Minha primeira noite no Rio mereceria o espaço de uma semana no diário, no entanto, como preciso correr para as próximas aventuras, serei o mais breve possível dentro da prolixidade que me seduz, ciente de que não conseguirei transmitir, pseudopoético que seja, um décimo do desbunde pelo qual passei. No início tudo ia ser morgado e triste, a programação número 1 consistia em ir para o aniversário de um zé alguém que não conheço numa boate pomposa em Ipanema, Leblon, algo Manoel Carlos companhia ilimitada. Meu nome estava na portaria, a entrada ia ser free, adoro um agrado, mas fiquei me sentindo o playboy-mor quando soube mais ou menos do naipe do lugar e mais ainda quando vi no outro dia na capa do jornalzinho de 50 centavos daqui, que a filha da Glória Pires - o nome me escapou agora - tinha armado um barraco por lá na semana passada. Sempre acreditei que o plus dessas boates era oferecer um pegapacapá entre subcelebridades. Saímos de casa, eu, Carol e Leca. Carol e Leca são garotas zona sul e aqui rola a maior divisão: zona sul, zona sul; zona norte, zona norte; zona oeste, zona oeste. Uma segregação falada, defendida com orgulho e que tem mais a ver com comportamento, acessórios e cabelos tingindos do que necessariamente com ocupação espacial.
A segregação por região comporta uma enorme gama de valores, estereótipos e naturalmente reverbera na predileção por drogas em cada uma das trupes, ou seja, a galerinha que toma ecstasy e drogas sintéticas são zona sul, filhos do asfalto, não perdem uma rave, carregam o sotaque dos mais irritantes e é só tocar no assunto 'baseado', 'lombra' e derivados que começam o maior discurso anti-maconheiros. No mais, constituem a elite afrescalhada que encaixa ou inventa um novo preconceito onde tiver espaço. Da mesma maneira, a galera que só fuma, vive denegrindo a imagem burguesa dos que tomam drogas artificiais, citam alguma matéria do Fantástico sobre tráfico na classe média alta, eventualmente soltam até aquele velho papo da natureza, que fumar maconha é do bem e tal - que bora combinar não faz o menor sentido, porque a maconha daqui é prensada, cheia de amônia e eles sequer sabem o que é uma belota. Quem só cheira não sei o que fala, nem sei que zona ocupa, mas quem usa todo tipo de droga, costuma ficar tão travado que termina por não falar coisa alguma. Obviamente todos os grupos anteriores evitam este último. O apartheid dos usuários não tem nexo algum, é um mela cueca hipócrita dos brabos, porque falando sério, o cara tomar dois ecstasys numa noite e chamar o outro de maconheiro drogado-filho-da-puta-escroto-du-caralho é coisa de gente muito da estúpida. Coisa de carioca zé mané.
Enfim, decidimos passar na casa de uma amiga em comum chamada Ariadne, em Botafogo, antes de irmos pra tal boate em Ipanema. O nome da boate também me escapa e agora pouco importa. Saímos de Realengo e pegamos a famosa Avenida Brasil: pista enorme acometida pelo medo geral dos motoristas que corta boa parte da periferia do Rio de Janeiro. Pode parecer exagero, mas a paranóia carioca se aproxima um pouco da paranóia recifense, essa coisa de ficar olhando para os lados, sempre a espreita que alguém esteja a espreita, tomando providências para a morte não chegar - uma sensação que lembra o protagonista daquele filme, que eu sei que é ruim, mas que simpatizo, chamado Premonição. De fato, a caxangá parece brincadeira perto da Avenida brasil e seus 100 km/h como velocidade mínima. Não existem sinais - é via expressa - e ainda que existissem, aqui no Rio, ninguém liga muito pra sinal não, a maioria dos motoristas ainda não aprendeu o que significa a palavra pedestre e vive no mundo do daltonismo. Atravessar a rua é uma aventura diária. No caminho, no quilômetro sei lá quanto da avenida Brasil, vimos uma moto caída no canto e dois corpos desmaiados (mortos?) distantes um do outro. Ninguém se atrevia a parar pra ajudar pelo medo de serem assaltados. Uma das meninas zona sul sugeriu que poderia ser só fingimento para roubarem o carro. Era impossível. Fiquei com medinho dela.
No final das contas, as pessoas, além do medo óbvio, não param porque ninguém pára, há um sentimento internalizado a partir de uma coletividade, ou melhor, uma negação da coletividade pela falta de atitude generalizada. Pior é que todos andam tão depressa, tão centrados em sair dali o mais rápido possível, que se um parar, provavelmente o que iria acontecer era um acidente. Pouco antes da moto, passamos por um engavetamento de dois caminhões e uns sete/oito carros. Coisa assustadora, cosmopolita demais, me fez sentir um pouquinho caipira que pegou o pau de arara para o sul do país. Seja como for, fiquei incomodado com a indiferença, como aquela moto parecia desimportante até que obtive uma segunda resposta: Carol e Leca alegaram que acidentes de todo tipo ali eram normais, que quando acontecia algo do tipo só as ambulâncias poderiam intervir "e de todo modo eles já deviam estar mortos, pra que se arriscar?". Terminado o veredicto, cantaram juntas a próxima música do CD: me senti a pessoa mais solitária do mundo imaginando os dois corpos sendo atropelados dezenas e dezenas de vezes. Já no final da Avenida, lá pelo quilômetro não sei quanto vezes dois, ao invés de pegar a faixa da direita, Carol ficou na da esquerda e, por não conseguir fazer a transição, terminou tendo de seguir pelo caminho errado, indo em direção a ponte Rio-Niterói.
Fiquei meio boquiaberto com a falta de habilidade automobilística e ainda mais com a famosa construção que liga as cidades vizinhas, nunca tinha me sentindo tão pequeno diante da monstruosidade de uma construção tão ambígua: sentia um peso da história que não interferia na modernidade do aglomerado de concreto e ossos. Fomos até Niterói e voltamos, não cheguei a conhecer a outra cidade, realmente só fomos porque a ponte não tem retorno, quem entra nela tem de seguir até o fim e ainda pagar um pedágio. Fiquei deslumbrado: achei a ponte genial, monstruosa mesmo, o Rio visto dela é lindo. Já perto de Niterói surgem uns estaleiros, umas plataformas, uns navios enormes que em conjunto me lembraram aquelas cenas de filmes de ficção científica quando o diretor quer mostrar todos os efeitos especiais de uma só vez. Achei feio, mas ainda assim conseguiu me deslumbrar ao seu modo, nada perto do Rio de Janeiro: se olhássemos além, víamos os morros na penumbra e iluminados, e ainda mais além, o Cristo sozinho. Entendi melhor a imponência, tanto que senti vontade de filmar a vista da ponte e se não me engano, a lua estava cheia. Ou quase. Ainda bem que eu não tinha uma câmera: esse seria o meu maior clichê, sem dúvida. Tomamos uma cerveja em Niterói, Leca aproveitou para pegar roupa na casa de uma avó e voltamos em seguida. Mais 13km de ponte. Quando finalmente estávamos indo pra Botagofo pelo caminho certo, passamos por uma blitz (é assim, que se escreve?) e esqueci de comentar: minha amiga da direção, além de não saber dirigir muito bem, simplesmente estava sem carteira de motorista. Ok, bateu o medo extremo.
Quando estávamos na frente da viatura, o carro morreu, o farol estava apagado, seguramos o cu, conseguimos passar, de fato se aprende rapidinho a ter muito medo da polícia por aqui. Finalmente chegamos em Botafogo 1 hora e meia depois de ter saído de Realengo. Vontade de escrever um 'UFA' do tamanho do mundo. Carol me deixou na casa de Ariadne, uma amiga olindense, e foi na outra casa dela, em Botafogo mesmo, pra trocar de roupa. Filha de tenente, capitão, coronel, comandante, sei lá, ela nunca poderia sair da casa dos pais com a roupa decotada da 'night', daí sempre saía com uma roupa comportada e depois fazia a transformação da xuxa no caminho. Esse mundo é muito estranho e sendo assim, ela voltaria em alguns minutos. Fiquei lá no apartamento de bobeira. Fumamos um, dois, a maconha daqui tem gosto de merda, resolvemos tomar uma cerveja. Carol ligaria para o celular de Ariadne quando chegasse, daí eu voltaria e seguiria com ela. Tomamos uma. Duas. Três. Quatro. Nada de Carol. Estavámos num boteco de frente pro morro da Santa Marta e até então, foi a visão mais bonita que tive do Rio de Janeiro. Pois é, superou a ponte: o morro lhe suga, todas aquelas luzes emparelhadas com as luzes dos prédios, a verticalidade num modus operandi peculiar, tudo. É difícil de explicar, mas me senti diretamente conectado. Deve ser coisa de nordestino zé mané.
Ariadne ficou insistindo para que eu abandonasse a ideia da boate e fosse com ela subir o morro: era dia do evento maior da região, o Baile Funk. Ela notou que ganhou força no convencimento depois de contar tin tin por tin tin uma dezena de histórias na linha 'minhas-aventuras-sem-noção', um papinho barra pesada da garota de classe média que começa a conviver nos morros do Rio de Janeiro. Só sei que no meio dessas histórias, ela disse que teve um caso recentemente (o mais recente) com um rapaz do Santa Marta. Depois de uns dias, foi presa e descobriu que o tal cara era o chefão-mor do lugar. Ele faz o tipo que não pode ser nomeado que nem Voldemort de Harry Potter. Soube por Ariadne que muita gente envolvida no tráfico nunca desce pro asfalto, alguns só foram na praia quando criança e que isso, serve de motivação para que o Baile seja um evento referência pra todo mundo da cidade. Pareceu-me de uma melancolia enorme, mas pensando no harém que esse chefão e seus comparsas devem ter, a melancolia passou rápido rápido. Nada de Carol. Resolvi tentar ligar pra ela de um orelhão, usando um cartão de Recife, daí não tocou nem duas vezes, ela atendeu puta dizendo que já estava em Ipanema, que tinha ido na casa e esperado um tempão, que tinha ligado e Ariadne não tinha atendido. Por fim, mandou eu pegar um táxi ou estar na casa de Ariadne às 5 horas. Resolvo estar na casa de Ariadne no horário marcado, decido ceder aos convites, saquei que a própria não tinha atendido os telefonemas de propósito e me senti renovado por me deixar levar pelo sentimento forte que tinha batido de cara com o Santa Marta. Logicamente tomei uma lapadinha de cana antes.
Vou ter que resumir porque tenho que sair. O morro é lindo e sei que isso parece papo de antropólogo que vem da Europa estudar os índios. Perdoem-me se for o caso. Logo na subida é cheio de táxis, eles sobem até uma certa altura e trazem a high society carioca que gosta de funk-orige. Depois deste ponto, todos, jogadores de futebol ou não, sobem a pé. Não existem policiais, a segurança é feita pela galera do próprio morro, mas pelo que vi, nem precisava de segurança, foi tudo muito light nesse sentido. Sei que algumas pessoas gelariam ao ver um fuzil, não há esse costume por aí, mas, assim, aqui no rio se você não vê fuzil no morro, vai ver na rua, porque nas viaturas, os policiais andam com as suas armas para fora das janelas. Os seguranças do morro usam umas motos super bonitinhas, meio lambreta, que combinam muito bem com os capacetes meio Hell Angels. Achei bem charmoso. Chegando lá em cima, há uma espécie de praça na frente do galpão do evento, o uso de drogas é completamente liberado, fumei todos, tomei todas, cheirei um pouquinho de loló. Isso tudo com os amigos playboys de Botafogo de Ariadne. Ela conhece gente de todo canto, de toda classe, é do time que usa tudo e não é de zona alguma e o baile funk é muito isso. O espaço é enorme, a galera não pára, a música é safada, vibe funk proibido, tem uma vibração de espírito muito forte. Fiquei meio emocionado de estar ali em alguns momentos. Não é a toa que o morro virou a vedete do audiovisual carioca.
Só sei que, em dado momento, comecei a noiar quando estava dando uma volta dentro do baile, um galpão sem divisória alguma, com Ariadne, pois ela estava super tensa, daí segurou na minha mão e tive certeza que o chefão podia vir aloprar com a minha cara. Ok, sou de áries e o mundo gira em torno do meu umbigo. Obviamente não aconteceu nadica de nada ou não estaria escrevendo aqui. Ele é meio invisível nesses eventos, procura não se expor muito, depois soube que ela só queria saber se o cabra estava vivo e me desculpa, mas essa história de que ela não sabia que ele era O cara é muito princesa da periferia. Totalmente acho que ela sabia. Ainda descobri que por pouco não fui apresentado diretamente a ele, pois um dos caras com quem estávamos, era uma espécie de informante preliminar, fica sacando quem é novo no baile e se chega, tem vários desses, daí ele repassou que eu não era nada de Ariadne, só um amigo de Recife, e de repente tudo melhorou e virei convidado vip. Parece que a avó do que não pode ser nomeado era pernambucana e um dos sonhos dele era visitar Porto de Galinhas. Pois é, muito doido. Só sei que foi bom porque minha nóia passou bonito e me joguei no batidão, comecei a achar que todo mundo estava mais simpático e é isso que o álcool faz com as pessoas. Só fiquei triste quando percebi que os playboys que estavam no morro e moravam em Botafogo não gostavam do morro, algum deles, o que repassa drogas no asfalto, chegou a comentar na descida que era bom aproveitarmos porque o morro ia acabar, a polícia um dia ia invadir e colocar fogo em tudo. Falava com um ar sonhador.
No final das contas, por forças maiores e mesmo eu lembrando da hora marcada, não consegui chegar antes das 6 e meia onde tinha marcado com Carol. A culpa foi de Ariadne, ela mandou eu descer sozinho, não tive coragem, mas isso não vale a pena ser dito porque saí com a certeza de que tinha vivenciado a melhor vibe do Rio de Janeiro. Alguém poderia alegar que passei boa parte da noite com um monte de gente que nunca vi na vida, mas por favor né, eu vim sozinho pro Rio, esse é o tipo de coisa que tem que acontecer e sempre que foi preciso, soube muito bem obrigado me virar na lábia. Liguei pra Carol, que estava na Avenida Brasil, voltando pra Realengo p-u-t-a-d-a-v-i-d-a. Tava muito puta e com toda razão. Decidimos que eu iria pegar o metrô pra Central do Brasil e o trem pra Realengo. Foi o que fiz. Passei numa padaria, comprei uns pães quentes delícia e, antes de ir embora, tenho que dizer que terminar a noite, às 8 da manhã, chegando na Central do Brasil inundada de murmúrios, pra pegar um trem, me deixou relaxado, numa tranquilidade sem igual. Voltei num vagão com poucas pessoas, olhando o cristo e os morros, pensando na vidinha nossa de cada dia e guardando cada segundo no meu baú de memórias. Eventualmente me acometia a noia que quando chegasse em Realengo, alô alô Realengo, Carol ia me por pra fora de casa bonito. Imaginei até minha malas na calçada e todo drama novelesco. Vai saber, melhor cogitar o pior, afinal Carol é garota-zonasul e deve assistir muita novela.
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