"Não tenho certeza de quando Brigitte e Jean-Louis fizeram amor pela primeira vez. Mas percebi que já tinham se tornado amantes quando estávamos rodando uma das cenas principais.
Na história, Juliette está fisicamente atraída por um dos três irmãos, o mais velho, Antoine. O papel era interpretado por Christian Marquand. No entanto, ela se casa com Michel, o irmão do meio, para evitar uma volta ao orfanato. No momento em que descobre as profundas qualidades de seu marido, passa a amá-lo. Antoine retorna para viver com eles. Juliette se dilacera entre o desejo de felicidade e harmonia com o marido e a atração visceral por Antoine. Não quer ser levada pela paixão física por Antoine, mas sabe que acabará cedendo. Certa noite, Michel desperta e percebe que sua mulher não está no quarto. Encontra-a na praia, perto da casa. Eis um trecho da cena:
Nunca Brigitte, a atriz, tinha sido tão profundamente honesta e desesperada. Ela era realmente Juliette, que queria amar o marido e salvar seu casamento, sabendo que jamais conseguiria fazer isso. Era também Brigitte, ainda apegada ao marido e apavorada pela idéia de abandoná-lo, por um homem que acabara de conhecer, e ao qual não podia resistir. Era como um mundo de espelhos, com uma sutileza pirandelliana. Jean-Louis Trintignant, seu marido no filme, passou a representar seu marido na vida real. Quando disse para a câmera que estava com medo, Brigitte-Juliette estava, na verdade, falando comigo.
Já em nosso quarto, no Hotel Negresco, após a filmagem, perguntei a ela:
- Ele é seu amante, não é?
- Sim.
- Você o ama?
- Estou com medo.
Antes de dormir, ela murmurrou:
- É difícil ser feliz
Até hoje não sei ao certo se ela repetiu deliberadamente a fala do filme ou se estava dizendo o que sentia".
'Bardot, Deneuve, Fonda - As Memórias de Roger Vadim',
págs. 89/90/91'
Concordo plenamente com o que tem escrito na dedicatória que recebi: 'teoria do cinema o cacete. Bom mesmo é fofoca'. Acho que teria me entediado bastante se tivesse assistido 'E Deus criou a Mulher' sem ler o livro de memórias do diretor, sem saber todos os bastidores emocionais / sociais (Brigitte largando ele para ficar com o protagonista, as chantagens, bebedeiras, os encontros...), e produtivos / técnicos (tiveram de inserir um ator famoso, Curd Jurgens, para conseguir filmar em Cinemascope, problemas, filme de estréia, falta de dinheiro...). Fiquei tão na fissura por cada detalhe que era só preciso uma lampejo de cena de dois segundos da Brigitte brincando com um cocker spaniel preto para eu ficar louco me perguntando: será Clown? (o cachorro que ambos consideravam como o único filho da relação). Não se trata do filme não despertar interesse sozinho, pelo contrário, a sensualidade da Bardot tem sim o teor provocativo que a imortalizou (vide, O desprezo como exploração disso), só que aqui, em 1956, a sensualidade termina caindo um pouco na lógica de 'ser provocativa para sua época', o que gera um certo incômodo em mim. O quase fervor de um corpo não é o suficiente se não há o fervor da mise en scène. De fato, uma boca não faz um filme, mas ainda assim, pensando bem, acho que o jogo de esconder mais e mostrar menos, dando a impressão de estar mostrando mais do que realmente está é, nessa obra, de um requinte imenso.
Inclusive, se formos levar em conta que esse filme por muito, mas muito pouco não foi censurado, no julgamento foram 4 votos a favor da liberação e 3 contra, só posso ter certeza que os censores viram muito mais do que estava sendo projetado na tela: e concordo que em algumas cenas, a presença ou ausência de roupas não faz muita diferença aos seios da Brigitte Bardot. A estréia chegou a ser cancelada na hora, quando os convidados, tipo a Audrey Hepburn, já subiam as escadas do cinema e se perguntavam em meio à baderna: "O que está acontecendo? Uma revolução?". Achei desproporcional o barulho sobre a obra depois de vê-la, talvez seja até exagero de lembrança, mas as memórias são do Roger Vadim e ele faz das memórias o quiser. Talvez esse receio diante da moralidade diegética tenha a ver com a dificuldade que possuo em me interessar por boa parte da produção cinematográfica francesa da década de 50, por eu ter nas costas uma longa bagagem afetiva interligada à Nouvelle Vague: só para compararmos diretamente, tenho de dizer que a nudez em O Desprezo é anos-luz mais provocativa. Tudo antes parece meio velho, comportado e empoeirado demais. Existem exceções, óbvio. De qualquer forma, reconheço vários momentos na produção do Vadim, assim como o fez Truffaut, que na época escreveu uma crítica super positiva, colocando a obra como essencial para uma abertura de horizontes. Talvez tivesse razão. Tudo bem que prefiro mil vezes as revelações do livro, mas essa cena me parece genial:
Na história, Juliette está fisicamente atraída por um dos três irmãos, o mais velho, Antoine. O papel era interpretado por Christian Marquand. No entanto, ela se casa com Michel, o irmão do meio, para evitar uma volta ao orfanato. No momento em que descobre as profundas qualidades de seu marido, passa a amá-lo. Antoine retorna para viver com eles. Juliette se dilacera entre o desejo de felicidade e harmonia com o marido e a atração visceral por Antoine. Não quer ser levada pela paixão física por Antoine, mas sabe que acabará cedendo. Certa noite, Michel desperta e percebe que sua mulher não está no quarto. Encontra-a na praia, perto da casa. Eis um trecho da cena:
MICHEL: Você não está feliz?
(Juliette sorri tristemente. Michel acaricia seu rosto. De repente ela agarra a camisa dele, com o rosto cheio de angústia)
JULIETTE: Você deve me amar um bocado.
MICHEL: Sou louco por você.
(Close-up de Juliette)
JULIETTE: Então diga. Diga que me ama, que sou sua, que você precisa de mim. Beije-me, Michel. Beije-me!
(Michel está impressionado com a intensidade trágica da voz dela)
JULIETTE: Estou com medo.
MICHEL: De que, meu bem?
(Juliette não responde. Vai deslizando para a areia com extraordinária suavidade. Seu corpo é fluido como água. Seu rosto e o canto da boca tocam a areia).
JULIETTE: (doce e quase tranquila) É difícil ser feliz.
(Juliette sorri tristemente. Michel acaricia seu rosto. De repente ela agarra a camisa dele, com o rosto cheio de angústia)
JULIETTE: Você deve me amar um bocado.
MICHEL: Sou louco por você.
(Close-up de Juliette)
JULIETTE: Então diga. Diga que me ama, que sou sua, que você precisa de mim. Beije-me, Michel. Beije-me!
(Michel está impressionado com a intensidade trágica da voz dela)
JULIETTE: Estou com medo.
MICHEL: De que, meu bem?
(Juliette não responde. Vai deslizando para a areia com extraordinária suavidade. Seu corpo é fluido como água. Seu rosto e o canto da boca tocam a areia).
JULIETTE: (doce e quase tranquila) É difícil ser feliz.
Nunca Brigitte, a atriz, tinha sido tão profundamente honesta e desesperada. Ela era realmente Juliette, que queria amar o marido e salvar seu casamento, sabendo que jamais conseguiria fazer isso. Era também Brigitte, ainda apegada ao marido e apavorada pela idéia de abandoná-lo, por um homem que acabara de conhecer, e ao qual não podia resistir. Era como um mundo de espelhos, com uma sutileza pirandelliana. Jean-Louis Trintignant, seu marido no filme, passou a representar seu marido na vida real. Quando disse para a câmera que estava com medo, Brigitte-Juliette estava, na verdade, falando comigo.
Já em nosso quarto, no Hotel Negresco, após a filmagem, perguntei a ela:
- Ele é seu amante, não é?
- Sim.
- Você o ama?
- Estou com medo.
Antes de dormir, ela murmurrou:
- É difícil ser feliz
Até hoje não sei ao certo se ela repetiu deliberadamente a fala do filme ou se estava dizendo o que sentia".
'Bardot, Deneuve, Fonda - As Memórias de Roger Vadim',
págs. 89/90/91'
Concordo plenamente com o que tem escrito na dedicatória que recebi: 'teoria do cinema o cacete. Bom mesmo é fofoca'. Acho que teria me entediado bastante se tivesse assistido 'E Deus criou a Mulher' sem ler o livro de memórias do diretor, sem saber todos os bastidores emocionais / sociais (Brigitte largando ele para ficar com o protagonista, as chantagens, bebedeiras, os encontros...), e produtivos / técnicos (tiveram de inserir um ator famoso, Curd Jurgens, para conseguir filmar em Cinemascope, problemas, filme de estréia, falta de dinheiro...). Fiquei tão na fissura por cada detalhe que era só preciso uma lampejo de cena de dois segundos da Brigitte brincando com um cocker spaniel preto para eu ficar louco me perguntando: será Clown? (o cachorro que ambos consideravam como o único filho da relação). Não se trata do filme não despertar interesse sozinho, pelo contrário, a sensualidade da Bardot tem sim o teor provocativo que a imortalizou (vide, O desprezo como exploração disso), só que aqui, em 1956, a sensualidade termina caindo um pouco na lógica de 'ser provocativa para sua época', o que gera um certo incômodo em mim. O quase fervor de um corpo não é o suficiente se não há o fervor da mise en scène. De fato, uma boca não faz um filme, mas ainda assim, pensando bem, acho que o jogo de esconder mais e mostrar menos, dando a impressão de estar mostrando mais do que realmente está é, nessa obra, de um requinte imenso.
Inclusive, se formos levar em conta que esse filme por muito, mas muito pouco não foi censurado, no julgamento foram 4 votos a favor da liberação e 3 contra, só posso ter certeza que os censores viram muito mais do que estava sendo projetado na tela: e concordo que em algumas cenas, a presença ou ausência de roupas não faz muita diferença aos seios da Brigitte Bardot. A estréia chegou a ser cancelada na hora, quando os convidados, tipo a Audrey Hepburn, já subiam as escadas do cinema e se perguntavam em meio à baderna: "O que está acontecendo? Uma revolução?". Achei desproporcional o barulho sobre a obra depois de vê-la, talvez seja até exagero de lembrança, mas as memórias são do Roger Vadim e ele faz das memórias o quiser. Talvez esse receio diante da moralidade diegética tenha a ver com a dificuldade que possuo em me interessar por boa parte da produção cinematográfica francesa da década de 50, por eu ter nas costas uma longa bagagem afetiva interligada à Nouvelle Vague: só para compararmos diretamente, tenho de dizer que a nudez em O Desprezo é anos-luz mais provocativa. Tudo antes parece meio velho, comportado e empoeirado demais. Existem exceções, óbvio. De qualquer forma, reconheço vários momentos na produção do Vadim, assim como o fez Truffaut, que na época escreveu uma crítica super positiva, colocando a obra como essencial para uma abertura de horizontes. Talvez tivesse razão. Tudo bem que prefiro mil vezes as revelações do livro, mas essa cena me parece genial:
Um comentário:
Tua empolgação realmente empolga. Gostei desse filme mas não guardo com carinho na memória, talvez por não ter acessado essa outra carga de memória... Quanto a Brigitte, não importa o quanto de requinte tentem maquiá-la, a cara dela me é sempre explícita, e nesse sentido me falta a atração que você sente...
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