sexta-feira, 29 de agosto de 2003

Pomo de Adão

Ninguém notaria qualquer mudança naquele bairro décadas antes ou depois da passagem de qualquer forasteiro. À noite, então, notaria menos ainda. O caso é que não haviam muitas testemunhas de recordação ou artistas representativos, eram raros os que se arriscavam a um passeio seguro e decadente entre as paredes de tijolos caídos, cachorros magros, indigentes, baratas e putas bêbadas com mais de cinquenta. Toda lembrança passava de cabeça para cabeça e justamente por se sentir atraído pela negação das generalidades, nosso jovem rapaz - belo rapaz para as bichas travestidas - resolvera sentar no chão, talvez bêbado, talvez não, se encostando a um poste cuja lâmpada velha falhava a cada dois minutos cronometrados. Seus cabelos eram tão curtos quanto os dos soldados recém recrutados para a Guerra, se um segundo andarilho se aproximasse na penumbra, notaria em primeiro lugar os brilhantes olhos vermelhos, olhos inumanos, comuns aos jovens abandonados pelos amores que fugiam daquela região. No entanto, tratava-se de olhos de quem não era dali, não daquela rua, nem daquele lugar, até mesmo do país, olhos de assassino, olhos de gato, um sorriso discreto de solidão. Acostumado a também não respeitar coisa alguma, o rapaz não durou muito sentado, olhou com certo rancor para toda decrepitude a sua volta na desesperança de encontrar um de seus convivas: tinha se dado conta dos sinais, sinais não semióticos, da forte tempestade que vinha acometendo todo aquele vilarejo nos últimos dias. Pegou sua jaqueta da moda, acendeu um cigarro de rolo barato e inundado de filáucia entrou no beco escuro onde garotos se passavam por homens.

Pietro era um daqueles típicos personagens de filme de espião, sem o glamour das armas, carros e mulheres de um 007, talvez estivesse mais para um pastiche da madrugada, capengando como um trôpego de Bukowski sem talento algum para proteger a rainha: estava ali só para matar um comunista, um desses intelectuais chatos que reclamam de tudo, adoram a miséria e gostam de escrever poesia. Mesmo com passos milimetricamente coordenados e curtos, não demorou muito para que estivesse em pé, ainda com seu cigarro, em frente ao bar boêmio célebre por suas reuniões subversivas. O lugar, contudo, estava vazio, tudo um pouco revirado, mesas, cadeiras, cacos de vidro por todos os lados, algumas paredes marcavam os quadros roubados, apenas um espelho se mantinha intacto. Uma mulher sentada com a perna quebrada não parava de gritar adensando a insalubridade da região: só não conseguia entender porque teria sido contratado para matar alguém numa bodega que iminentemente seria destruída. Pretendia tomar até duas cervejas antes do serviço. Não seria daquela vez. Parado, não se olhando no espelho, contemplando a dor da mulher machucada, relevando que ao menos já estava com metade do dinheiro, escutou um barulho nas suas costas, levou um susto por não estar acostumado a ser surpreendido. Virou devagar, quase em reconhecimento, e se deparou com um garoto sentado no chão, murmurando algum dialeto, encostado em um poste com um isqueiro em suas mãos em permanente faísca. Pietro reconheceu instantaneamente a sua vítima. Colocou a mão na arma guardada na calça, decidiu pelo pescoço e hesitou: não por matar de forma desleal sem dar possibilidade de defesa, não por sequer dar a entender que estava atacando. Isso era inteiramente comum no antro dos caçadores. Não o faria pelo arranjo arbitrário das pernas na calçada que lhe deu uma estranha vontade de comer mostarda. Pietro nunca mataria alguém que sentasse de forma idêntica a sua. Não sem primeiro fazer um ritual.

Terminou colocando as mãos dentro da jaqueta, se aproximou e ofereceu um cigarro. A voz de Pietro não fez o outro rapaz, Fabrício era o nome que tinham lhe dito, esboçar uma mínima reação. Insistiu. Fabrício pegou cigarro e o acendeu com seu próprio isqueiro. Pietro sentou ao seu lado e os dois ficaram sem dizer uma única palavra. A fina chuva tornava-se mais forte todavia nenhum dos dois pareciam se preocupar: olhos vermelhos diante de olhos vermelhos saberiam sempre se reconhecer. Foi pelo silêncio que começaram a se respeitar. Ficaram olhando o raro movimento das ruas: alguns carros de senhores bem vestidos contratando putas, dois imigrantes gritando ao longe alguma língua deplorável, a mulher de perna quebrada perdendo a voz de tanto gritar. Fabrício se levantou, foi até as ruínas do bar, Pietro hesitou novamente, relaxando em seguida ao ver o rapaz voltar com duas garrafas de vinho abertas. Não sabiam bem como tinham sido contaminados, conversavam sobre o passado, ambos desconheciam o momento da transição. Fabrício era o que Pietro considerava intelectual de esquerda, aquele que quis se reprimir individualmente para tentar viver coletivamente e Pietro era para Fabrício um rebelde sem causa, sem rumo, não se apegava a ideologia de época alguma, um matador de terceira que trocava qualquer coisa por sangue de suas vítimas. No final das contas, nem sentavam de maneira tão parecidas assim. Terminaram os vinhos, se levantaram, cumprimentaram-se pelos olhos e seguiram caminhos opostos. Pietro não completou dois de seus milimétricos passos, virou e atirou três vezes. Ainda que vampiro, não deixaria aquele pomo de adão escapar.

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