quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Para não esquecer a barbárie

"Dor é uma sensação desagradável que varia do desconforto leve ao sofrimento escrutinante, geralmente associada a um processo destrutivo atual ou potencial dos tecidos e que se expressa através de uma reação orgânica e/ou emocional".
Algum dicionário velho
Se fosse possível traçar um brevíssimo inventário de objetos, produzidos ao longo da história da humanidade, que carregassem consigo uma matriz da dor e da opressão de algumas classes sobre outras ou do próprio homem sobre a natureza, de preferência traduzindo essa intenção em formas tipográficas, o resultado seria próximo dos recentes trabalhos do artista plástico José Paulo, reunidos na exposição Para nunca mais me esquecer. Logo no primeiro salão, nos deparamos com com uma série de cinco quadros pequeninos, pintados em preto e branco, com uma faca cravada em figuras dúbias, geralmente associadas ao desenvolvimento da educação no país, como livros e carteiras. No entanto, para além de um debate sobre a censura que se insere cada vez mais democraticamente dentro do seio da sociedade, o interesse do recifense, ao lançar facas também sobre poltronas e colchões, aponta para uma representação da domesticação de indivíduos sobre indivíduos através de relações de poder bastante pontuais, por vezes, subterrâneas, tais quais as entrelaçadas entre os professores e seus alunos, os psicólogos e seus pacientes, os profetas e seus fanáticos ou os/as cafajestes e suas/seus amantes. A ideia de barbárie que está em jogo, não é apenas a da ordem etnocêntrica que julga o Outro como selvagem por desconhecer e não compactuar com seus valores culturais, mas também da palavra enquanto símbolo e sinônimo enraizado durante o Século XX para traduzir uma era onde os desejos foram suplantados pela violência ou que os sonhos tiveram de se desviar a todo momento da tirania.

O primeiro ambiente da exposição é completado por duas esculturas que digladiam a atenção de um visitante distraído e que, mesmo bastante dedicado cognitivamente, resiste a entrar no labirinto semântico das proposições poéticas. Na primeira delas, um grande letreiro composto de duzentas peças reproduz em cerâmica, a partir dos moldes tipográficos utilizados em cordéis, a definição de "dor", retirada de algum dicionário desatualizado e usada como epígrafe deste texto. A força embutida no conceito repousa justamente na abertura de sentido que ele carrega, podendo ser aplicado a diferentes gradações entre o universo material e imaterial. A segunda obra, a que deu origem ao projeto, é uma construção caótica, baseada na imponência de 26 (ou seriam 28?) “ferros de marcar boi” entulhados uns sobre os outros, conjurando uma espécie de alfabeto doloroso a partir das letras entalhadas nas extremidades. A obra remete ao paradoxo de estarmos inseridos, enquanto sujeito e enquanto objeto, num processo civilizatório em que inúmeros preceitos da realidade foram e são instaurados a partir da barbárie: seja ela explícita, pele queimando, seja ela emocional, pele sofrendo. Para José Paulo, “o ser humano marca um animal através do queimar ou mesmo mutila outro ser humano, afetando irreversivelmente sua memória celular, energética e social. Acredito que isso repercute naquele momento e a partir daquele momento, atravessando décadas e gerando traumas em diferentes gerações”.

Como bem lembrou Derek Walcott, Prêmio Nobel de Literatura e autor do poema épico "Omeros", em debate recente na Fliporto, “nosso maior legado colonial é o idioma, nós nos expressamos todos os dias através de um código cuja marca histórica é a dor”. Ele usou esse argumento para justificar a maneira como sua obra discute a própria presença da língua na sociedade, defendendo o uso de expressões e gírias que se desviam da norma culta, estabelecendo pontes com dialetos, afinal como já dizia Manuel Bandeira, "a vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros / vinha da boca do povo, na língua errada do povo / língua certa do povo". Para José Paulo, sua exposição "trata dos caminhos que a humanidade pode escolher, como alguns são impostos por meio de sofrimento e como ainda assim nos resta algum livre-arbítrio. Meu objetivo é brincar com o limítrofe da escolha entre essas possibilidades”. Para tanto, o artista, que sempre teve um apreço pelo jogo que envolve as escalas e as dimensões do que procura representar (ou reapresentar), produziu carimbos siameses gigantes, objetos únicos que dão continuidade ao seu projeto “repetir, repetir, repetir”, que trazem em suas extremidades, num jogo de conteúdo e forma, conceitos opostos como “approved” e “denied”; “positivo” e “negativo”; “nunca” e “sempre” ou “original e có­pia”. É uma pena que carregam o ranço do não manuseamento dos museus, afinal carimbos são feitos para carimbar, no caso carimbar as paredes e, numa perspectiva um tanto Lygia Clark, tais artefatos atingiriam sua magnitude através do toque que transforma aquilo que é, que está sendo, numa reminiscência do que foi.

A exposição basicamente é toda constituída por materiais comuns ao nosso repertório ancestral, como madeira, ferro, barro e papel, e em duas das obras, o recifense resgatou uma espécie de memória de objetos extintos, como máquinas de escrever ou os próprios carimbos, tornando-os instrumentos de reativação temporal de procedimentos. Aproxima, assim, os simples e aparentemente neutros caracteres - produtores de uma carga simbólica - aos contextos sociopolíticos ditatoriais da década de 1970. Por fim, encerrando o debate sobre determinadas culturas que impõem regras e valores sobre outras, seja num âmbito macro como nas guerras, seja num ambiente micro dentro de uma residência, José Paulo comenta que ao ver a foto da menina afegã Aisha, que teve o nariz e as orelhas mutiladas pelo marido e se tornou capa da “Revista Time”, sentiu um terror imenso. Como para conseguir resolver essa questão dentro de si e meio que lançar essa violência para outro campo, desenhou três retratos de, segundo Umberto Eco, "seres feitos para amar e serem amados", símbolos de beleza da cul­tura ocidental - Brigit­te Bardot, Grace Kel­ly e Elizabeth Taylor - no auge de suas juventudes e removeu seus narizes. “Estamos vivendo numa lógica da imagem de mídia, você olha para algo bastante chocante, mas no outro dia esquece e já procura a próxima aberração. Procurei, então, me apropriar de ícones que definiram o que é beleza no nosso imaginário para potencializar o impacto”.

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