Estou em Realengo. Realengo fica depois da Vila Militar e um pouco antes de Bangu. Foi onde Gil e Caetano estiveram presos no final da década de 60 antes de saírem do país. A Vila Militar é um bairro do tamanho da Boa Vista, uma avenida principal e várias ramificações, onde se amontoam quartéis de todas as instâncias e casarões enormes que servem de residência aos funcionários do exército. Realengo é a extensão disso. Todas as construções datam do século XIX e são uma herança pesada da época em que o Rio era a capital do país. É algo muito, muito gigantesco (e sinceramente, muito bonito), mas pelo que percebi já há algum tempo, o exército não está conseguindo manter o próprio patrimônio que possui, dado o alto custo de preservação que tais construções demandam. Eu não entendo na prática qual a necessidade dessa falsa ostentação, qual a necessidade de se manter vivo todo esse esquema patético. É uma imponência-fake misturada a um orgulho desmedido. Uma decadência tão exposta e uma tentativa tão frustrada de escondê-la. No final das contas, fico martelando na cuca que é tudo dinheiro público e não me venham falar em caso de segurança nacional, por favor. Sem exageros, não é muito difícil se sentir num sombrio 1964 por aqui. Parece muito distante, mas é meio assustador mesmo: vamos na padaria e só vemos fardas e mais fardas, é milico andando armado até os dentes para tudo que é lado. Um bafo de ditadura pode facilmente ser sentido. Parece que uma guerra há de estourar a qualquer momento quando você sabe que não. E sinceramente, eles não estariam preparados. Ainda assim, sentem a necessidade doentia de 'parecer' que 'estariam'. Fiquei esperando a hora de soar o sinal da simulação de ataque aéreo. A maior parábola da vila militar me foi contada por um comandante: na sala da sua casa tinha uma goteira insistente que ele não conseguia vencer, tinha trocado a telha, pintado com tinta especial, mas em poucos meses, a infiltração voltava. Revelou que fazia anos que estava nessa luta e agora tentava se convencer de que era uma batalha perdida. É essa a situação, os milicos não estão ganhando nem das goteiras. Alô, alô Realengo, aquele abraço.
Foi da Vila Militar que roubaram os fuzis que causou todo aquele rebuliço no Rio há uns meses. Foi na Vila Militar que anteontem, por pouco, não roubaram todo o dinheiro destinado ao pagamento dos funcionários (referente ao mês de dezembro + décimo terceiro). Qualquer um que passa por aqui sente algum receio, alguma opressão (e não me falem sobre o uso de arrobas e questão de gênero, por favor). São muitas armas espalhadas em muitas mãos e sempre fico com a pulga atrás da orelha de que as mão são despreparadas e efusivas. Seja como for, qualquer um que passe alguns dias por aqui nota toda vulnerabilidade estrutural que esse sistema possui e o quão hipócrita ele é, especialmente porque se tratando também de um espaço familiar, os filhos dos soldados, tenentes e capitães funcionam um pouco como ruído do estilo de vida que seus pais parecem empreender. O exército está pagando mais do que pode pra esconder que a sua verdadeira batalha é possuir legitimidade de subsistência. Os prédios na Vila Militar estão quase todos muito velhos, acabados, não passam por uma reforma faz tempo. Vários e vários e vários batalhões foram reduzidos, transferidos ou extinguidos. O número de pessoas está diminuindo rapidamente, mas o número de construções continua o mesmo. A cada dia, fica mais difícil eles preservarem a grandiosidade de outrora e naturalmente tornaram-se neuróticos. Pra intensificar a histeria, o entorno da Vila Militar foi tomado nos últimos anos por algumas favelas, chamadas de 'problema' por aqui. Resultado: entupiram vários pontos com Blitz exageradas, correram de lados para lados, temem que os prédios sejam invadidos. Tudo isso não porque a tensão está no ar, mas sim, porque sabem que se isso acontecer, não estarão preparados pra nada. Estão prontos pra guerra invisível que eles próprios criaram e que não podem ganhar. E o medo que eles causam não é nada, perto do medo que eles sentem. E a hipocrisia fica por conta da filha que fala que não vai ao morro, porque não se sente bem cercada por aquelas armas, enquanto o seu pai tira um revolver do bolso e dá dois tiros para cima no dia do seu aniversário. Eu gosto de fumar um cigarro andando pela Vila Militar.
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