Inúmeros autores costumam criar personagens que ganham sobrevida em mais de uma obra, alguns chegam a confundir sua necessidade de escrita com a necessidade de vida de suas crias, de modo que acompanhamos passo-a-passo um amadurecimento brotar diante de nossos olhos, geralmente transmutado de acordo com a incondicional situação narrativa. No caso do andarilho Bernardo, Bernardo da Mata, além de personagem do universo poético de Manoel de Barros, sua condição é ser o primeiro habitante de uma cidade pantaneira e famoso por encurtar águas, apanhar rio com as mãos e apertar contra os vidros. No recém-lançado livreto “Escritos em verbal de ave”, o autor encerra sua relação através da morte melancólica e cândida de seu protagonista. Trata-se, portanto, de uma obra de despedida, como uma carta inundada de combinações, sendo também uma obra de linguagem, de desconcertos hipotéticos provindos da permanente presença da natureza: “Deixamos Bernardo de manhã / em sua sepultura / De tarde o deserto já estava em nós”. O livro estimula uma experiência diferenciada de leitura, não existem propriamente páginas, mas uma dobradura simples e infantil sem ordem clara, que remonta todo trabalho do poeta em investigar e evocar leituras dos tempos primeiros.
Aos 96 anos, Manoel de Barros se firmou como um dos poetas mais importantes do País, seu estilo encontra sua concretude em versos simples, nunca simplórios, e em palavras e construções doces, nunca piegas. Na recente publicação, mantém seu fino aspecto sereno, renova sua percepção das pequenezas do mundo para lidar com a perda de um amigo inspirado no seu irmão de criação, o rapaz Bernardo que costumava ser inocente como uma ave: em forma de trechos curtos, semelhantes aos haikais, monta uma espécie de mapa com os sapos da manhã, as garças que batem suas asas à tarde, o silêncio das pedras, as borboletas e os ventos, os rios e os sotaques. “Queria que um passarinho / escolhesse minha voz / Para seus cantos”. O livro começa com uma “desbiografia” de Bernardo, que já esteve presente nos poemas “O guardador de águas”, “Livro de pré-coisas” e “Menino do mato”, e termina com uma lista de “desobjetos”, que incluem entre outros, “um prego de farfalha”, “um fazedor de amanhecer”, “um guindaste de levantar vento”, “um ferro de engomar gelo” e “um alarme de silêncio”. Manoel de Barros parece se despedir enquanto coleta fagulhas de beleza, como se precisasse traçar um inventário para inflar os doloridos suspiros antes da queda.
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