domingo, 10 de dezembro de 2006

Compensação 1

Pode soar muito maniqueísta, mas preciso correr o risco, porque tenho acreditado cada vez mais que no Rio tudo funciona sob uma política de compensação: para cada coisa bonita que vejo, sinto que há uma uma horrível para descobrir. Posso passar muito tempo olhando o Pão de Açúcar, horas sentado no Arpoador, honestamente me emocionar com a beleza dessa cidade e com a valorização dos espaços culturais, mas já não me sinto o turista que goza seus espaços, talha sua redoma estrangeira e ignora todo resto. São 6 horas da manhã e, me desculpem, estou delirando de sono. Vamos lá, no último e-mail que enviei - e esse começo é muito 'e como vimos na última aula' - me centrei apenas na primeira noite por aqui, agora já passaram alguns dias, quase uma semana, e muita coisa aconteceu. Resultado: como nos filmes e livros que tanto gostamos, saltarei no tempo ao bel prazer da hierarquia de minha sonolenta memória.

Pra começar, voltei ao Santa Marta. Depois de todas as visitinhas aos museus, belezas naturais e cinemas tradicionais, marquei de tomar umas cervejas com a minha amiga Ariadne para fugir um pouco do circuito mais-do-mesmo, afinal vou passar um mês por aqui, preciso entrar no ritmo do lugar. Como era esperado, ela queria fumar, eu também, fomos na boca, compramos umas dolinhas e ficamos na pracinha super bonitinha que tinha comentado no e-mail anterior. Então, a boca nada mais é que um mercadinho de drogas, pra chegar lá nem precisa perguntar a ninguém, é só seguir o caminho dos homens-boyzinhos-surfistas-formiguinhas que vai da entrada do morro até a entrada da boca. Lá em cima, você entra na fila, espera a sua vez, diz o que quer, paga e vai embora. É simples, mas não recomendo para os noiados com armas porque fuzil ali é bóia, na linha de frente tem até uma metralhadora que só tinha visto no filme do Rambo.

Mais do que algo pontual como a boca, as milícias ou um assalto aqui e outro ali, o que me incomoda no Rio de Janeiro é como a cidade está excessivamente armada por todos os lados, tenho pensado no impacto de quando acabar a 'paz-armada-guerra-fria' que rege por aqui. Espero estar bem longe. Sim, estávamos na pracinha tomando uma cerveja quando surgiu o rapaz-informante que tinha comentado e fiquei noiando como nos morros há um temor para com as pessoas de fora, possíveis olheiros, os chamados X9 ou 171, nunca lembro qual é qual. Minutos depois, apareceram os comandantes do morro, uns seis ou sete caras, todos sem camisa, alguns com tatuagens por todo corpo, todos com no mínimo dois fuzis e vários revolveres. Sei que era para lembrar de algum filme de máfia, mas terminei lembrando dos toscos de Steven Seagal, apesar de particularmente achar os descamisados super charmosos. Definitivamente não é só por drogas que as bacanas da zona sul vão pagar boquete por ali.

No mais, apesar de ter se criado uma tensão, havia por todos os lados uma compensação: crianças brincando de bola na rua, uns velhinhos jogando gamão, outros tocando samba, uma galera fumando, aquela maresia boa de se ver. Nem acho que seja o modo mais correto, mas querendo ou não, esse pessoal do morro criou uma espécie de contrasociedade, o tal estado paralelo que a mídia tanto alarma, que sobrevive do vício dos clientes ricos, que arranja seus próprios modelos sociais e que se tornou um esquema tão poderoso (ou mais) que qualquer instituição carioca estabilizada. Enxergo esse movimento como uma resposta à desigualdade da cidade, porque se em Recife a gravidade do desigual é imensa, especialmente em bairros como Boa Viagem, no Rio me parece ser oito vezes mais. Não que tenha muita gente fudida fudida, mas é que tem uns ricos muito ricos e toda uma estrutura que os servem, os protegem, os retificam e os adulam. A riqueza em excesso é, para mim, tão agressiva quanto a pobreza em excesso.

Não nos demoramos muito e logo descemos o morro, mas antes rolou o momento figurante-de-cidade-de-deus, quando os traficantes vieram sentar perto da gente, pois tive certeza que a polícia ia subir o morro e só ia dar eu na mira deles. A questão é que terror por terror, por aqui não faz diferença se você está na mira dos supostos mocinhos ou dos supostos ladrões, o bicho pega, como eles costumam dizer por aqui. Ariadne me disse que o chefão que não pode ser nomeado era tímido, que provavelmente ele tinha descido só para vê-la, não trocaram uma palavra, só olhares, uma vibe meio poética e fiquei encantado com o misticismo que criamos diante de tudo que nos é distante. O cara mais temido da região estava ali do meu lado e, olha só, ele era tímido. Desde então, passei dias pensando em como se poderia resolver o problema dessa cidade, como humanizar a marginália sem censurar suas características marcantes, mas mesmo me centrando completamente, não cheguei a conclusão alguma. De fato, minha vontade não passava de uma pretensão barata.

(Continua...)

Nenhum comentário: