terça-feira, 18 de setembro de 2012

Diálogos

(Publicado originalmente no Filmologia)

Não são poucos os artistas que em determinado momento de suas carreiras terminam meditando sobre os caminhos percorridos através de uma ou outra obra específica, se não assumindo ou parodiando seus clichês, se não escolhendo enterrar a si mesmos num inventário de conquistas, naturalmente usando esse referencial de recorrências para instaurar o início de uma guinada. Il Dialogo de Roma (França, 1983), parece esquadrinhar Marguerite Duras nesses termos, explicitando seus ritmos de criação não como um paradigma fechado, encerrado enquanto processo criativo; também não necessariamente como uma lógica produtiva que não sabe onde vai desembocar, cujo pensamento nasce junto com a escolha dos elementos cinematográficos; mas como um filme em que os quadros parecem desabrochar apenas quando chegam aos olhos do espectador, de modo que a narração só passa a ter sentido – ainda que um sentido aberto e embaraçoso – quando finalmente se transforma em uma terceira experiência. A primeira seria a vivência da história e a segunda, o registro da transmissão dessa história. Duras filma Roma contemplando com especial interesse sua arquitetura e suas sombras, mas o material bruto encarna sua potência enquanto filme, quando diante das imagens capturadas, talvez incerta do filme que fez, está fazendo ou irá fazer, senta ao lado de um rapaz e comenta suas impressões sobre a tessitura narrativa. 

Os longos planos-sequências com silhuetas de uma cidade escura, onde tudo se funde e se mistura, ganham contornos individuais nas falas de um e do outro, no diálogo socrático que arrasta a incerteza da penumbra para formas coletivas. A cidade aparece como uma representação da eternidade, dos vestígios enfileirados de diferentes épocas como um tabuleiro preparado para o anacronismo, tabuleiro que também enquadra as temporalidades da própria ação criativa da diretora, cujos instantes passam por cruzamentos dialéticos. Roma é uma cidade de combinações e contaminações. Novamente somos inundados de corredores, praças, fontes, becos e estátuas que não necessariamente correspondem ao interminável diálogo dos amigos ou amantes; daquelas histórias contadas e não bem localizadas numa precisão mnemônica. Ainda assim, são narradas sem cansaço, pois dentro da prática cotidiana dos romanos, as construções se empilham e se atrapalham, as ruínas assumem distintos marcos históricos, como se cada coluna, cada pedaço de pedra reafirmasse uma presença passada, dessas que não podem apelar à ausência para alcançar o esquecido. No meio de um proto-romance esvaziado, da crise de um casal que observa e comenta a cidade que nos obriga a uma memória; Marguerite Duras, consumida pelo diálogo que lhe transforma, descobre então que apenas no inferno de silêncio, pode, enfim, sintetizar os seus desejos definitivos. 

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Espectros da narração


(Publicado originalmente no Filmologia)

Não podemos confiar em filmes como India Song (França, 1975), de Marguerite Duras, não por algum tipo específico de deslealdade, mas pela ânsia em romper com os pactos narrativos tradicionais que nos confortam, uma necessidade em afirmar que não se pode narrar como antes, cavando e cruzando discursos que desalinham a relação entre imagem e palavra. Duras coloca-se numa dupla posição, construindo sua carreira como cineasta experimental justamente por voltar às preocupações rudimentares da literatura. India Song é inteiramente narrado por vozes em off, vozes em fluxos de consciência que atravessam distintos patamares da linguagem e do tempo, manchando os enquadramentos com seus espectros semicerrados: Benjamin começa seu famoso artigo sobre o narrador, dizendo que "por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de distante e que se distancia ainda mais". Portanto, a mesma voz que remonta experiências passadas diante de uma dança no salão, pode ser da embaixatriz há alguns anos na França ou na Índia; talvez seja resultado de uma observação, num deslocamento sutil para outro cômodo da mansão, de um homem fora de quadro, mas certamente de olhar arguto e desejos lascivos; ou quem sabe, ser um diálogo ácido entre subalternos escondidos, deste ou de outro tempo, que não deixam passar detalhes sórdidos da protagonista deslumbrada. A estrutura das histórias contadas se acumula nas bordas e acompanha a lógica das monções, os ventos sazonais impossíveis de serem previstos que ocorrem especialmente no Oceano Índico; ventos que são como as relações entre relatos do passado e fantasmas do presente. Trata-se de um fenômeno famoso por deixar à deriva os antigos navegantes árabes e portugueses, pois, como Marguerite Duras e seu projeto de narração, os ventos estão sempre enganando a direção por meio de mudanças violentas e repentinas.

O plano de abertura, quatro minutos até o sol abandonar o céu, define o princípio da longa duração como determinante para o filme: a demora prova uma impressão de imagem, cuja potência só pode ser alcançada submetendo-se ao tempo da espera. India Song não apenas retalha a passagem cronológica, tomando a memória como uma matéria esticada em que o tempo imprime suas diferentes formas, mas segue pelos salões de um espaço em decadência, povoado por fantasmas silenciosos submetidos ao impávido destino da narração. As dimensões das vozes são tão amplas que servem inclusive como vozes dos espectadores, o fora de campo enevoa em absoluto a materialidade do visível. Aliás, a mesma camada sonora, com diálogos e efeitos, foi repetida sobre outras imagens em Son nom de Venise dans Calcutta désert – alcançando relatos para além dos testamentos falsos e das experiências inventadas. Duras reforça com India Song seu interesse pelo Oriente, um interesse que mescla suas próprias lembranças infantis na Indochina com a perspectiva ficcional da vida adulta de escritora, misturando com certa ironia ímpetos coloniais e pós-coloniais, remetendo de maneira cruelmente doce à experiência da derrota. Mantém, assim, um estatuto aristocrático / burguês – momento em que o primeiro precisa se amparar no segundo – de modo que o filme se passa na Índia, numa Índia dos brancos, das histórias que ouviram contar, uma obsessão pelos contos partidos ao meio, obviamente não deixando os saltos franceses de lado e sendo inteiramente filmado numa mansão nos arredores de Paris.

Assim como nos filmes de Grillet, India Song carrega seu espelho no meio do cenário principal, mas o espelho dentro do narrar uma impossibilidade única de narrar funciona menos por seu simbolismo e mais como definidor do espaço, pelo impacto óptico inerente a sua materialidade: personagens saem de quadro para entrarem no espelho, saem do espelho para começarem a falar, a câmera não consegue se decidir pela ilusão como escolha ou pela revelação dos artífices da ilusão como escolha. A mulher caminhando entre indiferenças, paixões, amarguras e prazeres, assim como Marguerite Duras, sente-se em dados momentos paralisada, porque imagina e pode imaginar o quanto quiser em quantas narrativas conseguir, que a vida, simplesmente, poderia ser outra. O Ganges, por exemplo, surge sempre na história dos outros, mesmo que contada pela sua boca, surge como um sétimo continente distante, uma fábula desbotada e incansável. Certamente, Duras está mais preocupada em fazer um exercício de linguagem que necessariamente propor uma aproximação afetiva entre espectadores e narrativa, há algo de Brecht nesse sentido, de modo que costurando formas e temporalidades, consegue traçar uma breve arqueologia dos tipos de narração. Há um pouco da desesperança em morar na Índia rememorada e inventada, pois ainda que rodeada de homens “não é nem prazeroso, nem penoso, nem fácil, nem difícil, não é nada”. Os personagens não estão vivos, nem mortos, comportam-se como tivessem sido destituídos de uma existência, como se fossem apenas uma carcaça, um sotaque, um aborrecimento e um olhar.

Mentira e sobrevivência


(Publicado originalmente no Filmologia)

Quando Walter Benjamin escreve, acredito que em um dos ensaios da infância em Berlim, sobre a impossibilidade de recuperar totalmente o passado, em específico o campo do esquecido, defende incisivamente essa natureza própria da memória – largando pedaços pelo caminho, deturpando presenças e colhendo mentiras – como a única forma de compreendermos a saudade. Se fôssemos enumerar, perderíamos os números de quantas vezes contamos um mesmo passado de formas diferentes. Seja pelo transcorrer dos anos que ampliam a distância entre o acontecimento e o presente, obrigando-nos inconscientemente ao malabarismo de acentos e vírgulas; seja pela distorção premeditada, que adapta curvas narrativas aos ouvidos de um e de outro, personalizando sentidos para cada caso, no intuito de tirar vantagens ou enfatizar derrotas. L’Homme qui Ment (França, 1968), além de uma maturidade cinematográfica representada pela simultaneidade de quadros compondo um único enquadramento, firma o encontro de Alain Robbe-Grillet com seus mestres: por meio de um rapaz ambíguo, ora traidor, ora herói, cuja palavra serve para inventar passados sobrepostos e reversíveis, o filme toma como ponto de partida os paradigmas de Proust e Bergson, colocando a memória como uma massa dinâmica, passível a transmutações a cada vez que nos apoderamos dela. Boris Varissa (Jean-Louis Trintignant) sobreviveu à experiência da guerra sob rostos emprestados, volta à pequena aldeia para contar o fim do líder Jean Robin e enquanto o trauma não lhe deixa dormir – acorda sempre surpreso por estar vivo – sua inspiração pela mentira consegue lhe salvar.

A preocupação do autor pela história como um campo de conquista da representação e da narração, transpõe a mais comum linha do quem conta e sobre quem se conta, para focar na forma como se conta e quando se conta, reforçando as maneiras concomitantes e contraditórias de arranjos de passado. Não só isso: finca na película que ao manejarmos sem controle reminiscências através do véu da ficção, estimulamos o desaparecimento das propriedades de ambas as dimensões, de modo que o movimento de voltar sempre, de lembrar sempre é também um movimento de deslocar sempre, como quem troca de lugar um tesouro dentro de um labirinto. Moedas caem e novas moedas entram. Assim, a sensação do espectador diante da instabilidade narrativa de L’Homme qui Ment é semelhante à da leitura de O Processo, de Franz Kafka: quase todos os leitores pensam em desistir no miolo do livro, enquanto o protagonista vaga por corredores intermináveis em busca de uma resposta, afundando mais e mais nos trâmites burocráticos de um caso que sequer entende, não conseguindo lembrar por onde passou e para onde precisa seguir. No entanto, quando insistimos até o fim, percebermos que as digressões arredias da narrativa reverberam como diretriz sensorial, ou seja, precisamos passar pela insuportável incapacidade cognitiva para que nossa experiência estética se aproxime intimamente da experiência diegética do personagem. A identidade de Boris Varissa deixa, enfim, de ser impenetrável, mas o caminho permanece árduo, pois como um “caos de aparência”, para usar o termo de André Parente diante da imagem de Proteu, o Deus grego que podia assumir todas as formas, a figura do rapaz “continua a ser puro interstício, puro possível, uma virtualidade criadora”.

A deambulação no tempo de Boris Varissa, transitando entre a posição de traidor e salvador do líder da resistência Jean Robin, afirmando e negando, dizendo e desdizendo, dialoga diretamente com os traumas nacionais colocados embaixo do tapete por determinadas sociedades. Talvez a mais famosa história nesse sentido seja a de Anja Rosmus, mulher alemã que inspirou o filme A Cidade Sem Passado (Alemanha, 1990), de Michael Verhoeven, que ainda durante a escola começou a pesquisar sobre a sua cidade natal, que oficialmente foi palco de um campo nazista de trabalhos forçados, firmando-se ao longo das décadas como um dos poucos símbolos de resistência ao nazismo dentro da própria Alemanha. No entanto, a garota não conseguiu investigar o bastante para escrever a redação Minha cidade durante o Terceiro Reich, recebeu conselhos da mãe alertando para só falar coisas positivas, produzindo um material raso, afinal sua entrada não havia sido permitida nos arquivos municipais e aparentemente os líderes mais velhos – executivos, políticos, padres e professores – não conseguiam lembrar o período citado. Havia uma espécie de amnésia coletiva e provocada. Já na universidade, cursando História, essa mesma mulher decidiu voltar ao assunto e durante suas pesquisas preliminares, descobriu um jornal local da época da Segunda Guerra Mundial, cujo editorial defendia todos os preceitos de Adolf Hitler. Inesperadamente, ela se deu conta que o texto havia sido escrito por um de seus professores eméritos e, assim, foi novamente aos arquivos, encontrando uma série de barreiras: “primeiro, dizem que os arquivos estão emprestados; depois, que estão velhos e esfarelados demais para serem usados; mais tarde, que o material diz respeito a pessoas que ainda estão vivas, cuja privacidade não pode ser violada”, relata o historiador Robert Rosenstone.

Ao perceber que seu trabalho estava sendo obstruído, Anja Rosmus processou a cidade e ganhou o direito de entrar nos espaços, descobrindo em seguida que os documentos haviam desaparecido. Ela, contudo, não desistiu e aos poucos foi colhendo vestígios que confirmavam suas suspeitas: empreendedores judeus foram denunciados por alguns dos líderes empresariais e eclesiásticos de sua cidade natal, alguns foram mortos, outros viveram em campos de trabalhos forçados e inúmeros foram submetidos a experiências médicas. Toda produção jornalística pós-guerra que colocava o município como um símbolo de resistência havia sido resultado de uma ação coletiva dos moradores para reescrever a história, transformando os algozes ainda vivos numa espécie de heróis fantasmas (ação coletiva semelhante a que possibilita a narrativa de A Vila [EUA, 2004]), de M. Night Shayamalan). Vários chegavam a relatar seus grandes feitos pelos judeus durante o conflito, quando, na verdade, tinham arremessado tijolos nas casas de quem tentava ajudar. Ciente que essa situação não era específica em cidades da Alemanha, na sua autobiografia Robbe-Grillet conta a história dos franceses simpatizantes com o regime nazista, incluindo seus pais, de maneira fria, sem acusar ou defender, de modo que L’Homme qui Ment remete várias vezes aos documentos como provas de identidade: “preciso saber quem você é para saber se você está na lista de suspeitos”. Se a guerra incendeia a brusca relação entre dois grupos humanos em desigualdade de poder, o pós-guerra funciona como o acerto de contas da história, uma vingança, temporariamente arremessando os algozes na parede. Só que Boris Varissa possui documentos falsos e transita pelas duas épocas, saltando de um lado para o outro.

Durante a investida do protagonista sobre a aldeia, contando versões e mais versões sobre os acontecimentos durante a guerra, ele encontra um trio de mulheres que esperam por Jean Robin: são como moiras desfiando linhas passadas, no intuito de interferir, modificar, explicar e costurar as histórias contadas pelo falastrão, tudo de maneira bastante incerta, teatral, com uma associação de imagens espacial e temporalmente disjuntivas. Uma delas brinca de cabra-cega com a confiança de que as outras não lhe deixarão cair ao mesmo tempo em que simboliza um olhar agudo como morte, olhar de quem possui o tear, sabe das mentiras de Varissa e cria uma condição singular, nem crença, nem descrença, refazendo o material fílmico por meio da encenação. Dentre as mil formas de morrer, Jean Robin morre um pouco de todas elas. Sem dúvida, a compulsão pela mentira rompe em definitivo todos os laços entre imagem e verdade, não sabemos ao certo se o casal está se amando ou se matando, não conseguimos diferenciar a brincadeira da briga – como não lembrar Da janela do meu quarto?, de Cao Guimarães – iniciando um jogo em que o protagonista entrega seu companheiro de luta, depois explica como o salvou ou poderia ter salvado, para então assassiná-lo. Se um fantasma de carne não pode resistir ao tempo, certamente sua existência é baseada no ensaio não necessariamente na vivência. Não existem lembranças, Boris Varissa é um ator. Essa é sua profissão.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Imortalidade e inexistência


(Publicado originalmente no Filmologia)

She said, “I know what it’s like to be dead. 
I know what it is to be sad.” 
And she’s making me feel like 
I’ve never been born. 
 Lennon/McCartney – She Said, She Said 
Mesmo escrevendo o roteiro de L’Immortelle pouco antes de Ano Passado em Marienbad, Alain Robbe-Grillet só conseguiu finalizar o projeto dois anos depois de Alain Resnais, usando a experiência concreta do cineasta sobre seu texto para traçar sua própria vereda cinematográfica. Por meio de similares enquadramentos, deslizes laterais de câmera e um programa minimalista de encenação, o escritor-cineasta enfatiza em sua primeira incursão audiovisual não apenas uma proposta que desata os nós do compromisso com o realismo clássico, mas uma narrativa transformada em barafunda através de ruínas de linguagem, descascadas e cuidadosamente colhidas de camadas subterrâneas da realidade psíquica freudiana. Assim como seus companheiros de Rive Gauche, Marguerite Duras, Agnès Varda e Chris Marker, ele escava no campo do empírico dimensões transcendentais, por meio de sua poética da sugestão, nunca definição, costurando delírios e camafeus na manta do visível. Como instantes que perduram, suas imagens, portanto, carregam duplicidades, contradições, são raízes de um estímulo vertiginoso de desorientação, fazendo com que Grillet, em seu fascínio por lugares desconhecidos, invada a história monumental com suas versões alternativas e espaços de subjetividade. Como escreveu Deleuze, o filme não segue “o curso empírico do tempo como sucessão de presentes, nem sua representação indireta como intervalo ou como todo, é sua apresentação direta, seu desdobramento constitutivo em presente que passa e passado que se conserva, a estrita contemporaneidade do presente com o passado que ele será, do passado com o presente que ele foi”. Os personagens perambulam numa cidade inundada de significantes, responsáveis por significados confusos, instáveis; tropeçam em temporalidades, confiando sua existência na palavra, mas palavra não como explicação, palavra como um código de impossível redução. 

Acompanhamos em L’Immortelle o encontro decisivo e breve em Istambul de um homem melancólico, perdido e procurando por informações, com uma sedutora mulher, numa série de passeios pelo campo limítrofe de paradigmas territoriais. Caminham com tempo livre para se apaixonar, entram nas mesquitas, visitam ruínas, declinam passagens e voltam para o ponto inicial. A mulher apenas quer ser desejada e isso é pontuado numa consciência cinematográfica, que toma como princípio de certeza, contraditoriamente, a lógica de que a sedução presume talhos de mistério. "Todo viajante ou residente europeu no Oriente tinha de se proteger de suas influências desestabilizadoras. As excentricidades da vida oriental, com seus calendários esquisitos, suas configurações espaciais exóticas, suas línguas irremediavelmente estranhas, sua moralidade de aparência perversa, eram bastante reduzidos quando apresentados num estilo de prosa normativa", escreve Edward Said. A figura feminina se torna um totem: da brincadeira com a noção de identidade nacional aos seus delineamentos faciais, ela pode ser francesa, turca ou grega; dança com o ventre quase furtando uma cultura inteira; é fantasma, sonho, vinga-se como uma lembrança que insiste em aparecer. O francês lançando seus protagonistas num estado letárgico, ele se apaixona pela imagem dela, imagem que desaparece, não cansa de projetar o que Virginia Woolf comenta na sua conferência Profissão para mulheres: “demorou para morrer. Sua natureza fictícia lhe foi de grande ajuda. É muito mais difícil matar um fantasma que uma realidade”. A disjunção cronológica entre os planos reforça a obsessão do rapaz em reencontrar a mulher que lhe escapa, cujas informações são falsas e cuja materialidade não respeita os trâmites de uma cognição racional. Tal qual a tradicional cena de horror do labirinto de espelhos, nesse caso sob uma trilha sonora concretista, Grillet como um malabarista do tempo e do espaço, utiliza o movimento ou a ausência de movimento para que a passagem de um andarilho em frente à câmera seja um sinal para a transmutação da paisagem. 

 O filme enquanto exercício extremo de descontinuidade narrativa, encerrado entre certezas moribundas e a exacerbação do mistério, mantém as repetições com variações gradativas do Novo Romance, desenhando e redesenhando a mesma imagem, de tal modo que a mulher some aos poucos de uma sequência de fotografias passadas ad nauseam pela mão do rapaz. Grillet alfineta uma percepção histórica convencional: a mesquita X é a mais antiga da cidade, contudo foi destruída e reconstruída depois da guerra; essas esculturas são do período helênico, mas foram produzidas há trinta anos; aqui fica um cemitério dos servos de Constantino, mas as tumbas estão vazias, ninguém está enterrado sob essa terra. O cineasta não cansa de sobrepor tempos coletivos e tempos individuais: “não olhei o relógio. Se tivesse olhado, descobriria que tinha menos de quatro horas para conhecê-la e talvez isso tivesse me desesperado. Como não olhei, escoei pelo presente”. Não adianta olhar os relógios ou passantes que são estátuas, não adianta camuflar desejos obtusos com persianas fechadas, o casal não pode se beijar diante da geometria do corpo inanimado, emoldurado pela câmera rígida, câmera como uma fita métrica, um pouco mais desvairada que a utilizada por Resnais em Marienbad. “Tudo é produto de sua imaginação”, ela avisa. Grillet parece testar o próprio campo do inteligível, cruzando peregrinos, cabarés e recalques, observando jovens que se desnudam sob qualquer pretexto, mulheres sequestradas, amarradas, flageladas, num jogo sadista e erótico não efetivado pelo protagonista impotente. O filme termina, ela morre, ele morre, ninguém morre, ela continua viva na cabeça dele, porque a imortalidade só pode estar contida em alguém que, decerto, nunca existiu.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Jornalista

ou como se desesperar pelo novo sem conseguir lembrar de absolutamente nada.