmera, que melhor que retratar apenas o mundo material dos olhos é preciso, enquanto podemos, apostar nos mundos imaginários de outros olhos.

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