quinta-feira, 12 de abril de 2012

O artista de quatro mãos


Apesar de existirem inúmeros artistas que demonstram admiração uns pelos outros, assim como coletivos cujos trabalhos giram em torno de uma mesma poética, não é tão comum encontrarmos iniciativas colaborativas em que dois ou mais indivíduos estabelecem uma mútua intimidade e confiança, a ponto de seus traços se tornarem complementares, orgânicos, indiscerníveis numa mesma obra. Com uma pegada de quem já passou inúmeras aulas desenhando enquanto o professor falava e falava, de quem aprendeu a brincar com o tempo através das formas, o recente projeto Imarginal delineia seu emblema, tanto por colocar em consonância um esquema de desenho compartilhado com um lance monocromático detalhista, próximo na técnica e distante no tema da dupla paulista Mulheres Barbadas, como pela atmosfera inquieta e militante criada pelas canetas mais ou menos finas - e ferozes - dos jovens pernambucanos Raone Ferreira e Fernando Moraes. Como diz uma das frases escolhidas por eles para preencher a parede: "me passa um lápis e uma caneta que eu desenho o universo".

Ambos selecionaram / desenvolveram uma série de desenhos, 12 quadros em papel A3 e uma parede conjuntamente preenchida, para a exposição Animal vs Deus, cuja proposta parte de uma perspectiva de cunho religioso para além de um embate pelo sagrado. Enquanto Raone é ateu, Fernando é cristão praticante de uma igreja de rua, a Arca - ação de rua e cultura alternativa com encontros todos os sábados na Praça 13 de maio, mas esse aparente antagonismo inicial serve como ponto criativo, colocando as formas em diálogo e impossibilitando a separação da parte de um da do outro. Há dentro do paralelismo estabelecido, um todo, único, cujas mãos se confundem, gerando uma diegese macabra em que figuras sinistras brotam com texturas rugosas, fazendo com que o tempo de produção das obras - um tempo dilatado - se assemelhe ao tempo dos visitantes desvendarem as minúcias que se escondem em meio aos traços e pontilhados. A dimensão diminuta não só estimula um olhar mais dedicado, poderiam até disponibilizar lupas, como resgata um ato básico do campos da artes, a contemplação, sem o tom carregado que essa palavra ganhou nas rodas culturais, depois dos quilos históricos de afetação e paetês.     

A relação distinta de crença entre Raone e Fernando segue o caminho contrário do contexto contemporâneo em que a religião vem sendo usada como ímpeto de intolerância, de maneira especialmente fascista pelos neo-pentecostais (vide o Pastor Silas Malafaia que recentemente declarou guerra ao que ele chama de Ditadura Gay). “Mesmo com crenças diferentes, temos valores convergentes”, comenta Fernando, afinal “a questão é não usar a fé para impor uma verdade absoluta aos outros“, completa Raone. Essa perspectiva auxiliou a aproximação dos dois nos tempos da faculdade, trocando os cadernos de rabiscos, colocando lado a lado os desenhos até fundarem o Imarginal há menos de um ano, atualmente com ateliê na Rua do Hospício. Aliás, foi nesse espaço que se tornaram mais antenados com os acontecimentos e demandas da cidade, vivenciando de perto a efervescência dos recentes protestos contra o aumento das passagens de ônibus, de modo que alguns de seus desenhos carregam o grafismo “2,15”, em um deles, inclusive, identificado como o número da besta.

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