terça-feira, 31 de maio de 2011

Witch’s Cradle (EUA, 1944), de Maya Deren

(Publicado originalmente no Filmologia)

Quem e o que sentencia o término de uma obra de arte? Uma desistência de ir além, um timing exato da hora de parar, uma morte prematura? Uma sensação de completude ou o contrário? A pessoa que produz ao longo de vários anos, que hipoteca a casa, destrói o casamento ou a que mesmo entrando de graça desiste do filme antes dele acabar? Há casos em que é preciso o grito de ‘basta’ de um anônimo e há casos onde o ‘basta’ decerto será adiado por gerações e gerações de intrometidos. A nascida russa, no ano da Revolução Russa, mas crescida norte-americana, Maya Deren parece ser uma cineasta exemplar para uma época, não a dela, mas a nossa, em que as apostas metodológicas estão se transferindo, especialmente nos campos das artes plásticas e da literatura, do interesse grandiloqüente da obra final, acabada, redonda, intocável para o processo longo, duradouro e poético de criação. Não mais Grande Sertão: Veredas fechado. Grande Sertão: Veredas com rabiscos, anotações, frases riscadas, desistências, persistências, nascentes e simultâneas possibilidades do que é, do que poderia ser e do que não foi. Não mais um quadro cheio de concepções encerradas em si mesmas, mas paredes sendo pintadas diante dos nossos olhos, pratos, fachadas, cinzeiros, pianos e seios ou qualquer outro lugar em que as Mulheres Barbadas consigam chegar.

É por isso que mesmo nas filmografias completas da nossa mística-russa-americana em que se convencionou Witch’s Cradle como um filme inacabado, tinindo o tom como quem fala de uma dívida não paga, temos de nos dar conta que, na bela e recorrente textura em 16mm, o pujante é justamente a posição de um fragmento incerto na montagem de uma atmosfera confusa. A cineasta ‘desconvencionaliza’ planos como quem joga cartas, planta desenlaces como quem decide por uma música e, aliás, para uma produção envolvendo Maya Deren e o ícone Marcel Duchamp, esperar um discernimento óbvio, ululante entre supostos paradoxos como ‘concluído’ e ‘inacabado’ é se assentar em muito pouco. Estamos no berço das bruxas, técnica de tortura antiga que consistia em colocar as suspeitas em sacos pendurados em árvores, balançando-as, balançando-as, balançando-as, de forma que quando confessavam tontas e ansiosas pela fuga, terminavam por fantasiar insanamente suas histórias. Para o cinema em questão é sempre bom um punhado de silêncio para não escorregar e um punhado de risco para não se confundir.

Maya Deren é uma bruxa extraordinária, deforma o mundo puxando por seus ângulos, tatuando, vez ou outra mudando a velocidade dos quadros, usando das já catalogadas trucagens, só que avant-garde por avant-garde, não mais para instaurar um formalismo semelhante ao da década de 20. Seu cinema nada tem a ver com brincadeiras de cineastas com o dispositivo recém-descoberto no fundo do pátio. Ela – diretora, coreógrafa, teórica e todos os outros rótulos que antecedem grandes nomes – segue na criação de universos enigmáticos como quem descobre a porta dos fundos de um buraco negro, convidando espectadores e monstros a compartilharem do mesmo quarto soturno. Em Witch’s Cradle a sucessão de cenas não remete ao que está faltando, ao que se perdeu, mas no que foi jogado fora, arremessado, nos corredores decadentistas dos museus e na poderosa ausência da palavra. Diante dos sumiços e aparições de personagens, da câmera girando como se experimentasse novos estados de consciência, afortunados estados de espírito, desanuvia um fio que nos amarra, nos enforca, sobe por nosso paletó e puxa nossa cabeça para trás. Os rostos estão angustiados, as perspectivas passam por metamorfoses aceleradas, o espaço se confunde: trata-se da vingança das bruxas, Duchamp com as mãos amarradas, uma penumbra onde a jovem garota arquiteta a coragem. Há algo germinando através de Maya e a cineasta não nega a colagem dos planos escolhidos, dos planos que sobraram; dos planos desperdiçados e dos planos esquecidos. Todos os planos do ocultismo dentro de um único coração pulsando e parando de pulsar.

O universo de Maya nos arrasta para uma doce vizinhança de presenças suspeitas, cada filme se mostra enquanto ritual, invocando máscaras, bonecos, marcas, humanos sem rosto, fios que sustentam, fios que enforcam, uma estabilidade-terremoto nas molduras, nos quadros, apenas molduras, menos quadros, mais quadros sem molduras. Os cortes sucessivos no rosto de Pajorita Matta, entre a tortura e a possessão, o espetáculo, a confusão mental, o mundo inventado pela câmera e por nosso não tão doce olhar. Não estamos mais perdidos na Arte Moderna, aprendemos direitinho, o modernismo está cansado, a impossibilidade de resolver e explicar não nos tira o interesse, não perdemos o ímpeto, o experimental não é parnasiano, mas uma breve cirurgia sem anestesista de sensibilidade contemporânea. Não saberia se Maya está montando a obra ou registrando o processo. Não saberia se seus filmes deveriam passar no cinema ou numa galeria de arte. Se Witch’s Cradle é um filme concluído ou inacabado. Ela sabe que essas dúvidas não importam, mas não consegue se decidir sobre a posição do picadeiro. O filme acaba assim sem créditos.The end is the beginning is the end.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Mauá: a exposição e o mito

Como bons desconhecedores da nossa história, estamos rodeados de ruas, avenidas, praças, esculturas e colégios nos quais os nomes prestam homenagens a figuras supostamente importantes, mas cujo referente, justificativa e atuação política ou artística nos escapam. Se por um lado fincamos honras a homens como Henrique Dias ou Frei Caneca, símbolos da luta pela liberdade no estado, vez ou outra confundimos as raízes desse merecimento, o que resulta contradições como o da Escola General Ernesto Geisel no município de Santa Bárbara, na Bahia, ou do Centro Educacional Fernando Collor de Mello em Nossa Senhora do Socorro, em Sergipe. É no meio desse dilema que o Museu do Estado de Pernambuco abriu há poucos dias a exposição Mauá - O Empreendedor, resgatando através de fotos, ilustrações, gravuras, quadros e mapas, a figura homônima, conhecida no senso comum como industrial, banqueiro, diplomata, sendo um dos principais atores do capitalismo brasileiro no século XIX. A curadoria é do designer Victor Burton.

No entanto, no debate entre especialistas, Mauá não é visto com o mesmo ufanismo que produz rótulos como “pioneiro na indústria”, “incompreendido pela sociedade rural e escravocrata” ou “guerreiro independente do progresso brasileiro”. Contrariando a maioria dos biógrafos, para o Prof. Dr. Carlos Gabriel Guimarães do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, o Barão de Mauá não passa de um mito nacional, “na juventude era negociante de escravos, pertencia a Classe Senhorial, tinha fábricas com 1/3 de escravos e não só isso, estava intimamente relacionado com o Estado imperial, monarquista e escravista”. Bem distante da imagem positiva que povoa nosso imaginário popular, bastante influenciado pelo filme Mauá - O Imperador e o Rei, dirigido por Sérgio Rezende, que coloca o Barão, interpretado por Paulo Betti, como defensor do fim da escravidão por razões econômicas. Aliás, 'houveram boatos' que na abertura da exposição, Betti esteve presente vestindo o figurino da produção cinematográfica.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Filmes de arte para velhas senhoras de muito bom gosto


(Publicado originalmente no Filmologia)

Se num futuro próximo, decidisse abrir o baú onde estão guardados todos aqueles filmes que deixei de assistir, um digno entulho de básicos desconhecidos, clássicos renegados, vídeos recusados pela capa ou cartaz; das mais escabrosas traduções livres as coletâneas de atores cretinos, perpassando plots regados a desinteresse, stills condutores de preguiça ou mesmo os dispensados pelo meu mau humor num dia alagado, notaria que o título é o critério impulsivo, olho-no-olho, mais influente no tocante ao abandono. Não é de se impressionar, na hora de nomear um filho, certos pais recorrem a dicionários específicos, outros homenageiam celebridades, figuras históricas, personagens, alguns visitam cartomantes, apostam no básico joão-pedro-antônio, os descontraídos decidem no par-ou-ímpar, na porrinha, mas sempre é possível que o resultado, assim como nos filmes, revelem uma falta de tato, uma disfunção sonora, uma pretensão – ou humildade – que simplesmente não funciona. Na melhor das ingenuidades pode ser apenas o sinal de um bad hair day do diretor / produtor / roteirista. Se dentre as centenas de variáveis possíveis, escolhesse um único título péssimo para representar todos os outros, escolheria sem dúvida Poesia, do coreano Lee Chang-Dong. Claro que antes de saborear o prato principal, passei pela leitura de um aperitivo que só fez piorar tudo: um bom cristão – ou seu chefe – não satisfeito com a infâmia do título do filme enterrou o pé na jaca no título da crítica: “mais que um filme, poesia!“. Controlando as mãos para não me enforcar com as minhas tripas, vendo a minha vontade de assistir diminuindo como uma barrinha de jogo meio Scott Pilgrim, não consegui passar ileso pelo abuso com o leitor vibrante, especialmente pela defesa guiada através dos abismais clichês do ‘sofisticado de novela’ no que se convencionou chamar de ‘filme de arte midcult‘ ou ‘filmes de arte para velhas senhoras’. Há, lógico, quem prefira nomear esse depositório falsificado de regras, esse fingimento de complexidade que tanto atrai jovens universitários com o simpático e direto ‘filme cabeça para gente burra’. A Origem, de Christopher Nolan serve aqui como uma tocha.

Antes de assistir ao filme, quando pensava em Poesia (sic), a tempestade de imagens predispostas se resumia a um mutirão de senhoras de ‘muito bom gosto’ indo ao Cinema da Fundação: abandonando suas salas com objetos kitsch sobrepostos, entrando em seus carros importados de um feirão de usados, parando no caminho para comprar um quadro de paisagem no Bompreço, apertando as gordurinhas nas roupas de marcas nem tão famosas, batendo aquele papo bem inteligente na espera do cappuccino frappe. É tanto ‘bom gosto’ de bijuteria que o enjôo parece inevitável. De qualquer forma, como estou aprendendo a lidar com – às vezes respeitar, mais que lidar – meus preconceitos, como ando abrindo o tal baú dos filmes que deixei de assistir, alguns protagonizando belas surpresas, outros trazendo a culpa por não ter escondido mais fundo – e, claro, como precisava escrever para essa seção do filmologia – resolvi dar uma chance e assistir P-o-e-s-i-a. “Vai ver é apenas um mal título num bom filme”, pensei. Não era. A obra de Lee Chang-Dong serviu bem ao propósito inicial, pois carrega a estrutura básica dos filmes de arte aqui referidos, chega a ser pedagógico para quem quiser impressionar uma formiga com seu gosto de adoçante light. Tudo começa pelo velho clichê da distância geracional, da incomunicabilidade dentro da casa, das conversas artificiais no café-da-manhã, do neto que dorme escutando música alta enquanto a avó não sabe mexer no computador. Aliás, esses ‘filmes de arte’, como bons reinos da emulação, disfarçam estereótipos e adoram um drama familiar, um filho que morre (O Quarto do Filho, de Nanni Moretti), um aborto no leste europeu, um choro embaixo do chuveiro, uma mãe prostituta, acontecimentos fortes besuntados naquele clima de obra-prima “profundamente humana que levou espectadores de todo mundo às lágrimas”. E se vier com o carimbo de que venceu alguma coisa em Cannes, aí fudeu. Tem que chorar, gostar e contar pras amigas.

No básico do básico, o filme acompanha uma velhinha simpática, na fase inicial do Mal de Alzheimer (filmes cabeça adoram doenças terminais, degenerativas, câncer e derivados), que é alertada sobre a possibilidade de seu neto estar envolvido em delitos sexuais que desencadearam o suicídio de uma jovem. Sempre a desgraça vem acompanhada de uma trajetória da superação bem diferente dos ‘malditos’ filmes norteamericanos, como se tivesse um letreiro piscando ‘sou mais sensível, sou mais sensível’ em cores neon e sotaque francês. No meio do caminho, a protagonista se inscreve numa oficina literária para aprender a escrever uma poesia, numa dessas oficinas básicas caça-níquel ministradas por qualquer pessoa que precise pagar suas contas. Para começo de história, todo esse drama de escrever poesia é um tanto anacrônico, é mitificar a feitura da arte aos tempos pré-modernos, ‘o mito do poema inalcançável para os simples mortais’, quando arte e fé andavam indissociáveis, ambas cultuando basicamente o que não se podia tocar, às vezes sequer olhar, nunca produzir. Esse patamar do divino, da genialidade, relampeja de tal forma que o roteiro, desprezando o materialismo histórico, caminha fundamentalmente como um manual ridículo de como ser mais sensível, de como captar a inspiração, de como se tornar poeta diante de uma arte em extinção. Soa como uma solidariedade bizarra: “mesmo você dona-de-casa sofrida, fudida, burra pode ser uma Artista”. Para se ter uma idéia, na cena em que a velhinha conversa com a poetisa logo após um sarau onde um dos poemas era justamente sobre o ofício do ‘escrever poesia’ (argh!), todos naquele clima de “pessoas que amam poesia”, há um resgate pomposo da noção de superioridade perceptiva do poeta, resumindo a criação como um produto obrigatoriamente da ordem do sentimento. “Vem subindo pelos pés até chegar às mãos e rasgar o papel” como alguém já cantou por aí. É bom lembrar que nem sempre esse tal sentimento metafísico é o mais honesto, às vezes, a poética pode vir de trabalho, experiência, suor e esforço, movimento até esboçado através do realismo da personagem principal. Contudo, a referência maior desse modus operandi ainda é João Cabral de Melo Neto.

Dentro desse manual de sensibilidade, dessa domesticação de poética travestida de espontaneidade, vale lembrar que a avó, muito boazinha e fofinha, aquele tipo de pessoa bem-do-bem, cuida de um velhinho moribundo pós-AVC, nega uma punhetinha num dia em que ele secretamente toma um Viagra e claro, quando precisa de dinheiro, volta lá e faz o serviço completo. O problema não é a previsibilidade, filmes previsíveis podem ser condutores de suas próprias intensidades, o problema é que uma das características principais desses ‘filmes de arte’ é a vontade de instaurar uma espécie de ‘existência poética do indivíduo’, no ritmo de fazer do seu dia, um punhado de versos, de encontrar saídas inusitadamente poéticas no intuito de reverter a crueldade da vida. Você lembra logo dos seus amigos / conhecidos que se acham muito poetas e mandam e-mails, recados, SMS como se fossem Fernando Pessoa, obcecados por uma vontade de poesia que transforma nulidades do dia-a-dia em operetas da cafonice. São como as gotas de chuva – lágrimas? – marcando o papel. É nesse sentido da artificialidade que as senhoras saem do cinema comentando ‘a bela lição de vida que aprenderam’, falando como o filme é ‘bonito’ – filmes de arte midcult são sempre bonitos – como vai ajudar a lidar com os seus sofrimentos de classe média. O próprio diretor numa conferência referenda completamente essa reação: “Poesia não é apenas como um buquê de flores que é bonito em si mesmo. É a vida. Não importa a feiúra do mundo, há sempre algo lindo por dentro. É isso que quis mostrar”. O forçado conflito moral do filme se afasta de qualquer originalidade estética, chega ser imensamente ingênuo, só nos faz lembrar que é conflito à medida que combate a posição do espectador mais conservador – todos parecem sentados ao centro, um pouquinho mais a direita, fingindo esquerda. A alienação e caretice dos olhos sempre vão produzir personagens mais ambíguos do que são, heróis mais enigmáticos do que são, filmes-de-arte maravilhosos e sublimes para velhas senhoras de muito bom gosto mais do que são. Repito: Poesia é o reino da emulação.

Por fim, um último aspecto desse conjunto de filmes aparece apenas no final, naqueles últimos cinco minutos quando rola o apanhado de imagens dos cenários percorridos ao longo da película, geralmente acompanhados de uma voz em off com a maior reflexão de todos os tempos da última semana, até chegar no plano final que se mostra bastante similar ao inicial: Poesia resgata o rio de Heráclito onde é impossível se banhar duas vezes, porque na segunda vez, nem nós, nem o rio somos os mesmos. Trata-se da marca de ciclo completo, o fim do embuste, a versão compacta de tudo que desenvolvi aqui. O pior é que a poesia escrita pela pobre velhinha não é de todo mal. Como diriam todas as nossas tias reunidas em coro: ‘é até de muito bom gosto’.

Para ler uma reflexão sobre o ‘circuito de arte’ numa perspectiva diferente, recomendo o artigo de André Antônio.

quinta-feira, 12 de maio de 2011

O labirinto de Montez Magno


Se nos arriscássemos num passeio pelas inúmeras vertentes estéticas, prospectando ímpetos criativos ou suportes multimidiáticos que marcaram o redirecionamento de intenções no final da modernidade sem sair da trajetória de um único artista; quando as transgressões das vanguardas do início do século XX haviam sido canonizadas, o cubismo, impressionismo e futurismo ocupavam largamente as pautas dos museus e novas tendências marginais naturalmente emergiam carregando outras preocupações, o pernambucano Montez Magno seria um caso exemplar. Autodidata, diz a lenda que abandonou a Escola de Belas Artes "porque se deu conta que se aprende a pintar, pintando" e apesar da participação em inúmeras Bienais, sempre se manteve desconhecido do grande público por não reverenciar o mercado da arte, ostentando uma posição isolada, distante dos coletivos e grupos, "não se prendendo a nada" como ele mesmo sempre gostou de admitir. Sejam os quadros em que a dureza da geometria de Mondriam vem associada às cores das barracas populares de feiras do interior, sejam os objetos inseridos num universo simultaneamente intelectual e lúdico, o artista estabelece um trânsito entre poéticas e técnicas tornando a profusão de seu universo cada vez mais intrigante. Sua casa, como todos contam, é um espaço entulhado de possibilidades, lembrando um labirinto de gavetas: "quanto mais abríamos, mais apareciam". Se nos arriscássemos ainda mais nesse passeio e nos dedicássemos a inventariar suas obras uma por uma - a estimativa é que ultrapassem das duas mil - ou mais que isso, nos debruçássemos a selecioná-las a partir de eixos temáticos ou mesmo cronológicos, no momento de decidir quais entrariam e quais ficariam de fora, a heterogeneidade de suportes utilizados por Montez ao longo de sua carreira desmembraria qualquer certeza. Afinal de contas, seria no mínimo uma contradição encaixar em categorias baseadas nos parâmetros comumente utilizados no campo da arte, de um fio-condutor, de um único estilo-síntese, uma obra tão camaleônica, onde a diversidade, diferentemente da busca por unidade, se afirma como âmago estilístico. Montez segue pela impossibilidade de rótulos, apostando em diálogos intertextuais, no nomadismo estético, desconstruindo a razão em linhas retas, não cansando de reverenciar Duchamp, atravessando os olhos de Akira Kurosawa na série 'Dodeskaden', esculpindo corredores intrincados com telas, instalações, registro de performances, jogos, poemas visuais, fotografias, xeroarte e gravuras. No caso do pernambucano de 76 anos e nascido em Timbaúba - onde eu costumava passar minhas férias de inverno quando criança - mesmo com toda orientação curatorial, para adentrar no seu labirinto sinestésico é preciso lembrar que, assim como no verso de Mallarmé apropriado em um de seus trabalhos, "um lance de dados não abolirá jamais a força do acaso".

sexta-feira, 6 de maio de 2011

No rastro da brasilidade

A definição do que é propriamente brasileiro, de quais rumos, realidades e aspectos definem uma produção genuinamente nacional é um dos temas norteadores do pro­jeto estéto em nosso País. Desde os românticos ufanistas da primeira geração e, em particular, a partir da Se­mana de Arte Moderna de 1922, no racha entre o Manifesto Pau-brasil e o Nheguaçu Verde-amarelo, o ímpeto em afirmar a identidade artística emergiu através do resgate do folclore, das raízes culturais, da antropofagia, aproxi­mando cultura popular e erudita, colhendo características exclusivas e limitando a influência estrangeira. Se na dé­cada de 1950, um movimento de negação dessa bra­silidade pela busca da universalidade ganhou força por meio da geometria influ­en­ciada pelo holandês Mondrian, quase vinte anos depois, artistas como Hélio Oiticica, Lygia Pape e o cinema de Rogério Sganzerla retomaram pontos dessa discussão; o marginal virou herói, as perspectivas se expandiram, de tal modo que o acúmulo de obras mais ou menos brasileiras passaram a revelar não apenas o País que habitamos, mas especialmente o País que nos habita. É sob es­se viés, pensan­do a brasilidade como discur­so passível de transformação e não essência imutável, que o curador e pesquisador Marcelo Campos montou a exposição Vestígios de Brasili­dade. Dividida em sete núcleos de orientação - quarta-feira de cinzas, fetichismo, o vento, a preguiça, os sortilégios, a geometria e a casa -, a iniciativa convida o público a percorrer as minúcias de brasilidade inscritas na multiplicidade de poéticas, assumindo a polissemia de sentidos e o caráter fractal nas 57 obras expostas. Dos 42 artistas, a maior parte contemporâneos, vale destacar as paredes carnais de Adriana Varejão, a negritude de Luiz de Abreu, as formigas de Cao Guimarães e Rivane Neueschwander, os redemoinhos espontâneos de Rosângela Rennó, a casa dos pais de Efrain Almeida, o corpo fechado de Antônio Manuel, os homens dorminhocos de Pierre Verger, as redes sem forma de Ernesto Neto, as apreensões de Bob Wolfenson, as raízes de José Rufino, as bandeirolas de Volpi, o cochilo da prostituta de Cícero Dias, o senhor trôpego de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz e a missa móvel de Nelson Leirner. O curador procurou mapear o redirecionamento diante do projeto estético da modernidade, onde a brasilidade deixa de ser a grande narrativa ou grande preocupação para se tornar uma insinuação, uma sutileza sincrética, engendrada num diálogo de suportes, no cotidiano como instância inspiradora, nas conexões de tempos e espaços e na quebra de clichês e expectativas.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Os marcos amadores


Dentro da historiografia positivista, da fundamentação metodológica que buscava obter resultados 'corretos' através de uma ciência humana racional e pura, os grandes eventos, grandes líderes, grandes acontecimentos postados cronologicamente eram tomados como marcos paradigmáticos na definição do que era e do que não era relevante para ser lembrado. Naturalmente o que se constituiu desde então como história da humanidade veio com marcas e intenções ideológicas, permeada por uma rígida delimitação do 'fato', onde a escritura se autodenominava neutra, como defendia Fustel de Coulanges, mas na prática mantinha uma relação íntima com os respectivos atores hegemônicos locais, nacionais e mundiais. Diferente dessa tradição e se alinhando a um dos debates mais controvertidos do século passado, que basicamente redirecionou o interesse de pesquisa para os anônimos e suas relações sociais e cujo emblema primeiro é a Escola dos Annales, está o projeto que o artista plástico Paulo Meira vem desenvolvendo nos últimos anos. O Marco Amador procura por meio de diferentes suportes (vídeo, fotografia, pintura) discutir as potencialidades da narrativa sob a dimensão do microacontecimento, revelando o ímpeto afetivo, mínimo, às vezes invisível, como espaço de intensidade. No caso do mais recente produto dessa jornada, 15 minutos no jardim de Alice Coelho, resultado de uma residência no Museu da Imagem e do Som de São Paulo, o artista investe numa remissão aos primeiros espetáculos de massa, os 'entra-e-sai' (entre-sort), através de figuras circenses da mulher barbada, do mágico sombrio, do atirador de facas, cuja aberração e despadronização corpórea e disjunção temporal transforma a curiosidade num mórbido festival do olhar. Esse imaginário fin de siècle é largamente explorado em filmes como Monstros (EUA, 1932), de Tod Browning e O Homem Elefante (EUA, 1980), de David Lynch. Para Paulo Meira, nosso interesse pelo monstro se dá porque ele “agrega todas as pequenas aberrações dos homens e revela todas as imagens traumáticas que carregamos”, de modo que é possível adentrar na invenção do humano a partir da matriz do monstruoso.