“Leaning, leaning, safe and secure from all alarms,Leaning, leaning, leaning on the everlasting arms,Oh, how sweet to walk in this pilgrim way,leaning on the everlasting arms,Oh, how bright the path grows from day to day,leaning on the everlasting arms,What have I to dread, what have I to fear,leaning on the everlasting arms,I have blessed peace with my Lord so near,leaning on the everlasting arms”
Nos inexatos minutos que antecedem o final da infância, quando cada ato carrega sua finitude em potência e as desventuras corriqueiras aparentam uma discreta melancolia, todas as crianças são obrigadas a lidar com o peso das mudanças, marcando seus sorrisos pueris com um gradual amargor. Querem (e não querem) crescer, não sabem ao certo o que estão para ganhar e o que estão para perder, rompem só de birra as fronteiras instituídas por seus tutores – sem, no entanto, irem muito longe, afinal seus olhos já vislumbram a alteração do mal de aspecto ’sobrehumano’ por um demasiadamente ‘humano’. Habitam, como bons filhos da classe média, uma redoma segura, atravessada por alguns traumas, claro, mas cujos portões reluzem uma curiosidade mística ao separarem e demarcarem quem são eles de quem são os outros. Basta, então, um poderoso ruído ou uma presença estranha, o namorado manco de alguma vizinha, um tio desconhecido de nariz enorme, o atropelamento de um cachorro ou o linchamento de um ladrão para que os vultos da noite ganhem materialidade não enquanto olhar distante, apaziguado e borrado por uma grade, mas enquanto olhar saído do sugo de seus próprios cotidianos. Rapidamente veem em frangalhos a invisível harmonia firmada entre uma coragem fictícia e o seus imaginários de proteção, o ‘lá fora’ e o ‘aqui dentro’ se tornam espaços indiscerníveis, fantasias de resistência, bicicletas e bonecos são relegados ao desuso, deixando o caminho livre para o diabo entrar.
Diante do inevitável, aceitam que é preciso separar uma caixinha com todas as certezas infantis e deixá-la sozinha embaixo do guarda-roupa, abrindo-a sistematicamente a cada dois ou três anos, como um lamento por constatarem a diminuta dimensão de suas existências em relação ao mundo preenchido por um tempo que não para de passar. Antes, tudo era etéreo. Como diz um melancólico Cascão em uma das tirinhas de Maurício de Souza, “envelhecer é aprender a se despedir das coisas” ou como comentou Ziraldo, remetendo ao seu clássico da literatura infantil, O Menino Maluquinho, na passagem de página onde está escrito que “o menino maluquinho não conseguiu segurar o tempo! E aí o tempo passou. E, como todo mundo, o menino maluquinho cresceu” é o momento em que mais adultos desabam e choram. Pois bem, parece que é justamente nessa transição de ciclos, onde crianças de um mundo isolado lidam com o horror de um mundo expandido, instante em que os medos – de perder a mãe, de ser abandonado, de ser esquecido, de não ser amado – parecem ganhar forma física, que O Mensageiro do Diabo arma sua premissa: na primeira cena, garotos brincam de esconde-esconde, um deles, após contar até cem, procura seus colegas escondidos, mas termina encontrando o corpo de uma mulher morta nas escadas do porão. Sabemos o tom do único filme dirigido por Charles Laughton: crianças encontram a morte e são obrigadas a crescer.
Aliás, se existe uma lenda reproduzida sem pudor no sistema cinematográfico, dessas que adoramos contar, é a de que a gênese do medo em um bom filme de horror, ou que beire o horror sem perder o estranhamento, reside, sobretudo, na presença de uma criança: seja quando ela encarna o próprio mal, gerando um oxímoro que envolve em um único corpo inocência e perversidade, seja quando representa apenas a ingenuidade diante de um mundo terrivelmente voraz, seja quando ela assume o papel do espectador pronto a se impressionar. O Mensageiro do Diabo segue simultaneamente pelos três caminhos. No primeiro caso, claro que o diretor não deixa de lado a crueldade ímpar da infância, marcada pela cena em que vários garotos zombam dos dois irmãos que perderam o pai na forca, no entanto, não temos bem uma criança, mas um falso profeta que se apresenta como cordeiro para ludibriar o seu aspecto de lobo. Trata-se de um golpista que se passa por pastor para seduzir, roubar e matar jovens viúvas, mas cujo incontestável horror surge da religião fundada na heterodoxa relação combinada particularmente entre ele e Deus. Na lógica de Harry Powell não temos como saber em qual casulo reside o maior perigo: se no amor que o carrasco promete à mãe de Pearl e John ou se no ódio conservador que carrega de antemão. Os dedos do vilão são repetidamente colocados em destaque, a palavra ‘amor’ em primeiro plano surge sob os auspícios da palavra ‘ódio’, tornando ainda mais robusta a dualidade do mal que se apresenta como humano (e menos como sobrehumano).
No segundo caso, temos as crianças como marcas da ingenuidade e pureza sendo assoladas pela chegada desse estranho, sua aproximação com a mãe e o rápido casório. Se toda narrativa se baseia na iminência e confirmação da tragédia, na insuficiência da autodefesa, O Mensageiro do Diabo joga bem com o princípio do cinema como janela, do cinema como tela de projeções dos espectadores (transformados em espectadores-crianças), não no intuito de agradar ou revelar, mas de gerar angústia. Passamos o filme todo esperando pelo pior, basta uma nota de dólar recortada voar da boneca de Pearl para os pés do pastor para sentirmos arrepios, o diretor acentua o contraste através da atmosfera funesta entrecortada pela recorrente imagem de crianças dormindo, olhos fechados em corpos espremidos. Não há melhor representação da fragilidade. Depois de abandonarem a fita branca no sentido que Michael Haneke aplica em seu filme mais recente, John and Pearl fogem por entre os perigos da noite, numa dimensão-limbo meio real e meio onírica, através do rio cercado de árvores com aranhas e sapos. Laughton faz da busca por um refúgio, uma travessia de quem encara o mundo pela primeira vez, um amadurecimento precipitado pela ausência materna, o momento em que os infantes da rua e somente da sua rua abrem os portões e vão além. Acolhidos por uma senhora, John se mostra como um bicho arisco, desses que de tão amáveis levaram inúmeras pancadas até se tornarem amargos e pessimistas. Quando ela consegue conquistar sua confiança, a infância – ou a segurança que ela representa – parece estranhamente retornar.
Há uma obsessão relacional na construção bloco a bloco de O Mensageiro do Diabo, que vai da técnica básica de enquadramento às fagulhas insurgentes de psicanálise, não dotando a película de um aspecto de aprendizado cinematográfico, tudo é evidente e vigoroso, claro, mas o roteiro preza por uma moral desviante, de modo que cada recurso clássico parece surgir como seu igual invertido. Daí temos as cenas irmãs da reação de John diante da prisão do pai no início e do carrasco Powell ao final, tal qual os numerosos planos baseados no princípio de choque: a mulher casamenteira convence a mãe de John a arrumar um marido, na sequência o trem onde está Powell esbraveja e anuncia; o pastor ajeita cuidadosamente a gravata do menino, na sequência o garoto é enquadrado sem cabeça; o vilão exclama sobre a mulher que acabou de matar – “ninguém pode dizer que não fiz de tudo para salvá-la” -, logo em seguida surge um dos planos mais belos do filme, ela embaixo do rio, amarrada ao carro, fantasmagoria entre cabelos e algas. Nessa fase de transição, onde não são mais crianças nem outra coisa, onde o mundo mágico e real parecem travar um constante duelo, Powell, Robert Mitchum, com a inclinação lânguida de seu corpo, um cinismo frio, o tom de voz hipnótico, sedutor e o semblante do olhar de ressaca, encarna muito bem esse mal que se divide na dualidade entre ser humano e sobrehumano. Nos inexatos minutos que antecedem o final da infância, a única forma das crianças resistirem é prorrogando um pouco mais o tempo.
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