Ao lado de Colheita Maldita, A Fortaleza (Austrália, 1986) foi responsável por alguns dos momentos mais angustiantes da minha – e não exclusivamente da minha – infância, exercendo sua função precisa na composição diária de pesadelos, especialmente porque ambos, cada qual ao seu modo, deslocam a ingenuidade das crianças para um campo sombrio, não enquanto medo do desconhecido ou da perda, não apenas como ameaça ao universo pueril que se mantém acuado como fonte de esperança, mas no sentido de pensar esse próprio universo como produtor de maldade ou vingança. Foi a partir destas duas produções – junto a Anjo Malvado, talvez – que me dei conta que as crianças não estavam tão isoladas da crueldade do mundo dos homens, que também éramos capazes de matar, tecer nossa própria coletânea disjuntiva de códigos e normas, que nosso egoísmo ou crueldade poderia gerar impactos forçosos e, por algum tempo, temi a descoberta dessa espécie de poder em minhas mãos (algo que se aprofundaria durante a leitura de O Senhor das Moscas, escrito por William Golding, que mostra como uma sociedade de crianças é capaz de produzir ritos e crenças particulares, numa reinvenção moral que se afasta absolutamente do que aprendemos como processo civilizatório). A sinopse de A Fortaleza é bem simples: imaginem a novela Carrossel, só que ao invés do lenga-lenga habitual entre Cirilo e Maria Joaquina, imaginem a professora Helena e a turma de alunos em idades diferentes sendo sequestrados por quatro homens armados com escopetas, cada qual usando sua respectiva máscara de animação de festinhas de aniversário: papai noel, gato, rato e pato. A maneira como surgem sorrateiros no pátio da escola, o tratamento cuidadosamente opressor com suas vítimas, a professora diz “crianças, vamos cantar” e papai noel bota a arma na cara dela gritando “cala boca” (e o tempo todo eles mandam ela calar a boca), de maneira que tudo aparece cercado de uma eloquente agressividade associada a impossibilidade de fuga – sentimento reforçado pelos olhares por orifícios mínimos em busca de espaços livres, seja através de um buraco no chão do furgão, seja por meio de uma fresta na caverna.
No caminho para o cativeiro, o roteiro revela logo o tom acima do habitual para o Cinema em Casa (que tradicionalmente já tinha uma tolerância maior em relação à Sessão da Tarde): os sequestradores sugerem que vão estuprar a professora, depois comentam que tem uma aluna “já crescida que daria uma boa diversão”, ameaçam matar o menor e mais fofo dos meninos se outro que havia fugido não voltasse ao furgão. A violência é sugerida em camadas sobrepostas, trabalhando essencialmente em cima do instinto de sobrevivência como necessidade primordial do homem, testando nossa flexibilidade moral, quase como se o diretor Arch Nicholson procurasse esboçar uma situação-limite em que crianças boas por natureza, após serem submetidas a uma experiência traumática, apreendem razões comportamentais que os levam a agir tal qual – ou até pior que – seus algozes. Não por acaso uma das taglines de A Fortaleza é “for one teacher and nine children, the lesson of the day is kill or be killed”, ressaltando o ímpeto de que somos capazes de qualquer atitude diante de uma ameaça iminente (todos os filmes-catástrofe trabalham com isso, mas lembro particularmente da cena de A Guerra dos Mundos em que o protagonista, para proteger sua filha, assassina um homem enlouquecido que havia perdido toda família). No caso da produção australiana, do momento em que os jovens conseguem produzir fogo até a cena em que precisam atravessar um lago por uma passagem subterrânea, quando uma das alunas se desespera, agarra no pescoço da professora e quase as duas se afogam, o fio condutor se apóia numa vontade tão intensa de viver, sobreviver, que revela todo desespero que nos acomete diante do semblante do fim. No momento em que os jovens conseguem escapar temporariamente, o filme saca um falso ponto de virada ao chegarem numa residência, onde logo percebem a presença dos mascarados: mais uma vez, a violência determina o caminho narrativo; antes de deixarem o local, o Papai Noel simplesmente executa o velhinho dono da residência na frente dos infantes, a bala atravessa o corpo e estoura um aquário enorme ao fundo. Nessa época, eu nem sabia o que era Haneke.
No entanto, o maior significante de violência do filme está num detalhe cenográfico associado a uma preocupação formal dos enquadramentos: praticamente passamos os 85 minutos sem ver o rosto dos sequestradores, mesmo quando eles retiram as máscaras na parte final, a câmera os filma de costas, evita a face diretamente, distancia-se, despertando o incômodo de que caso desapareçam, poderão cometer novos crimes e nunca serem reconhecidos, um terror que coloca os jovens no dilema de precisarem resolver esse embate, pois assim como em De olhos bem Fechados ou da própria história real ocorrida em 1972 e repetida em 1977, eles entendem as desvantagens de não usarem máscaras quando estão sob o domínio de mascarados. Preenchidos pela lição de matar ou morrer, as crianças se rebelam, comportam-se como caçadores / guerreiros tribais, resgatando por meio dos ancestrais que habitaram o espaço neolítico da caverna, um primitivo instinto de sobrevivência. Mostram-se preparados para medidas extremas e tenho de concordar que o filme possui – mais uma vez junto a Anjo Malvado, por razões diferentes – o fim mais chocante de todas as produções sobre o qual escrevemos por aqui: depois de montarem dezenas de armadilhas, finalmente há o confronto entre o seqüestrador chefe, o Papai Noel, e os sequestrados, mas quando a luta se inicia, a sequência é interrompida. O corte nos leva ao pátio da escola, onde a professora lê uma fábula para as crianças, mas logo chegam dois policiais, o clima fica tenso, um travelling passeia pelos temíveis rostos angelicais dos pequenos, a professora é então interrogada na sala de aula. Encontraram o último corpo, mas o legista apontou anomalias, determinados ferimentos não condiziam com os depoimentos dados, pois não poderiam ter sido feitos por animais, “o corpo parece ter sido mutilado”. Corta para dentro da caverna, professora e alunos enfiam dezenas de lanças no corpo do sequestrador, jogam pedras, pintam seus próprios rostos com o sangue de sua vítima também ensangüentada. Volta para a sala, as crianças se aproximam, pegam suas lanças, os policias sentem o clima e resolvem ir embora. O filme termina, depois de um dos garotos pregar uma peça usando a máscara do Papai Noel, com a professora liberando mais cedo, a câmera foca em alguns bichos em formol, numa das garrafas há algo semelhante a um coração humano – “nós também temos um troféu” – e em meio aquele nó na garganta, aprendemos um novo significado para “a moral da história”.
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