Clube dos Cinco (EUA, 1985) não fez parte da minha infância, aliás, e aviso logo aos vigilantes-da-cabeça-pensante que nem adianta, não tenho vergonha alguma disso, descobri o filme apenas no final da década de 1990, talvez início dos anos 2000, no episódio Detenção da primeira temporada de Dawson’s Creek em que o protagonista e seus amigos, assim como no clássico da Sessão da Tarde, passam um sábado inteiro de castigo no colégio por alguma infração cometida durante a semana. Não demora muito para o seriado assinalar sua homenagem, evocando uma cinefilia boba, baseada no consumo de VHS, nos programas noturnos de televisão, pelas sessões com os amigos e por uma curiosidade mórbida por famosos e pelos bastidores. Os jovens logo trocam algumas palavras sobre a produção de Hughes, dando corpo ao imaginário norte-americano pelo qual é responsável, inicialmente resumindo a sinopse em menos de 140 caracteres para então se debruçarem com especial interesse sobre os atores, discorrendo sobre como foram parar nas pontas dos piores filmes, como perderam o ar de ingenuidade, como uma doença estranha abateu um deles, como envelheceram, envelheceram até simplesmente sumirem das telas e serem esquecidos.
Não lembro se foi lá ou em alguma das milhares outras referências que a obra já recebeu, que escutei pela primeira vez o boato que existe uma versão de quase três horas, inicialmente cortada a pedido dos produtores, corte mantido pela sanidade do diretor, que cresceu solitário numa vizinhança de velhos e garotas, ficando posteriormente conhecido pelo seu singular apreço por revelar cenas adicionais durante ou após os créditos de seus filmes. Boato ou não, o que importa é que há uma dinâmica em Clube dos Cinco que condiz com a vontade desesperada de ser jovem, de se desviar das amarras que a vida adulta impõe e transgredir as normas através de pequenos truques, fórmula até bastante repetida em outros filmes da época: não há bem uma introdução longa e arrastada onde nada acontece, do pífio prólogo corremos para o “ponto que importa”, somos rapidamente apresentados ao jogo e jogadores, até porque tanto na produção de Hughes quanto no seriado, não mostrar o “antes”, o “motivo de estarem ali” é determinante para narrativa. Ao longo da trama, os eventos são entrecortados por videoclipes, que demarcam a temporalidade da fuga do tédio ou do conformismo, por meio de conversas, corridas, jogos, fumos, xingamentos, danças, ou como diria o locutor das propagandas: “aprontando mil e uma confusões”.
A questão é que na impossibilidade de passarem o resto da vida interpretando adolescentes panacas ou jovens adultos panacas, os atores dos papéis que aprenderam a fazer como os papéis de suas vidas foram renegados pelas produções juvenis da década seguinte, terminaram subjugados pelo singular ethos púbere que faz do envelhecimento, descarte; notaram que a adolescência não dura três horas, apenas uma e meia. Não é apenas irônico como tremendamente cruel, se levarmos em conta que uma considerável leva dos filmes que estamos trabalhando nesse especial do Filmologia sobre a infância tratam, de uma forma ou de outra, desse medo de crescer, dessa sensação dissimulada que nos pressiona em diferentes estágios da juventude, fazendo inclusive com que os mesmos atores de vinte e poucos anos passassem a década de 1980 inteira alternando entre estudantes secundaristas e recém-formados arrastados para a vida adulta. No mesmo ano de Clube dos Cinco, Emílio Estevez, Ally Sheedy e Judd Nelson, pertencentes ao Brat Pack – expressão usada para designar os atores que trabalhavam juntos em inúmeros filmes de mesma temática – estiveram em O Primeiro Ano do Resto de Nossas Vidas, de Joel Schumacher, que registra a insegurança e melancolia de um grupo diante do impasse do amadurecer, cujos integrantes não lembram “quem conheceu quem primeiro, ou quem se apaixonou por quem primeiro”, só lembram dos sete sempre juntos.
Aliás, a expressão é uma variação de Rat Pack, que se refere aos atores da década de 1950 liderados por Frank Sinatra, e, a partir de 2005, mesmo contra a vontade dos próprios, surgiu o Frat Pack para as produções que envolviam os comediantes Ben Stiller, Jack Black, Will Ferrell e os irmãos Wilson. No entanto, no caso do grupo que estamos tratando, para além de ficarem trocando papéis, o garoto-esporte que vira o baderneiro, o baderneiro que vira o yuppie, a estranha que vira a patricinha, a patricinha que vira a drogadita, o nerd virgem que continua nerd virgem, o que está em jogo são os arquétipos utilizados, pois há um claro investimento no esquematismo simples e universal para afetar uma rede mais ampla de matrizes espectatoriais. A interação entre as personagens em Clube dos Cinco começa pelo baderneiro, que só consegue se comunicar pelo insulto, lembrando aqueles velhos repetentes da sétima série: maiores, mais fortes, estavam sempre contando vantagens, se gabando “de serem os únicos que tinham usado uma camisinha pra valer”. Hughes propõe que essa atitude não passa de vontade de cumplicidade e autodefesa num universo hostil.
A frase de Bowie (retirada da música Changes) que serve de epílogo simboliza bem um contexto que avança dos atores para as personagens e daí para os espectadores: “E as crianças em que vocês cospem enquanto elas tentam mudar seus mundos são imunes aos seus conselhos. Elas sabem muito bem por aquilo que atravessam”. Decerto, é notável a quantidade de filmes produzidos durante os anos 1980 que consideram a adolescência não apenas como uma fase da vida, mas como um conceito que transforma as dificuldades próprias do período, os lances de aventura e os arremates de felicidade não num estágio efêmero, mas numa condição utópica de existência. A imagem mundializada da High School, que no caso de Clube dos Cinco é determinante desde os cortes iniciais onde todo espaço é passado a limpo por uma concatenação de planos abertos e planos detalhes, revela um campo nostálgico e cruel, uma pichação “I don’t like mondays”, onde é reafirmada, menos enquanto perspectiva coletiva ou mesmo abertamente política, uma conjunção de lapsos libertários mínimos, provocados pelo e para o jovem como consumidor potencial (cuja trajetória cinematográfica se inicia duas década antes). Mesmo a ideia de detenção sendo absurda para nós que somos punidos com suspensão (ou seja, ao invés de mais tempo no colégio, passamos alguns dias afastados dele), o filme imprime seu impacto pela presença de cinco protagonistas simultâneos, que nos atingem em diferentes pontos de nossas idiossincrasias.
Se existe uma preocupação maior em Clube dos Cinco, que quase se chamou Library Revolution, ela reside na relação entre adolescentes e autoridades, na ânsia de desafiar as autorizações, numa lógica em que diante do suposto dever de ficar na biblioteca até o final da tarde, escrevendo uma redação de mil palavras sobre eles mesmos, sem poder falar, se mexer ou dormir, os jovens, que inicialmente se odeiam, sentem-se estimulados a não apenas compartilharem seus segredos, mas unirem suas diferenças numa sucessiva brincadeira de lutar contra a opressão. É essencial pensar nesse deslocamento contextual de cinco desconhecidos que todos os dias ocupam e vivem de maneiras absolutamente desconexas o mesmo espaço, colocando-os numa redoma isolada acrescida de alteridade, dando as ferramentas para que com o tempo compartilhem suas infrações e outros segredos. Há nessa troca não apenas um sentimento de libertação, mas, como boa parte dos filmes em foco, uma dúvida entre a vontade, negação e umas três doses de ranço yuppie em relação a um mercado de bens simbólicos, quase como se estivessem aprendendo a negociar suas particularidades, suas diferenças, em troca de compreensão.
Clube dos Cinco é antes de tudo um filme de confissão, todos se confessam, Hughes parece apostar um pouco no que o narrador de Singularidade de uma Rapariga Loura, de Manoel de Oliveira nos fala no início da película: “o que não se conta a um amigo, conta-se a um estranho”. E aí merece o retorno ao episódio de Dawson’s: diferente do filme, todos os presentes são amigos, exceto por uma personagem, Hebe, e é justamente sua presença que desencadeia as farpas responsáveis por abrir os olhos uns dos outros, apontando sarcasticamente como a intimidade entre eles havia se tornado uma instância de cegueira e conformação. Acontece que é justamente esse olhar exterior, não viciado, que adentra o espaço do outro com mais perspicácia, até mesmo mais violência, do que aqueles que já residem ali. O que há de mais vigoroso em Clube dos Cinco é que ao mesmo tempo que todas as personagens se agridem por suas diferenças é também por essas diferenças que despertam curiosidade umas nas outras. Temem o futuro, não apenas um medo de saírem da adolescência, mas especialmente por tomarem o mundo adulto como o mundo de seus pais: “vamos ser como eles” / “nunca” / “é inevitável”. Também temem o encontro deles fora da redoma de um sábado de castigo.
Termina o filme, cada um segue o seu caminho, e, mesmo sabendo que todos serão esquecidos menos de uma década depois, que provavelmente se tornarão iguais aos seus pais, resta confabular: como devem ter sido os olhares na segunda-feira?
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