(Publicado originalmente no Filmologia)
Se num futuro próximo, decidisse abrir o baú onde estão guardados todos aqueles filmes que deixei de assistir, um digno entulho de básicos desconhecidos, clássicos renegados, vídeos recusados pela capa ou cartaz; das mais escabrosas traduções livres as coletâneas de atores cretinos, perpassando plots regados a desinteresse, stills condutores de preguiça ou mesmo os dispensados pelo meu mau humor num dia alagado, notaria que o título é o critério impulsivo, olho-no-olho, mais influente no tocante ao abandono. Não é de se impressionar, na hora de nomear um filho, certos pais recorrem a dicionários específicos, outros homenageiam celebridades, figuras históricas, personagens, alguns visitam cartomantes, apostam no básico joão-pedro-antônio, os descontraídos decidem no par-ou-ímpar, na porrinha, mas sempre é possível que o resultado, assim como nos filmes, revelem uma falta de tato, uma disfunção sonora, uma pretensão – ou humildade – que simplesmente não funciona. Na melhor das ingenuidades pode ser apenas o sinal de um bad hair day do diretor / produtor / roteirista. Se dentre as centenas de variáveis possíveis, escolhesse um único título péssimo para representar todos os outros, escolheria sem dúvida Poesia, do coreano Lee Chang-Dong. Claro que antes de saborear o prato principal, passei pela leitura de um aperitivo que só fez piorar tudo: um bom cristão – ou seu chefe – não satisfeito com a infâmia do título do filme enterrou o pé na jaca no título da crítica: “mais que um filme, poesia!“. Controlando as mãos para não me enforcar com as minhas tripas, vendo a minha vontade de assistir diminuindo como uma barrinha de jogo meio Scott Pilgrim, não consegui passar ileso pelo abuso com o leitor vibrante, especialmente pela defesa guiada através dos abismais clichês do ‘sofisticado de novela’ no que se convencionou chamar de ‘filme de arte midcult‘ ou ‘filmes de arte para velhas senhoras’. Há, lógico, quem prefira nomear esse depositório falsificado de regras, esse fingimento de complexidade que tanto atrai jovens universitários com o simpático e direto ‘filme cabeça para gente burra’. A Origem, de Christopher Nolan serve aqui como uma tocha.
Antes de assistir ao filme, quando pensava em Poesia (sic), a tempestade de imagens predispostas se resumia a um mutirão de senhoras de ‘muito bom gosto’ indo ao Cinema da Fundação: abandonando suas salas com objetos kitsch sobrepostos, entrando em seus carros importados de um feirão de usados, parando no caminho para comprar um quadro de paisagem no Bompreço, apertando as gordurinhas nas roupas de marcas nem tão famosas, batendo aquele papo bem inteligente na espera do cappuccino frappe. É tanto ‘bom gosto’ de bijuteria que o enjôo parece inevitável. De qualquer forma, como estou aprendendo a lidar com – às vezes respeitar, mais que lidar – meus preconceitos, como ando abrindo o tal baú dos filmes que deixei de assistir, alguns protagonizando belas surpresas, outros trazendo a culpa por não ter escondido mais fundo – e, claro, como precisava escrever para essa seção do filmologia – resolvi dar uma chance e assistir P-o-e-s-i-a. “Vai ver é apenas um mal título num bom filme”, pensei. Não era. A obra de Lee Chang-Dong serviu bem ao propósito inicial, pois carrega a estrutura básica dos filmes de arte aqui referidos, chega a ser pedagógico para quem quiser impressionar uma formiga com seu gosto de adoçante light. Tudo começa pelo velho clichê da distância geracional, da incomunicabilidade dentro da casa, das conversas artificiais no café-da-manhã, do neto que dorme escutando música alta enquanto a avó não sabe mexer no computador. Aliás, esses ‘filmes de arte’, como bons reinos da emulação, disfarçam estereótipos e adoram um drama familiar, um filho que morre (O Quarto do Filho, de Nanni Moretti), um aborto no leste europeu, um choro embaixo do chuveiro, uma mãe prostituta, acontecimentos fortes besuntados naquele clima de obra-prima “profundamente humana que levou espectadores de todo mundo às lágrimas”. E se vier com o carimbo de que venceu alguma coisa em Cannes, aí fudeu. Tem que chorar, gostar e contar pras amigas.
No básico do básico, o filme acompanha uma velhinha simpática, na fase inicial do Mal de Alzheimer (filmes cabeça adoram doenças terminais, degenerativas, câncer e derivados), que é alertada sobre a possibilidade de seu neto estar envolvido em delitos sexuais que desencadearam o suicídio de uma jovem. Sempre a desgraça vem acompanhada de uma trajetória da superação bem diferente dos ‘malditos’ filmes norteamericanos, como se tivesse um letreiro piscando ‘sou mais sensível, sou mais sensível’ em cores neon e sotaque francês. No meio do caminho, a protagonista se inscreve numa oficina literária para aprender a escrever uma poesia, numa dessas oficinas básicas caça-níquel ministradas por qualquer pessoa que precise pagar suas contas. Para começo de história, todo esse drama de escrever poesia é um tanto anacrônico, é mitificar a feitura da arte aos tempos pré-modernos, ‘o mito do poema inalcançável para os simples mortais’, quando arte e fé andavam indissociáveis, ambas cultuando basicamente o que não se podia tocar, às vezes sequer olhar, nunca produzir. Esse patamar do divino, da genialidade, relampeja de tal forma que o roteiro, desprezando o materialismo histórico, caminha fundamentalmente como um manual ridículo de como ser mais sensível, de como captar a inspiração, de como se tornar poeta diante de uma arte em extinção. Soa como uma solidariedade bizarra: “mesmo você dona-de-casa sofrida, fudida, burra pode ser uma Artista”. Para se ter uma idéia, na cena em que a velhinha conversa com a poetisa logo após um sarau onde um dos poemas era justamente sobre o ofício do ‘escrever poesia’ (argh!), todos naquele clima de “pessoas que amam poesia”, há um resgate pomposo da noção de superioridade perceptiva do poeta, resumindo a criação como um produto obrigatoriamente da ordem do sentimento. “Vem subindo pelos pés até chegar às mãos e rasgar o papel” como alguém já cantou por aí. É bom lembrar que nem sempre esse tal sentimento metafísico é o mais honesto, às vezes, a poética pode vir de trabalho, experiência, suor e esforço, movimento até esboçado através do realismo da personagem principal. Contudo, a referência maior desse modus operandi ainda é João Cabral de Melo Neto.
Dentro desse manual de sensibilidade, dessa domesticação de poética travestida de espontaneidade, vale lembrar que a avó, muito boazinha e fofinha, aquele tipo de pessoa bem-do-bem, cuida de um velhinho moribundo pós-AVC, nega uma punhetinha num dia em que ele secretamente toma um Viagra e claro, quando precisa de dinheiro, volta lá e faz o serviço completo. O problema não é a previsibilidade, filmes previsíveis podem ser condutores de suas próprias intensidades, o problema é que uma das características principais desses ‘filmes de arte’ é a vontade de instaurar uma espécie de ‘existência poética do indivíduo’, no ritmo de fazer do seu dia, um punhado de versos, de encontrar saídas inusitadamente poéticas no intuito de reverter a crueldade da vida. Você lembra logo dos seus amigos / conhecidos que se acham muito poetas e mandam e-mails, recados, SMS como se fossem Fernando Pessoa, obcecados por uma vontade de poesia que transforma nulidades do dia-a-dia em operetas da cafonice. São como as gotas de chuva – lágrimas? – marcando o papel. É nesse sentido da artificialidade que as senhoras saem do cinema comentando ‘a bela lição de vida que aprenderam’, falando como o filme é ‘bonito’ – filmes de arte midcult são sempre bonitos – como vai ajudar a lidar com os seus sofrimentos de classe média. O próprio diretor numa conferência referenda completamente essa reação: “Poesia não é apenas como um buquê de flores que é bonito em si mesmo. É a vida. Não importa a feiúra do mundo, há sempre algo lindo por dentro. É isso que quis mostrar”. O forçado conflito moral do filme se afasta de qualquer originalidade estética, chega ser imensamente ingênuo, só nos faz lembrar que é conflito à medida que combate a posição do espectador mais conservador – todos parecem sentados ao centro, um pouquinho mais a direita, fingindo esquerda. A alienação e caretice dos olhos sempre vão produzir personagens mais ambíguos do que são, heróis mais enigmáticos do que são, filmes-de-arte maravilhosos e sublimes para velhas senhoras de muito bom gosto mais do que são. Repito: Poesia é o reino da emulação.
Por fim, um último aspecto desse conjunto de filmes aparece apenas no final, naqueles últimos cinco minutos quando rola o apanhado de imagens dos cenários percorridos ao longo da película, geralmente acompanhados de uma voz em off com a maior reflexão de todos os tempos da última semana, até chegar no plano final que se mostra bastante similar ao inicial: Poesia resgata o rio de Heráclito onde é impossível se banhar duas vezes, porque na segunda vez, nem nós, nem o rio somos os mesmos. Trata-se da marca de ciclo completo, o fim do embuste, a versão compacta de tudo que desenvolvi aqui. O pior é que a poesia escrita pela pobre velhinha não é de todo mal. Como diriam todas as nossas tias reunidas em coro: ‘é até de muito bom gosto’.
Para ler uma reflexão sobre o ‘circuito de arte’ numa perspectiva diferente, recomendo o artigo de André Antônio.
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