sexta-feira, 5 de julho de 2013

Sobre detalhes e elipses

"Nenhuma felicidade é definitiva.
Talvez nenhuma memória o seja"

Fernando, terminei de ler seu livro há duas semanas e na impossibilidade de escrever uma crítica literária com todos os critérios bem delimitados, esboço essa carta como um desvio, pois se os livros são queridos e por isso escrevemos nossas críticas, livros de amigos são mais queridos e, acredite, só podem ser respondidos (anacronicamente?) com uma carta. Quando tomei Um Detalhe em H em minhas mãos, de imediato bateu a vontade de escrever alguma coisa sobre ele, não qualquer coisa, e enquanto não conseguia responder a vontade com palavras, acumulava toda dificuldade de grafar a obra de um amigo, dificuldade acentuada pela doce introdução de Lourival. Por mais redundante que possa soar diante do título, você descortina página a página uma poética do detalhe, costurando conexões distintas entre a dimensão do instante e a dimensão da potência, muitas vezes engendrando, com secura ou afeto, a constituição e a transfiguração do que aprendemos a chamar de memória. Entendo o percurso de todos os autores que já contribuíram para essa jornada inesgotável em busca do passado, mas confesso que diante do detalhe, minha identificação foi espontânea: desde pequeno estimulei minha percepção cascavilhando e me encantando com o que não aparenta uma majestosa importância, com o que é deixado de lado, com o que também aprendemos a chamar de esquecimento. Talvez seja um fascínio. Os detalhes, Fernando, são como as folhas balançando no fundo de um filme dos irmãos Lumière, são como as folhas da querida árvore de Hugo, seu protagonista. Não sou capaz de mensurar a gama de experiência pessoal contida na obra, mas sinto uma intimidade no ar, não só pelo uso da primeira pessoa, mas particularmente pelo carinho contido em suas palavras no retorno à tenra infância. Um Detalhe em H parte de uma pergunta: "a partir de que detalhe, minha história mudou?" e definitivamente essa é a pergunta que mais fiz e continuo fazendo em minha vida. Não que não esteja ou estivesse tranquilo em meu caminho, apenas sou incapaz de deixar de fabular, é claro, pelo menos outros oito possíveis.

Não sei se a impressão vem da pré-leitura ou da pós-leitura, Fernando, mas sinto uma marca de Clarice  em sua escrita, especialmente quando o livro assume nuances existencialistas, com Hugo assoberbado entre devaneios do cotidiano, assombrado pela ausência da mãe e pela ambivalência que conduz a relação com o pai e Helena. Ainda assim, a marca definitiva de Um Detalhe em H, para mim, é a intervenção na palavra de um firme olhar cinematográfico, a começar pela forma como você tensiona o campo da observação através de um protagonista que observa, mas consciente de ser um protagonista observado pelas coisas e pelo mundo, pela lagartixa, pela amiga árvore, pelos objetos da sala. Hugo é espectador e espetáculo. Além disso, as elipses que pontuam o ritmo da narrativa surgem como seu grande trunfo literário: em alguns momentos do livro, fui abatido pela sensação de estar subindo ou descendo as escadas e, de repente, deparar-me com um degrau numa altura ou largura diferente. Sabe como é aquele instante em suspenso que antecede a queda? Pois é, há inúmeros momentos em que você conseguiu me passar esse instante em suspenso por meio de suas temporalidade saltadas. As elipses são quase como cortes cinematográficos, vão selecionando instantes durante a incursão da infância até o fim da adolescência, movimento que me conquistou pelos próprios clichês que aprendi a cultivar e não me envergonhar: "a natural curiosidade pelo tamanho do mundo", o prazer de brincar sozinho, os pés balançando no sofá a trinta centímetros do chão, o prazer de observar e viver as situações por outros ângulos, os bichinhos de chuva bailando ao redor da lâmpada, o carinho rústico de nossos pais, o ímpeto de esconder o cadarço dentro do sapato por não saber amarrá-lo, as lembranças da biblioteca, a ereção constrangedora dentro do ônibus lotado. Incrível como Um Detalhe em H foi despertando sistematicamente memórias, como se as lembranças de Hugo se misturassem e semeassem às minhas próprias lembranças: do desmaio numa brincadeira de esconde-esconde, do frio na barriga ao ver meu pai chorando, assim como pela noite que encerra um medo ou a solidão que engrandece os espaços vazios. Seu livro me proporcionou o ato de ler como um ato de lembrar, portanto, agradeço a leitura e a rememoração.

É isso, forte abraço,

Rodrigo

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