segunda-feira, 7 de julho de 2008

Cinema da Fundação

Eu tinha escrito isso de manhã...

Quebrando um pouco o modus operandi de iniciar posts falando mal de qualquer coisa, e inventando raivas efêmeras de dois a três minutos, resolvi escrever algumas palavras 'rasga seda, joga confetes e se esconde' só pra dizer que o Cinema da Fundação é fera. Pode parecer clichê, rodrigo-babando-o-ovo, elogio desmedido e mesmo cegueira para possíveis deslizes técnicos ou curatoriais, mas fico imaginando, primeiramente bem egoísta, como a lista de downloads teria de ser imensamente mais ampla, como a internet teria de ser imensamente mais rápida e como o prazer de alguns filmes seria imensamente menor, ou sequer seria, se aquela salinha discreta de 196 lugares não existisse. Só semana passada, durante a mostra comemorativa de 10 anos, assisti por lá em 35mm, entre outros relevantes como Os Vivos e os Mortos e Ondas do Destino, obras que me comoveram profundamente como Casablanca, O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, o excepcional Faces, de John Cassavetes e o também excepcional Muro, curta-metragem do pernambucano Tião. Pode parecer pouco ou desinteressante à primeira vista, mas eu sinceramente só tenho a agradecer. Obrigado Kleber, obrigado Luiz, obrigado rapaz do projetor. Não nos conhecemos, não nos acenamos, mas a co-presença no mesmo local uma centena de vezes já foi sem dúvida percebida. Há sempre um rosto anônimo e amigo rumo a bilheteria. Não podemos dizer que o Cinema da Fundação é uma sala qualquer, seria no mínimo uma injustiça colocá-lo junto aos Shoopings X ou Y e todas as pessoas da cidade que, por um motivo ou outro, colocam a experiência cinematográfica antes - antes da etílica, antes da teatral, da musical, do concurso público, antes de cursar direito, antes, antes, antes - tendem a se sentir acolhidos naquela escura Rua Henrique Dias ao lado do rio. Vale sempre lembrar que algumas dessas pessoas - e acho bela essa idéia - possuem até lugares marcados em suas cabeças, para além das risadas histéricas, dos comentários finos, dos elogios constrangedores ou das perguntas indiscretas. Há sempre um rosto anônimo e amigo saindo de uma sessão. Tenho de admitir que nunca gostei muito das filas, do aperto no corredor estreito, do café fechado e menos ainda do clima colunismo socialcult pré-filme, inclusive já escutei diversas vezes esses argumentos como justificativa de um afastamento, apesar do interesse na programação. Uma pena. Hoje eu pouco me importo. Estou ali pelos filmes e ponto. Todo resto é secundário.

Pelas minhas contas são 9 anos desde que apareci pela primeira vez na Fundaj em 1999, quase que por acaso, aos 14 anos, numa quinta-feira sem grandes lembranças. Uma amiga tinha ganho o passaporte e me convidou. Fui re-assistir o episódio 1 de Star Wars e o iraniano Filhos do Paraíso e depois comecei a frequentar com certa assiduidade, tendo o álibi de estudar no Derby e ter sempre a desculpa do cinema pra realmente ir ao cinema e pra sair na farra adolescente noite afora. Nesse meio tempo até já fui barrado quando tinha lá meus 16/17 anos e cheguei todo empolgado pra assistir E sua mãe também, que, se bem me lembro, tinha a restrição para maiores de 18. Fiquei puto, me passando na entrada, enquanto todo mundo dava o bilhete e entrava. Estava totalmente inconformado, meio que sendo durão pra não chorar. Adolescência é uma beleza. Cheguei ao ponto de exigir a gerência, mas não adiantou de muita coisa. Eu saí de lá me sentindo um bosta, com uma mão na frente e outra atrás. Queria porque queria sentar naquela velha cadeira de madeira, ficar algum tempo observando através da tela, me emocionar se fosse o caso e o impedimento dessa vontade, me deixou sem forças. Ok, tive outras oportunidades, mas esse acontecido deixou claro como estava distante do teatro que se perde e se vai ao concerto ou do concerto que se perde e se vai ao teatro. O vazio de não assistir o filme nada, nada mesmo podia substituir e até hoje, pois é, até hoje continuo exatamente assim. O Cinema da Fundação é um abrigo antibomba numa cidade devastada. Tudo bem que eventualmente o filme dá pau, não chega a tempo, vem com uma qualidade péssima, mas sempre podemos reconsiderar pela logística que temos em mãos. Engraçado que depois da megareforma, o espaço ficou inquestionavelmente mais confortável - alguns problemas técnicos foram amenizados e outros continuaram - entretanto, como sou uma capa de nostalgia coberta de pele, sinto uma saudade enorme dos rangidos e do desconforto do antigo espaço. Dependendo da produção exibida, rolava uma verdadeira orquestra de ruídos. Óbvio que na época eu reclamava, mas sempre ficava pensando que dava pra perceber a reação dos espectadores pelo som de suas cadeiras. Imaginem só como foi em Irreversível. A reforma devia ter deixado pelo menos uma fileira antiga, de preferência a primeira, só para imbuir o cinema da lembrança de como tudo era antes. Quem chegasse por último ia se fuder.

Pensando nisso, não é mistério para ninguém que o hábito tende a trazer o esquecimento. Quando qualquer artefato é novidade, se pensa nas consequências boas e ruins introduzidas, mas depois que o artefato é assimilado ao extremo, como se nunca tivesse existido uma época sem sua presença, a reflexão desaparece. Inventa-se o telefone e esquecemos como era antes ou sequer pensamos como seria aqui agora sem ele. Coloca-se a catraca do ônibus na frente e achamos estranho numa cidade do interior onde ainda se entra por trás. No meu caso (e tentando relacionar isso com o texto) nem posso dizer como a cidade era antes do Cinema da Fundação, mas certamente, e agora sendo menos egoísta e pensando numa realidade mais ampla, pensando em Recife, donde a diferença percentual de salas multiplexes diante de salas alternativas de exibição é na linha dos 20 pra 1, acredito que uma iniciativa e mesmo uma resistência como a da sala em questão e sob a curadoria dos jornalistas já citados é no mínimo louvável. Ambos projetam isso na tela e re-afirmam suas posturas quase que diariamente em seus escritos. Seu Zé pode dizer que é balela ambos escreverem sobre os filmes que programam, afinal 'sempre' - e também acho esse 'sempre' questionável - vão escrever bem dessas escolhas ou o outro rapazola ali, daquela revista Z, pode dizer que a instituição Joaquim Nabuco é uma forma de estruturar uma elite cultural intramuros. Essa preocupação sobre uma tal elite cultural, do domínio dos incentivos, da cordialidade entre cargos e coisas do tipo, às vezes parece discurso de quem está de fora e quer entrar. Todos querem e nem todos da mesma maneira. Acho um debate legítimo, apesar do perceptível recalque. Quanto a curadoria, podemos e devemos discordar, ninguém obriga ninguém a gostar do que passa na Fundaj, Mateus mesmo não gosta de quase nada, mas também acho que esse ato não pode se servir do discordar por apenas discordar, por isso agora-nesse-exato-momento não tenho tanto o que reclamar. Sei que Mateus deve ter e com razão. Não que a salinha de 196 lugares me pareça o bastante, por mim deveriam existir cinemas da fundação em vários bairros, deveriam ainda existir os antigos cinemas de bairro, mas levando em consideração a dependência da distribuição blockbuster na cidade, qualquer sala de exibição que mantenha uma política da diversidade, do cinema poliglota, dos projetos estéticos mais estranhos, atípicos e bizarros soa como um farol aceso numa noite chuvosa e escura. Estou em Caruaru tirando dois dias de férias, bebendo absinto e poderia até voltar na terça-feira, mas irei fazê-lo já na segunda, hoje, logo depois do almoço. Pois é, não posso perder a sessão de A Chinesa, provavelmente vou direto do TIP com mala e cuia e isso me parece o mais importante a se fazer antes de qualquer outra coisa.

2 comentários:

Anônimo disse...

o texto tá lindo, lindo, palmer. coisa que a gente só consegue quando tem paixão. e, menino, deu uma saudaaaaaaade de ondas do destino. eu tinha esquecido desse filme, brigada por lembrar. faz tempo que lars von trier não passa por aqui. e putz, é o segundo filme mais triste da minha história. só não perde pra liberdade.

Anônimo disse...

*só perde pra liberdade.