(Publicado originalmente no Filmologia)
“Chamo até a mim os tornados e os furacões.
As tempestades, os tufões, os ciclones.
As ressacas do mar.
Os tremores de terra.
Chamo até a mim a fumaça dos vulcões e a dos cigarros.
Os círculos de fumaça dos cigarros de luxo.
Chamo até a mim os amores e os amantes.
Chamo até a mim os vivos e os mortos.
Chamo os coveiros chamo os assassinos
Chamo os carrascos, chamo os pilotos, os pedreiros e
os arquitetos.
Os assassinos.
Chamo a carne
Chamo aquela que amo
Chamo aquela que amo
Chamo aquela que amo”.
Robert Desnos (1927)
A constante luta de Philippe Garrel pelo controle da incidência da luz encontra em Le Bleu des Origines um momento de intensificação, uma trajetória é passada a limpo por meio de objetivas de uma câmera na mão, da fotografia que, entre o excesso e o cálculo, transborda o desejo incontido e rancor inevitável. O filme nos conduz como um álbum de fotografias ainda não amareladas ou mesmo como um quarto dos fundos em que escondemos todas as lembranças equivocadas e apaixonantes que não conseguimos nos desfazer. Le Bleu des Origines é a marca do fim enquanto o fim vai secretamente se instaurando, é um passeio romântico espreitado pela morte, não bem um acerto de contas, talvez uma carta de despedida com letras borradas: Garrel assume o fascínio por suas mulheres, Nico e Zouzou, por seus rostos, seus corpos, suas silhuetas e – ainda que o filme seja mudo – por suas vozes. As imagens denunciam um homem destinado a fazer seu testemunho, dez deles se for preciso, rearticulando seus filmes ou investigando suas origens, filmando o ato de filmar, filmando o ato de filmes que mantêm o fascínio por um rosto, por um corpo, por alguns deles. É uma revisão sobre o amor que lhe escapa.
1979 não é um ano qualquer na carreira do cineasta francês, marca o encerramento dos loucos “Anos Nico”, um distanciamento corporal de 1968, mas para apontar seus olhos, sem austeridade, para o futuro que se aconchega, para desenvolver uma compreensão transcendental de quem será nesse novo caminho, redireciona o olhar para as origens e afunda sua câmera na nostalgia. Talvez Garrel concorde com os personagens de Cinzas do Passado (Hong Kong, 1994), de Wong Kar-wai, que acreditam que a raiz de todos os problemas do homem é costurada pela memória, mas diferentemente deles jamais tomaria um vinho do esquecimento. Faria filmes, muitos deles prestando uma homenagem melancólica, diante das diferentes Vênus, dos distintos nascimentos, do vento fecundante, descortinando o seu próprio ventre, alinhando espelhos por todo o espaço. Le Bleu des Origines também funciona – dada a péssima qualidade da cópia disponível na internet – como alegoria de um tempo, de um sistema produtivo experimental que se contrapõe às expectativas do mercado, cujos resquícios chegam amplamente mutilados: ecoa através das ancas de todos os filmes indisponíveis, todos os fotogramas perdidos, uma história do cinema deteriorado.
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