(Publicado originalmente no Filmologia)
ELA: Mas o amor não é isso. Se eu estivesse doente, ainda me amaria? E se me caísse os cabelos? E se perdesse os dentes? Ainda me amaria? E se enlouquecesse? E se enlouquecesse? Ainda me amaria?
Quando se traça uma genealogia da carreira de inúmeros cineastas que rasgaram décadas com seus filmes, especialmente a partir de 1960, costuma-se dividi-la em duas fases hierarquicamente muito bem definidas: a primeira marcada pelo experimentalismo, por fotogramas sem concessões, pela ausência de financiadores, enevoando o período com a aura do autor verdadeiramente livre; e a outra, mais narrativa, uma mera adequação aos preceitos do mercado, créditos e créditos de empresas culturais, quase como uma desistência ou rendição ideológica. O caso de Phillippe Garrel seria exemplar se não funcionasse justamente para reverter e desmantelar esse esquema simplório: seu cinema decerto pode ser dividido em duas fases, a experimental e a narrativa, ambas cientes de seus distintos rigores, no entanto, ao invés da relação entre elas se estabelecer como a do parafuso hermético que é desenrolado e planificado, o segundo momento contém e registra suas próprias nuances, suas próprias potências, mas sem precisar evidenciar em primeiro plano suas estratégias narrativas. O foco é outro. Em La Frontière de l’aube, por exemplo, não existem letreiros brilhosos: “olhem, cinéfilos e estudantes de cinema, sou experimental” e ainda assim, o filme é ritmado pelas elipses tão marcantes da filmografia do cineasta francês, que entre a tragédia e a filosofia pop dos relacionamentos, consolida uma poética de caminhadas e saltos no tempo que desenterram presenças adormecidas. Na diluição do maneirismo, alguma coisa acontece.
Há algo de similar em La Naissance de l’amour, só que na obra mais recente e em questão, o passeio é tanto pelo início quanto pelo final dos relacionamentos – “os rompimentos bem que poderiam ser tão bonitos como os começos” – esboçando um inventário de amores vividos e lembrados, os dolorosos momentos de transição entre eles, a melancolia dos últimos encontros e a época em que nem nos demos conta, mas não nos vemos mais. Se fôssemos traçar uma genealogia de La Frontière de l’aube, poderíamos dividi-lo em dois capítulos e um epílogo, não hierarquicamente definidos: o primeiro em que o fotógrafo François se vê arrastado para um relacionamento com a atriz Carole, um encontro atravessado pelo prazer na cama, pelo rangido fora dela, pelos impulsos violentos, pelo acaso e pelas angústias coletivas; o segundo em que encontra Ève, levando-o aos passos tranquilos, sem grandes desafios, que o convida, quase desesperadamente, à resignação do casamento e da felicidade burguesa. O primeiro, em termos freudianos, estaria próximo do “princípio de prazer”, da recompensa imediata, do gozo instantâneo, de não poder dizer que ama porque o amor se prolonga, enquanto o segundo fundaria suas bases no “princípio de realidade”, do adiamento da gratificação, do elogio das cartas com frases bonitas e apenas bonitas, de aprender a suportar a falta de expressividade do cotidiano. Na fronteira de ambos os princípios, alguma coisa acontece.
O epílogo surge justamente quando o “princípio de prazer” – para alguns, o momento da imaginação no poder; para outros, o percurso na imaturidade – passa a assombrar a entrada indecisa de François no “princípio de realidade”. No primeiro momento, há um universo de ciúme e desconfiança – “não sei o que você faz quando não está comigo” – onde o protagonista não se conforma com a impossibilidade de simbiose completa, angustiado por não ocupar todos os espaços, encolhendo-se diante dos amigos dela que não são seus amigos e onde qualquer atitude, absolutamente qualquer, pode se transformar numa ofensa. Os rostos estão mais próximos da câmera, os perigos agachados a cada esquina, a cada campainha e a intensidade só anuncia o fim que se aproxima. As cenas de passagem antecipam um decadentismo, que nada mais é que a perda de sensibilidade, por meio do abuso de drogas sem inquietações perceptivas, do internamento numa clínica psiquiátrica, dos eletrochoques que nos levam a L’Enfant Secret e da posterior morte, presença-ausência que ecoa durante toda filmografia do diretor. Ela enlouqueceu e ele a deixou.
Na segunda parte, o sexo com Ève é bom, só que correto demais, nada é inapagável, todo resto é fácil, os afetos estão mapeados e ela, a garota, é frágil. Até o pai comenta. A decisão do fotógrafo começa a atormentá-lo, assim como a todos que se casam e antes dos votos de eternidade, ralam o pé no suicídio. Não há o mesmo timing de beijos, de acertar um carinho no cabelo, uma aproximação que desarruma o comportamento do outro. A presença fantasmática de Carole, um trauma no inconsciente – que estabelece um diálogo com dois filmes portugueses, Odete, de João Pedro Rodrigues e especialmente O Estranho Caso de Angélica, de Manoel de Oliveira – assume o papel do passado utópico, obstinado, que quer resgatar François de um futuro burguês de desinteresses. A fronteira em questão é entre Carole morta e seus descaminhos e Ève viva e suas retenções, gráfico nunca exato, medida inconclusiva, mas cujo tracejado deixa de existir completamente quando ambas ocupam uma dimensão semelhante e deixam François num dilema diante da janela. Ele só precisava tirar fotos, mas se apaixonou pela imagem.
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