Santiago (2007), de João Moreira Salles
(Publicado originalmente no Dissenso)
Esse texto pode até soar inicialmente como uma mera cordialidade barata entre um pretenso jovem crítico e um documentarista brasileiro burguês, mas aviso de antemão, que pouco me importo com essas desconfianças primárias. Mesmo se fôssemos amigos (eu e o João Moreira Salles – o que não é o caso), procuraria não fazer diferença, sabendo dos riscos e falhas, entre falar bem, mal ou bem e mal simultaneamente. Além disso, o juízo de valor nesse molde maniqueísta teria pouca importância em uma crítica-crônica, que desde o princípio assumisse e destrinchasse alguns laços de amizade. Entre pontuar uma série de desgostos e não falar, prefiro ultimamente – e só ultimamente – não falar: nesses casos, acredito que o silêncio carrega a crueldade necessária. É uma pena que os críticos vinculados às ‘sérias’ empresas de comunicação não possuam essa mesma possibilidade de escolha, já que não decidem sobre quais obras irão se debruçar e sobre quais irão se omitir: apenas se dividem entre os lançamentos de uma lista pré-definida semana após semana. Alguns até se esforçam, mas nem sempre é fácil produzir meia dúzia de palavras anuais sobre a Xuxa sem cair pelo menos uma vez no chulo. Pensando assim, tenho que também admitir de antemão e com a maior cara lavada possível que é muito prazeroso falar sobre o que se quer, dentro dos moldes quaisquer, podendo seguir sem pudores percursos mil. Sei que essa liberdade tende a não durar para sempre, a universidade nos lembra disso diariamente, mas, por ora e aproveitando o momento, a crítica se desvincula do ranço da obrigação, se assentando plenamente como um ato de criação.
Convenhamos que essa escrita (ou escritura) não se fundamenta apenas sob a sombra de um prazer narcisista, mas a partir do estabelecimento de uma rede que une sem tensões conhecimento, produtividade, densidade e reconforto. A vontade de falar ou de escrever depois do impacto de uma obra se torna um processo de autoconhecimento e autoconsciência, para além de uma resposta natural diante da experiência estética (e também como uma resposta natural). Quando somos honestos em nossas produções, podemos discutir qualquer assunto através de qualquer meio, enquanto implicitamente falamos também sobre nós mesmos. Não há como fugir completamente disso, apesar dos disfarces que se multiplicam todos os dias. Em Santiago (Brasil, 2007) o documentarista burguês em crise de meia-idade traz o mordomo para frente, revisita a mansão da infância (hoje o Instituto Moreira Salles), cai na nostalgia e devassa o seu longa fracassado ao mesmo tempo em que versa sobre si, com uma franqueza desconcertante. Decidido a se expor, o criador entra de cabeça na aventura: não hesita em mostrar como uma busca formalista se metamorfoseia em autoritarismo, em agressividade, em falta de tato. Havia um filme a ser feito e por pouco ele não fora concluído de forma completamente equivocada. João Moreira olha para si e faz de sua falha arrogante o seu às de copas.
Muitos se incomodam com essa voz pessoal (escrita por João e narrada por Fernando, seu irmão) que se impõe de maneira tão clara e tão diretamente ao espectador. Eu não me incomodo nem um pouco. Pelo contrário: esse é o tipo de produção que, a priori, se aproxima de minhas intenções de estilo. Santiago está entre os três filmes que mais me impressionaram nesse último ano (2007 – dentro das produções lançadas originalmente nesse mesmo ano). Não por acaso assisti duas sessões sem intervalos num Cinema da Fundação vazio vazio: percebi de imediato o quão esse documentário funcionava como referência dentro do que estava pensando e desenvolvendo em relação à crítica. Quem mais poderia ter realizado esse filme senão o próprio João Moreira Salles? Apenas outro Moreira Salles chegaria próximo e apenas próximo. Afinal de contas não estamos falando simplesmente de um obra assinada, tal como se idealiza na política de autores, mas de uma produção pessoal, subjetiva e irretocável. Como uma marca de infância que nos acompanha em toda vida. João Moreira aparece na tela apenas uma única vez, entretanto, sua efígie demarca ocultamente toda trajetória narrativa. Espero que possamos fazer um paralelo. Imagino, inclusive, que depois de seis textos publicados, já seja possível identificar uma voz, a minha voz, dentro de tudo que escrevo.
Seguindo adiante é preciso lembrar que numa época em que as narrativas críticas estão se uniformizando aceleradamente, sendo constituídas de um banco estático e compartilhado de referências, nada mais necessário que resgatar o poder da inventividade e da experiência particular, a partir do próprio cinema. Às vezes, os críticos estão tão preocupados em explicações e descrições que perdem esses detalhes sutis, mas cruciais se funcionarem como metáforas dentro de suas próprias práticas. Temos que saber o que nos diferencia: se são as pequenas percepções, os momentos cotidianos despercebidos, as piadas desmedidas ou os olhares desencontrados. Temos que saber o que nos diferencia para sabermos o que nos pertence. Receoso com a resposta do público ao seu filme, João Moreira Salles chegou a pensar que sua obra não iria interessar a ninguém, que sequer deveria ter um lançamento comercial (a mesma preocupação pontuada pelos críticos em relação a O espelho, de Andrei Tarkovski). Mas o documentarista burguês de meia idade e em crise deixa a mostra, numa entrevista da Bravo, os argumentos para se defender de seus próprios temores ao ler uma frase do cineasta francês Chris Marker: “O uso da primeira pessoa num filme equivale a um ato de humildade. Tudo o que tenho a oferecer sou eu mesmo”. Nada mais justo.
O documentário (a crítica e toda obra artística) me parece mais intensa quando fecundadas a partir de uma posição pessoal do autor – uma posição chamada de criativa pelo roteirista, scriptdoctor e amigo argentino Gualberto Ferrari – encontrando uma harmonia entre uma busca estética e uma busca temática, casando as duas possibilidades, sem abdicar de nenhuma delas. E principalmente, sem abdicar de si mesmo: todo preconceito diante da pessoalidade precisa ser desfeito. Não podemos nos amedrontar diante das regras que limitam a criação, seja literária, cinematográfica, pouco importa, afinal, como resgata André di Tella, em sua conferência publicada no livro Cinema do Real, a partir de uma lembrança do escritor polonês Witold Gombrowicz “a palavra ‘eu’ é tão fundamental e primordial, tão plena da realidade mais palpável – e em conseqüência disso a mais honesta – tão infalível como guia e tão severa como critério, que em lugar de desprezá-la, deveríamos cair de joelhos perante ela” (Mourão, Labaki, 2005, p. 70). Novamente me atrevo: nada mais justo.
Infelizmente, poucos seguem essa linha. É preciso deixar claro que estou falando de algo muito diferente do que o Michael Moore faz: não é se usar de personagem para fazer discurso político. Não façamos confusão: meus argumentos estariam mais próximos de trabalhos como Zelig (EUA, 1983), de Woody Allen e F for Fake (França / Irã / Alemanha), de Orson Welles. Às vezes me parece que vários documentaristas (e pior, muitos dos quais iniciantes) concebem o gênero do documentário como cinematograficamente fechado, repetitivo até, e enquadrado dentro de certo formato pouco variável, que segue tais e tais regras e pretende atingir tais e tais objetivos. Partem do princípio “o documentário a serviço de…” de forma muito radical. Engraçado que uma instituição como a Fundação Joaquim Nabuco desenvolve discussões extremamente contemporâneas sobre a linguagem do documentário, enquanto realiza na prática as produções mais corretas, certas e caretas que vi nos últimos tempos. Ter trabalhado lá me alertou para essa contradição: é quase como se o discurso não conseguisse encontrar o ato produtivo, por este último estar viciado em amarras estéticas invisíveis, necessariamente ultradidáticas, impossibilitando a diluição das fronteiras do gênero. Essa obrigação de usar a arte como processo educativo baseado num ideal pedagógico acadêmico (e geralmente ultrapassado) só tende a criar mais algemas para essa expressão já tão moldada. Texeira Coelho defendeu numa palestra em São Paulo que a escolha desse caminho tendia a domesticar o processo criativo, acrescentando-lhe objetivos a priori inexistentes.
Há um pouco de exagero nessas palavras, afinal apenas uma parte da produção cinematográfica se finca nesse controlador estímulo produtivo, o suficiente para fazer com que os vídeos documentais realmente surjam no inconsciente coletivo, como uma expressão artística que segue, mais ou menos, um mesmo caminho estrutural: depoimentos diretos, câmera parada, imagens da cidade. Na verdade, essa opinião fechada é bem clichê e superficial. Os documentários convencionais costumam se sustentar numa trinca temática, seguindo estruturas corriqueiras de depoimento, ao tratar de uma personalidade ou anônimo atípico, um lugar exótico, manifestação artística incomum ou um fato especifico na linha histórica. Como diz o próprio Moreira Salles, os documentaristas “retratam mundos alheios, o sertão, a favela, a periferia ” enquanto sugere que “olhar para si é mais complicado não como desafio estético, mas como desafio existencial”. A alteridade se torna fetiche em documentários dos pequenos burgueses que vão a favela, que vão ao sertão, que vão até a pobreza: numa época em que se discute a necessidade das comunidades construírem sua própria representação social, essa idéia de documentário do homem que vem de fora me parece muito retrógrada. E hipócrita. O Brasil parece gostar desse impulso há 500 anos.
Sem dúvida, a experiência de Santiago se aproxima bastante do meu discurso no desenvolvimento desse projeto, pois essa obra não se resume apenas ao retrato de um mordomo exótico, nem apenas a um desenho metalingüístico dos bastidores da arte cinematográfica. Funciona como uma reflexão de um João Moreira Salles sobre outro João Moreira Salles. O homem que narra diante da própria infância, que narra diante das lembranças, que narra diante das imagens. Ele revela sobre si, enquanto fala sobre outros temas: e se engana quem acha que isso tudo não passa de uma egotrip vazia. Sinto-me particularmente atraído tanto pelo documentário de busca, quando o cineasta inicia um projeto sem saber que trajetória vai seguir e que objetivos alcançar, como por essa tendência do documentário falso, do documentário pessoal que resolve mostrar justamente as imagens, que todo documentarista convencional tenta esconder ou apagar dentro de uma sala de edição. Godard fazia o mesmo em suas ficções. O João Moreira Salles 13 anos mais velho resolve revelar as intervenções que o João Moreira Salles 13 anos mais novo faz agressivamente e num tom autoritário para que o personagem Santiago se comporte e fale exatamente o que ele, enquanto documentarista procura. As relações entre chefe e mordomo não foram apagadas,apenas camufladas.
Podemos transferir essa autocrítica direcionando o foco de reflexão para todo documentário: já presenciei várias produções e vários documentaristas se comportam de forma idêntica ao João Moreira Salles 13 anos mais novo. Sempre detestei os filmes extremamente didáticos, que não se utilizam de recursos estéticos próprios do cinema e que se resumem a uma série de entrevistas entrecortadas, todas sob o mesmo enquadramento. Parece jornalismo e isso me assusta. Além disso, os personagens se produzem em outros personagens para falar de si mesmos. Não falo de uma encenação como proposta, mas, por exemplo, quando um mendigo se arruma todo para falar da vida de um mendigo que apesar de ser ele, naquele momento exato, não parece ser ele. Isso se dá geralmente sem autoconsciência e não como proposta. Infelizmente, essa é a linha que a maioria dos documentaristas pernambucanos segue e o estilo que a maioria dos espectadores está acostumada a ver (daí a idéia de gênero limitado). Não se determina o olhar. O cineasta também precisa ser um provocador e não apenas o apaziguador simpático que quer que tudo corra da melhor maneira possível. De repente, a pior maneira é a melhor maneira. E como de costume, abrindo uma digressão é preciso registrar que o único documentário da última edição do Festival de Vídeo de Recife (2007) que se aprofunda na direção de uma liberdade criativa, sendo conduzida conscientemente pelo diretor foi Morro, de Gabriel Mascaro. E por favor, não achem que agora estou formando uma cordialidade barata entre o pretenso jovem crítico e o jovem cineasta em ascensão. Afinal, ao falar dele, estou falando simultaneamente de todos os outros inscritos no sentido contrário. O filme de Gabriel tem imagens belíssimas de objetos singelos e banais, que soam novos até por quem conhece a festa do Morro da Conceição, além de não possuir nenhum depoimento direto para câmera. Essa produção destoou imensamente de todas as outras. O nível estava realmente muito baixo: e como já disse, prefiro não falar.
Por fim, podemos traçar algumas comparações. De fato, só me interesso pelos documentários que fogem do lugar comum, porque os que seguem todas as linhas corretas terminam parecendo reportagens especiais de jornais televisivos. Engraçado que mesmo os projetos que se debruçam sobre uma personalidade ou anônimo atípico – como o próprio João Moreira fez, ou que investigam um lugar paradisíaco ou manifestação artística incomum podem fazê-lo de uma maneira menos objetiva (ou quase impositiva em alguns casos), mas sim, seguindo um caminho emocionalmente mais livre, assumindo o caráter autoral que esse gênero possui, ainda que muitos tentem mascará-lo. Há um ponto de vista do diretor em seu filme, isso é fato, seja esse filme um documentário ou uma ficção. O mito de que trabalhar com documentário é trabalhar com a realidade objetiva precisa ser desfeito. Pensar assim é seguir o mesmo caminho da objetividade / imparcialidade utópica que o jornalismo tediosamente busca e que eu simpaticamente (sic) refuto desde a primeira linha desse trabalho. Por pouco, não me tornei um pouco chulo também. Nada como senso de humor guardado ao lado dos chicletes.
A edição ou montagem, a exclusão e inserção de depoimentos ou até o estudo dos planos podem parecer escolhas simplesmente ingênuas, mas não o são – e também não sejamos ingênuos, metade dos escritos sobre documentário tocam nesse assunto. Todas as escolhas carregam mesmo nas entrelinhas, uma bagagem cultural e estética de quem as produziu. Então se tudo é uma questão de escolhas, porque não fazê-las de modo dissonante, consciente e provocador? Documentário não é realidade, é um ‘olhar’ sobre a realidade, é um discurso que se apresenta, uma interpretação, um desafio lançado por alguém. Acho interessante a brincadeira muito séria de Magritte (contada por 9 entre 10 professores e ainda reprisada aqui): quando pintou o quadro de um cachimbo e escreveu sob ele: “isto não é um cachimbo”. Atualmente deveríamos nos me perguntar: e quem diria o contrário? Mas parece que não aprendemos nada nesse meio tempo. A maioria diria o contrário.
Santiago Brasil, 2007. Direção e Roteiro: João Moreira Salles. Narração: Fernando Moreira Salles. Fotografia: Walter Carvalho. Edição: Eduardo Escorel e Lívia Serpa. Entrevistado: Santiago. 80 minutos.
Para baixar: Santiago
Um comentário:
Entrevista com Eduardo Escorel, montador do filme:
http://www.artcultura.inhis.ufu.br/PDF18/entrevista_18.PDF
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