A matéria televisiva sobre a ossada encontrada nas escavações do túnel na frente do Museu da Abolição, supostamente de um judeu com cerca de 500 anos, supostamente antes do ultimato de deixarem o país em 1634, pareceu-me uma cena suecada de Em construção (Espanha, 2001), do espanhol Jose Luis Guerin. Incrível como diante de uma descoberta dessa magnitude histórica, todo mundo se sente estimulado a comentar ou fabular sobre o passado abaixo de nossos pés: uma época distante e silenciada parece ressurgir plena de uma estranha intimidade. Não tive muita paciência para as falas dos especialistas (aliás, as obras do túnel deveriam ser interditadas, não?); o bom mesmo veio dos curiosos, cada qual tocando da sua maneira mambembe ~engenhos, escravos, bondes, índios, mucambos ~ nas sobreposições de tempos e cidades. Segundo a minha mãe que estava vendo a matéria ao meu lado, por exemplo, a vila aqui da Várzea onde ela mora foi construída em cima de um cemitério de escravos. Não duvido 100% porque essa região era toda repartida por engenhos, tinha a capela dos brancos, dos pardos e dos negros (as duas primeiras sobreviveram, a última foi incendiada), mas tenho a impressão de que aprendi na minha infância - estudávamos a história de nosso bairro na escolinha construtivista - que o espaço da vila se transformou num cemitério dos portugueses e índios mortos na Batalha dos Guararapes. Acho que isso se torna mais verossímil, porque o Engenho São João, onde supostamente se tramavam as revoltas contra os holandeses, ficava na Várzea e Filipe Camarão, o líder índigena e uma das figuras mais importantes desse processo, certamente está enterrado na Igreja Matriz aqui pertinho. Errrr... falou e disse mais um curioso que teve algumas aulas sobre o assunto na terceira série.
quinta-feira, 18 de julho de 2013
Cinema e Memória
Nos últimos meses estive engajado na viabilização do e-book Cinema e Memória, que acaba de ser lançado pela Editora Universitária da UFPE, através do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, movimento que posso considerar como o primeiro passo de minha pesquisa de doutorado. Além do meu artigo, a publicação conta com textos dos outros dois organizadores, Carlos André Carvalho e Chico Lacerda, e dos colaboradores André Antônio, Isabel Marinho, Nina Velasco, Marcelo Costa e Sabrina Tenório Luna. Nosso intento com esse e-book foi esquadrinhar as relações entre os dois campos, utilizando distintos objetos e arcabouços teóricos, percebendo como a sétima arte além de resgatar uma memória, exerce a memória, muitas vezes engendrando contraditórias concepções historiográficas, deslocando passados, jogando com formas de experiência e mobilização. Segue abaixo a capa com o link e desejo a todos os interessados uma boa leitura!
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sexta-feira, 12 de julho de 2013
Caixa Eletrônico
Antes de repassar as finanças para o síndico, o porteiro mais antigo do prédio Piazza di Verona costumava organizar e fechar os pagamentos do condomínio depois do anoitecer do quinto dia útil de cada mês. Romão, morador de apenas um ano num lugar de inquilinos de longa data; rapaz jovem, forte, peludo e relapso com os trâmites e miudezas do dia-a-dia, tinha esquecido pela sétima vez o dia do vencimento, de forma que acordou num salto do cochilo pós-almoço, cochilo pesado depois da dobradinha oferecida na casa de uma ex-namorada. Não a última ex, outra. Despediu-se com um forte abraço e com a rapidez que a dupla situação necessitava, correu para a parada de ônibus, esperou meia hora, passou seu cartão de trabalhador, ficou em pé, trânsito, mais trânsito, novamente mais trânsito, desceu cinquenta minutos depois, a chuva começou a cair, abriu uma sombrinha roxa emprestada pela mãe, os arames estalavam a cada vento mais forte e seguiu para o supermercado mais próximo de seu prédio, onde existiam alguns caixas-eletrônicos. Com o céu cinza, sem relógio ou celular, não sabia bem a hora, também não estava disposto a parar alguém na chuva para perguntar. Subindo a ladeira de acesso ao centro de compras, Romão percebeu que as luzes estavam falhando, acendendo e apagando, silenciosamente desejou a estabilidade, mas quando se aproximou da porta eletrônica, com ela quase fechando, as luzes se apagaram em definitivo. O rapaz foi invadido por um pensamento permeado pelo desespero e pelo ódio: "a porta é eletrônica, caso não abra manualmente, vou atrasar a taxa de condomínio, mas a multa vai valer a pena porque vou postar no Facebook o absurdo que é uma porta ser eletrônica e não funcionar manualmente, porque se fosse um incêndio lá dentro, as pessoas ficariam impossibilitadas de sair e morreriam todas queimadas". A porta funcionava no manual, bastava empurrar e, nem foi preciso, porque o gerador foi prontamente acionado, fazendo com que todas as luzes retornassem e a porta abrisse quando Romão chegou perto. De imediato, o rapaz entrou na fila de seu banco, com aqueles movimentos similares de quem está se mijando, percebendo em seguida, para sua sorte, acreditava, que nenhum dos caixas-eletrônicos tinham apagado durante a falha de energia. Exceto pelo caixa 24h, o único em que ninguém esperava na fila. No banco de Romão, apenas duas pessoas na sua frente: uma utilizando o caixa e a outra esperando. Nos outros três bancos, as filas eram maiores. Enquanto aguardava a sua vez, olhou as pessoas para ver se valia a pena ficar encarando alguém, não valia, então Romão ficou observando o sistema do caixa 24h reiniciar, processo demorado, muitos e muitos minutos se passaram, tempo suficiente para a velhinha que estava usando o seu caixa errar dez vezes e conseguir realizar um saque na décima primeira. Uma garota se aproximou do tal caixa, olhou, esperou um tempinho, atendeu o telefone e foi embora. O sistema continuava a reiniciar, mantendo um aviso em vermelho na tela, enquanto a mulher na sua frente imprimia extratos sem fim. Quando finalmente ela saiu, Romão já foi enfiando seu cartão, tentando ser o mais rápido possível. Duas pessoas entraram na sua fila. O sistema do 24h continuava a reiniciar. O rapaz foi realmente veloz, tirou o dinheiro e, antes de prosseguir em sua correria, resolveu conferir as notas e certificar se o valor batia com o solicitado. Quando na sua contagem estava entre os R$ 150 e R$ 200, o caixa ao lado fez aquele barulho típico de que vai soltar dinheiro. Todos os usuários de todas as filas olharam apreensivos, esperando saber se algum dinheiro seria cuspido e como se comportariam depois disso. De quem seria aquele dinheiro? Dividiríamos? Devolveríamos? Decidiríamos na porrada? No final, nada saiu, a tela ficou preta com um aviso permanente: "sistema inoperante". Romão agradeceu. Sua taxa de condomínio dentro do vencimento foi, por muito pouco, salva de dilema um moral.
terça-feira, 9 de julho de 2013
Imagens de Valerio Zurlini
Recentemente participei de um especial sobre Valerio Zurlini na Revista Filmologia e, assim como fiz há quase dois anos durante a edição sobre Philippe Garrel, enquanto percorria a filmografia do cineasta italiano, fui salvando sistematicamente imagens, pensando em criar posteriormente uma sequência com os quadros guardados. Destaquei nos ensaios que escrevi sobre Mulheres no Front e A Primeira Noite de Tranquilidade, que o cinema do Príncipe da Melancolia, cujos ciclos cinéfilos injustamente julgaram por anos como um cinema sub-Antonioni, apreende sua potência nos olhos enquadrados pela câmera, olhos escondidos atrás de corpos, olhos abertos, fechados, semicerrados; olhares trocados como fragrâncias do corpo, contemplando o - ou compartilhando do - sofrimento do outro, (d)a doença, (d)a paixão, (d)a indiferença, (d)a falta de forças para seguir adiante. Se numa entrevista, Zurlini sublinha a visão pessimista de suas obras, afirmando que "é inútil amar porque amar implica infelicidade, é inútil acreditar em alguém, porque nos desiludiremos", o crítico italiano Gian Piero Brunetta complementa dizendo que "desde logo, seu cinema se revelou capaz de fazer falar o olhar e a expressão de seus personagens, de preencher o silêncio de emoções, de jogar com o não dito, com uma intensidade de sentimentos mínimos, de atmosferas suspensas, de jogar, de modo magistral, com cordas íntimas".
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