sábado, 31 de dezembro de 2011

Jurando de mindinho

(Publicado originalmente no Filmologia)
- Você jura?
- Sim, eu juro.
- Pelo nome de sua mãe?
- Sim.
- Mesmo que ela vá para o inferno porque você mentiu?
- Sim, eu juro.
- Jura de mindinho?
- Juro de mindinho.

Sempre que voltamos aos filmes da infância, corremos o risco de, em menos de duas horas, sabotarmos em definitivo um carinho mantido seguro por anos, de maneira que precisamos antes de partir nessa jornada de redescoberta e decepção, cartografando os fios imaginários que ainda nos ligam às crostas da primeira idade, sermos suficientemente sensatos no momento de distinguir entre os baús que devem ser remexidos daqueles que permanecerão intocados. De uma forma ou de outra, é bom lembrarmos que existem as produções imponentes, que podem ser vistas e revistas sem perdas sensíveis no panteão, assim como as que funcionam melhor enquanto lembrança, como se estivessem destinadas ao timing exato de serem assistidas em determinada idade, na situação específica da Sessão da Tarde, com aquela bela fadiga pós-almoço, esparramados no sofá, vestindo a farda gasta e rabugenta da escola que só iríamos tirar no final da tarde, depois do terceiro ou quarto grito de nossas mães. Há, no entanto, uma terceira variação: são os filmes que continuam amados, mas cuja condição de amor depende exclusivamente do fato de terem sido importantes durante a infância, como se o princípio de prazer fosse baseado na emulação de uma espectatorialidade perdida, gerando a partir da impossibilidade de resgate um saudosismo tão intenso que é capaz de transcender, aproximar e afetar idiossincrasias temporais.

Não sei bem porque comecei esse texto como se precisasse me desculpar, afinal de contas, estamos num terreno plenamente seguro, não posso garantir uma longa meditação esquadrinhando plano a plano de Conta Comigo (EUA, 1986), mas ao menos posso dizer sem medo, antes de todos os movimentos escorregadios e secundários, que esse é nada mais, nada menos que o “meu filme predileto sobre infância” e também “o filme predileto da minha infância”, além de que, junto a Cavaleiros do Zodíaco, é o responsável oficial pelo meu entendimento até hoje do que significa amizade. Toda vez que vejo, revejo, prevejo, cada sinal do mundo que ele aponta se transforma naturalmente numa potencial lembrança, adaptando uma marca definitiva da novela que serviu de inspiração, O Corpo, de Stephen King, que possui uma estrutura propicia a, adultos ou crianças, nos encharcarmos na melancolia, seja porque o tempo passou, seja porque o tempo está para passar. É quase como se a vida acontecesse apenas aos doze anos, que num minuto estávamos vivendo, aprontando, sendo protagonistas, e no minuto seguinte passamos ao posto de meros observadores. Assisto ao filme inteiro com os olhos marejados, cada miudeza abre um universo de recordações, basta dois amigos andarem lado a lado e um deles dar um chute na bunda do outro pelas costas ou um desentendimento cujas as pazes são firmadas jurando, jurando, jurando de mindinho.

O meu fascínio por Conta Comigo, ontem e hoje, decorre racionalmente de dois motivos. O primeiro é o absoluto e singelo clima de fraternidade entre os quatro protagonistas, naquela linha bem cafona – aliás, é final de ano, é a temporada oficial da cafonice – de pensar os nossos amigos mais próximos como a família que nos deparamos no mundo e trazemos para perto da gente, pessoas com as quais compartilhamos vivências porque entendemos que as vivências só adquirem sentido se compartilhadas. Nesse contexto, estamos sempre brigando e fazendo as pazes, tirando onda de qualquer besteira, debochando, falando da mãe, batendo frio na barriga, precisando de um ombro firme, dando foras entediados (“ha-ha, muito engraçado, só que eu esqueci de rir”), rindo do que os outros falam sem clima constrangedor, na maioria das vezes seguindo uma espécie de rodízio, todo algoz encontra seu dia de vítima, onde num segundo de descuido, dois ou três se juntam para achincalhar o membro restante. As imagens assumem um poder espectral, como se carregassem internamente portais para dezenas de outras ocultas: vemos os garotos levando uma carreira de um cachorro (quem nunca?) e nos lembramos, como símbolo do que é viver a adrenalina de verdade, dos dias que falamos “pio” de olhos fechados, enquanto nossos pais putos da vida gritavam “e não quero escutar nem mais um pio”. Pio.

O segundo motivo é a aproximação espacial: boa parte dos filmes desta edição do Filmologia possui uma casa da árvore, esse mítico lugar-refúgio-esconderijo de tradição norte-americana; na minha rua tinha uma ruína de uma dessas, recôncavo de um grupo de amigos da geração anterior. Na minha época, a escada já tinha caído, parte do piso cedido e o próprio tronco havia se tornado um cemitério de pregos. Diferente de Os Goonies, onde a instância infância é confundida com a instância estupidez, Conta Comigo me lembra os passeios na praia antes dos adultos acordarem, as subidas nas árvores, a escolha dos melhores lugares, as andanças de bicicleta na beira do açude de Brennand, a professora nos mostrando como funciona um ábaco, as invasões no hospício abandonado da praça da Várzea, tudo isso entrecortado por alguma safadeza e por conversas sérias e banais tomadas com o mesmo respeito (- quem venceria numa briga, supermouse ou superhomem? – Um desenho nunca venceria uma pessoa real). O caso é que todo aquele universo parecia uma extensão da minha rua para dentro da planície da televisão, meu bairro sempre teve esse clima de interior da cidade, sentia algo além de identificação quando o narrador comentava que morava numa “cidadezinha, mas para mim era como o mundo inteiro”, porque por muito, muito, muito tempo, quem dera que fosse para sempre, eu era o menino da rua e somente da rua, que um dia resolveu ir além e quando voltou se deu conta que seu reino era bem menor do que imaginava.

O filme carrega uma delicadeza em seu olhar, sem precisar espernear “olha só sobre o que estou falando”, no que se refere a virada da pré-adolescência para a adolescência de quatro garotos que são quatro arquétipos, quando nos damos conta que o mundo não gira em torno de nosso umbigo, que nossa sensação de pertença é apenas passageira. Olhamos nossos irmãos mais velhos e percebemos a ausência de seus amigos de infância, Conta Comigo acompanha uma aventura que nada mais é que a constatação da separação iminente, como se apontasse para os momentos que nos damos conta, lá pelos doze anos, que as amizades são como “garçons que sempre estão entrando e saindo de nossas vidas”. Misturado às dificuldades familiares de cada um, o que tornava a amizade cada vez mais íntima, e no encerramento do ciclo que deixa mais nítido o limítrofe da lenda e da realidade, vamos aos poucos se despedindo de nossas obsessões infantis, os dinossauros são deixados de lado, a Segunda Guerra Mundial perde seu encanto, os extraterrestres se tornam uma fé subterrânea, esconde-esconde pura lembrança e as vitórias, ou as próprias jogadas do War e xadrez, cada vez mais raras. Sempre vai ser complicado justificar o motivo de nosso amor por determinados filmes e, em meio a trilha sonora com Everyday, Come Go with Me, Stand By Me, Mr. Lee, Great Balls of Fire e Lollipop, Conta Comigo instaura um lugar-memória, uma falsa caixa de pandora, um rabisco amarelado desses que não cansamos de olhar.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

A Fortaleza

(Publicado originalmente no Filmologia e partir de um rabisco anterior)

Ao lado de Colheita Maldita, A Fortaleza (Austrália, 1986) foi responsável por alguns dos momentos mais angustiantes da minha – e não exclusivamente da minha – infância, exercendo sua função precisa na composição diária de pesadelos, especialmente porque ambos, cada qual ao seu modo, deslocam a ingenuidade das crianças para um campo sombrio, não enquanto medo do desconhecido ou da perda, não apenas como ameaça ao universo pueril que se mantém acuado como fonte de esperança, mas no sentido de pensar esse próprio universo como produtor de maldade ou vingança. Foi a partir destas duas produções – junto a Anjo Malvado, talvez – que me dei conta que as crianças não estavam tão isoladas da crueldade do mundo dos homens, que também éramos capazes de matar, tecer nossa própria coletânea disjuntiva de códigos e normas, que nosso egoísmo ou crueldade poderia gerar impactos forçosos e, por algum tempo, temi a descoberta dessa espécie de poder em minhas mãos (algo que se aprofundaria durante a leitura de O Senhor das Moscas, escrito por William Golding, que mostra como uma sociedade de crianças é capaz de produzir ritos e crenças particulares, numa reinvenção moral que se afasta absolutamente do que aprendemos como processo civilizatório). A sinopse de A Fortaleza é bem simples: imaginem a novela Carrossel, só que ao invés do lenga-lenga habitual entre Cirilo e Maria Joaquina, imaginem a professora Helena e a turma de alunos em idades diferentes sendo sequestrados por quatro homens armados com escopetas, cada qual usando sua respectiva máscara de animação de festinhas de aniversário: papai noel, gato, rato e pato. A maneira como surgem sorrateiros no pátio da escola, o tratamento cuidadosamente opressor com suas vítimas, a professora diz “crianças, vamos cantar” e papai noel bota a arma na cara dela gritando “cala boca” (e o tempo todo eles mandam ela calar a boca), de maneira que tudo aparece cercado de uma eloquente agressividade associada a impossibilidade de fuga – sentimento reforçado pelos olhares por orifícios mínimos em busca de espaços livres, seja através de um buraco no chão do furgão, seja por meio de uma fresta na caverna.

No caminho para o cativeiro, o roteiro revela logo o tom acima do habitual para o Cinema em Casa (que tradicionalmente já tinha uma tolerância maior em relação à Sessão da Tarde): os sequestradores sugerem que vão estuprar a professora, depois comentam que tem uma aluna “já crescida que daria uma boa diversão”, ameaçam matar o menor e mais fofo dos meninos se outro que havia fugido não voltasse ao furgão. A violência é sugerida em camadas sobrepostas, trabalhando essencialmente em cima do instinto de sobrevivência como necessidade primordial do homem, testando nossa flexibilidade moral, quase como se o diretor Arch Nicholson procurasse esboçar uma situação-limite em que crianças boas por natureza, após serem submetidas a uma experiência traumática, apreendem razões comportamentais que os levam a agir tal qual – ou até pior que – seus algozes. Não por acaso uma das taglines de A Fortaleza é “for one teacher and nine children, the lesson of the day is kill or be killed”, ressaltando o ímpeto de que somos capazes de qualquer atitude diante de uma ameaça iminente (todos os filmes-catástrofe trabalham com isso, mas lembro particularmente da cena de A Guerra dos Mundos em que o protagonista, para proteger sua filha, assassina um homem enlouquecido que havia perdido toda família). No caso da produção australiana, do momento em que os jovens conseguem produzir fogo até a cena em que precisam atravessar um lago por uma passagem subterrânea, quando uma das alunas se desespera, agarra no pescoço da professora e quase as duas se afogam, o fio condutor se apóia numa vontade tão intensa de viver, sobreviver, que revela todo desespero que nos acomete diante do semblante do fim. No momento em que os jovens conseguem escapar temporariamente, o filme saca um falso ponto de virada ao chegarem numa residência, onde logo percebem a presença dos mascarados: mais uma vez, a violência determina o caminho narrativo; antes de deixarem o local, o Papai Noel simplesmente executa o velhinho dono da residência na frente dos infantes, a bala atravessa o corpo e estoura um aquário enorme ao fundo. Nessa época, eu nem sabia o que era Haneke.

No entanto, o maior significante de violência do filme está num detalhe cenográfico associado a uma preocupação formal dos enquadramentos: praticamente passamos os 85 minutos sem ver o rosto dos sequestradores, mesmo quando eles retiram as máscaras na parte final, a câmera os filma de costas, evita a face diretamente, distancia-se, despertando o incômodo de que caso desapareçam, poderão cometer novos crimes e nunca serem reconhecidos, um terror que coloca os jovens no dilema de precisarem resolver esse embate, pois assim como em De olhos bem Fechados ou da própria história real ocorrida em 1972 e repetida em 1977, eles entendem as desvantagens de não usarem máscaras quando estão sob o domínio de mascarados. Preenchidos pela lição de matar ou morrer, as crianças se rebelam, comportam-se como caçadores / guerreiros tribais, resgatando por meio dos ancestrais que habitaram o espaço neolítico da caverna, um primitivo instinto de sobrevivência. Mostram-se preparados para medidas extremas e tenho de concordar que o filme possui – mais uma vez junto a Anjo Malvado, por razões diferentes – o fim mais chocante de todas as produções sobre o qual escrevemos por aqui: depois de montarem dezenas de armadilhas, finalmente há o confronto entre o seqüestrador chefe, o Papai Noel, e os sequestrados, mas quando a luta se inicia, a sequência é interrompida. O corte nos leva ao pátio da escola, onde a professora lê uma fábula para as crianças, mas logo chegam dois policiais, o clima fica tenso, um travelling passeia pelos temíveis rostos angelicais dos pequenos, a professora é então interrogada na sala de aula. Encontraram o último corpo, mas o legista apontou anomalias, determinados ferimentos não condiziam com os depoimentos dados, pois não poderiam ter sido feitos por animais, “o corpo parece ter sido mutilado”. Corta para dentro da caverna, professora e alunos enfiam dezenas de lanças no corpo do sequestrador, jogam pedras, pintam seus próprios rostos com o sangue de sua vítima também ensangüentada. Volta para a sala, as crianças se aproximam, pegam suas lanças, os policias sentem o clima e resolvem ir embora. O filme termina, depois de um dos garotos pregar uma peça usando a máscara do Papai Noel, com a professora liberando mais cedo, a câmera foca em alguns bichos em formol, numa das garrafas há algo semelhante a um coração humano – “nós também temos um troféu” – e em meio aquele nó na garganta, aprendemos um novo significado para “a moral da história”.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

conversas de ônibus

I
- Mas menina, acho que tu não tens noção, ela puxou meu cabelo, deu na minha cara, meteu o cabo de vassoura, assim com força, nas minhas costas, me colocou para fora de casa me chamando de rapariga bem alto no meio da rua e tu ainda queres que eu peça dinheiro emprestado pra ela? Porra, consigo não.

II
- Rapaz, tô aprendendo a mexer num programa massa de edição de fotografia, photo-alguma-coisa, pra tu ter ideia já consigo até pegar aqueles retratos antigos do colégio, scannear e tirar da imagem as pessoas que não gosto, colocando a mesma cor do fundo por cima delas tudinho. Meu irmão, fica perfeito.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Aracnofobia

(Publicado originalmente no Filmologia)

A memória e seus ossos, a torpe lucidez, minha viagem através dos retratos, eu e meu rei trocando segredos, ressonando espaço-viuvez, e a cólera de saber que tudo me possui e ao mesmo tempo nada, que nada em mim é permanência, e tudo é permanência, vínculo, tudo é tangente, tudo está colado a mim.

Hilda Hilst, Pequenos discursos e um grande

Sempre que tentamos resgatar nossas lembranças mais antigas entre o mofo e o abandono, quando decidimos pelos primeiros acontecimentos que incorporamos como experiência de vida, entramos no terreno profundo do rememorar enquanto processo de torção e distorção de fagulhas benjaminianas, escavando um espaço mnemônico que alinha num mesmo plano um naturalismo reconquistado e uma fantasia exagerada. Nesse sentido, uma das encruzilhadas infantis que melhor perduraram em minha memória, entre uma sessão da tarde e uma ronda noturna, se baseia no princípio de que as aranhas nunca simpatizaram comigo. Quando era pequeno, entre os sete e oito anos, estava brincando em casa, numa espécie de quintal lateral longuíssimo, mas cuja largura não passa de um metro e meio de distância entre a nossa janela e o muro da vizinha. De repente, resolvi dar um susto na “menina” passando roupa lá trás, mas não demorou muito até ela me notar, só que ao invés do típico “menino, deixa de ser besta, estou te vendo”, soltou um abismado “Rodrigo, o que é isso atrás de você?”. Havia um horror singular em sua voz, seu rosto parecia anestesiado e quando me virei meio sorrindo, um tanto traquino, estava face-to-face com maior aranha que já vi na vida. Na lembrança que hoje já foi submetida a altas doses de ficção, aparece inclusive aquele mar de olhos horrorosos em superclose tal qual em Aracnofobia (EUA, 1990). Se não bastasse, desde então, secretamente roubei uma lembrança do médico, interpretado pelo Jeff Daniels, e passei muito tempo contando, como para justificar meu trauma, que antes mesmo deste episódio, havia existido outro, quando eu tinha apenas dois anos: uma aranha havia subido em meu berço, andado pela minha perna, mesmo sendo muito pequeno para lembrar, contava que podia reviver a sensação de paralisia completa, até que ela passou pela minha barriga com aquelas oito patas repugnantes e, enfim, alcançou o meu rosto. Pois é, o histórico da minha fobia – que continua firme e forte até hoje – se confunde com as próprias imagens do filme dirigido por Frank Marshall.

De qualquer forma, voltando ao acontecimento, a sequência foi de uma completa histeria familiar: eu saí correndo gritando pela minha mãe, a menina se trancou no quarto, minha irmã olhou e se trancou no dela; minha mãe fez a mesma coisa, mas ao entrar em seu recinto, não por acaso me viu acompanhando tudo pela janela com o ar condicionado ligado. Não lembro bem do meu pai, devia estar viajando, sei lá, mas se tem uma coisa, batata, que assusta uma criança é o absoluto medo estampado no rosto de seus pais. Nossa esperança era o meu irmão mais velho: surfista, metido a machão, ficou um tanto receoso ao ver o tamanho da aranha, ainda assim pegou uma vassoura, amarrou no cabo de um rodo velho e da janela do quarto dele que fica no primeiro andar, ou seja, uma distância considerável, deu uma porrada na maldita. Ela pulou – minha espinha congela só de pensar no pulo de uma aranha e Aracnofobia está inundado deles – e saiu do nosso campo de visão, despertando pânico em todos que assistiam a cena por suas janelas. O remendo soltou, a vassoura caiu e o meu irmão fechou a janela do quarto dele e também ligou o ar condicionado. Foi nessa situação, com toda minha família trancafiada, que surgiu a minha fobia irreversível por aranhas, algo que até já tentei remediar com contatos graduais e abastecendo-me de informações, procedimentos sem sucesso algum. A história terminou com a minha mãe telefonando para a vizinha que adora bicho, uma vez ela chegou em casa trazendo um cavalo branco que encontrou sozinho no meio da rua, para matar, tanger, dar um jeito na situação, “afinal a culpa era dela por ter um pé de carambola em casa” (?). Ela matou, mas antes vimos a aranha dando vários pulos, soltando as pernas como forma de defesa, mesmo dentro do quarto comecei a alimentar o receio de que alguma coisa poderia estar ali comigo, embaixo da cama, dentro de um sapato, atrás de um jarro, passeando na cortina, é como se todas as cenas de suspense de Aracnofobia tivessem sido introjetadas automaticamente no meu imaginário.


Corta.

Segunda história: anos depois, final da adolescência, estava num sítio em Bezerros (cidade antes de Caruaru), com alguns amigos. Basicamente iríamos passar o dia bebendo, contando vantagens e tomando banho de açude. Logo quando chegamos, passamos numa cabana abandonada, onde o caseiro costumava guardar todas as tralhas e enquanto meus amigos exploravam o lugar, fiquei na porta só olhando. Confesso que em Aracnofobia existe um discurso sobre o campo, o interior enquanto espaço perigoso, algo que assume até um tom urbanóide estúpido, como na cena final em que Jeff Daniels, já são e salvo em São Francisco, fala para a mulher: “Sabe do que mais vou sentir falta do interior?”. Ela pergunta: “O que?” Ele responde: “Não sei, por isso perguntei”. Ela completa: “Pelos menos saímos vivos”. Certamente há um preconceito forte aí, mas é preciso deixar claro que a fobia de aranhas determina a forma como a pessoa entra e se porta em determinados ambientes fechados, coloca-a em vigília permanente quando está num lugar isolado, com mais risco delas aparecerem. Ou seja, não é diegeticamente tão absurdo assim. Nessa época, entre os dezesseis e dezessete, a maioria dos meus amigos já sabia do medo irracional, alguns já tinham ouvido que meu temor infantil supremo era acordar morto dissecado com uma aranha saindo da minha boca, outra imagem do filme, mas decerto ninguém tinha presenciado diretamente um ataque de pânico. Também fiquei na porta porque sou desses que odeiam todos os insetos, aracnídeos e derivados; desses que matam até borboletas quando ninguém está olhando, e simplesmente queria evitar qualquer atitude exagerada. Eles encontraram uma jangada e a carregamos até o açude. Meia hora depois, todo mundo nadando, resolvo deitar na embarcação sozinho para pegar um sol. Daí fico lá virando e revirando, quando de repente sinto alguma coisa no meu peito. Pois é, mais uma vez face-to-face com uma aranha e se tem um detalhe que torna Aracnofobia amplamente mais assustador que filmes que apostam em aranhas gigantes, como Malditas Aranhas (EUA / Austrália, 2002), é justamente o fato delas serem do tamanho das aranhas do mundo, de em sua pequeneza e proximidade com nosso rosto esconderem um perigo atroz.

Além disso, não foram utilizadas aranhas de mentira, as pequenas vieram da Nova Zelândia, dizem que são inofensivas apesar da agressividade, já a tarântula gerou alguns problemas por sua mordida dolorosa, até usaram um pequeno protótipo em algumas cenas, mas ambas as espécies foram manipuladas pelo entomologista Steven Kutcher, que tem no seu currículo vários filmes como “coordenador de insetos”. Desculpa a profissão, mas só consigo pensar no diálogo entre o fotógrafo e o cientista no começo do filme: – Qual a sua especialidade? – Viajo o mundo cartografando a existência de novas espécies de insetos. – Você não acha que o mundo já tem insetos o bastante?. Na lembrança mais uma vez mergulhada na ficção, a aranha no meu peito dava dois passos em direção ao meu rosto, como quem se prepara para atacar, só que consegui ser mais rápido, dei um tapa nela e pulei da jangada. Aliás, se tem algo que me transtorna na aranha é sua forma de locomoção e suas patas: dois membros, ok; quatro membros, ok; a partir de seis já começa a virar bagunça, oito é certeza de desespero. Na sequência saí nadando sem parar até a borda do açude, que nunca foi tão grande, pisei nas margens me coçando, batendo-me, igualzinho ao Jeff Daniels, como se o simples toque aracnídeo fosse capaz de fazer brotar filhotes de dentro do meu corpo, como se eu estivesse definitivamente marcado pelo cheiro, como se elas pudessem voltar a qualquer momento e já soubessem quem deveriam matar. Toda folha levada pelo vento era motivo de escândalo, passei cerca de meia hora transtornado até entrar na água para me sentir mais seguro. Depois, mostraram-me a aranha morta, comentaram que ela já estava seca desde o início, ficaram me obrigando a ver a peçonhenta como terapia – idêntico a como a mulher tenta fazer com o marido e óbvio que não funciona – especialmente porque as pessoas não entendem que o medo que está em jogo na fobia é irracional, envolve um respeito árido, o mesmo naturalismo reconquistado junto a fantasia exagerada ao qual me referi lá em cima. Você tem um dado real que é a existência do bicho, mas começa a acreditar em coisas absurdas num contexto de perigo conscientemente desporporcional: daí é um passo para começar a falar que a aranha tá se fingindo de morta, que é o bicho mais perigoso da terra e é justamente ciente dessa dimensão que o filme Aracnofobia fundamenta sua atmosfera de thriller.


Corta.

Terceira e última história: estou na casa de um amigo na praia de Ponta de Pedra, com um monte de estudantes do curso de Biologia, desses que ficam andando e falando o nome científico de cada planta, inseto e o raio que os parta que se mova. Daí em algum começo de noite, todos foram para a praia e eu fiquei com mais quatro pessoas dentro da casa, duas biólogas e dois namorados de quaisquer outros campos de conhecimento. Claro que tratando-se da temática em questão não demorou muito até eu notar a presença de uma aranha enorme num canto escondido. Soltei o grito, os quatro correram para a sala, um dos namorados olhou, esbugalhou os olhos, e se trancou no banheiro enquanto o outro arrumou uma distância segura e passou a observar tudo da cozinha. As duas biólogas, por sua vez, ficaram ao meu lado sugerindo deixar a aranha lá, “que se não mexêssemos nela, ela não iria nos incomodar”. Dizem que as razões históricas da aracnofobia, que confirmaria o fato de ser um temor mais ligado à cultura ocidental que oriental, provém de um surto chamado tarantismo que se alastrou pela Europa entre os séculos XV e XVII, cuja culpa foi atribuída a uma espécie de aranha e a cura só era possível com sessões de quatro horas ininterruptas de dança (semelhante ao transe de quando nós, aracnofóbicos, somos tocados pela aranha). Seja como for, mais uma vez, comecei meu transtorno de ansiedade ou transtorno de pânico que só se manifesta em uma situação particular, gritando que era uma questão de ela ou nós, que se deixássemos a aranha viva, certamente iríamos acordar mortos. Além de que nunca no mundo que conseguiria dormir numa casa sabendo que uma caranguejeira sedenta por sangue estava caminhando sobre as telhas ou sob os lençóis. Já que ninguém quis tomar a atitude, peguei uma vassoura e tentei acertá-la. A aranha pulou, caminhou daquela maneira asquerosa de caminhar, as duas garotas logo sumiram, eu fiquei louco, bem caçador em busca de sua presa até que a maldita se escondeu atrás da mesa de ping pong encostada na parede. Eu só conseguia manter a certeza que seria capaz de conseguir atingir meu objetivo por lembrar que o Jeff Daniels também conseguira matar a aranha no final, ainda que tenha precisado bater, tocar fogo e atirar para ela finalmente morrer. Eu só tinha uma vassoura e seguiria adiante.

Foi desse duelo que nasceu um dos maiores dilemas dos meus dias: a aranha estava num ponto que não conseguia alcançar com a vassoura e se eu fosse arrastar a mesa de ping pong teria que soltar a minha arma, ou seja, ficar completamente vulnerável. Sobe som Ennio Morricone e confesso que sou desses que por conta do filme, deixou de temer as imagens das aranhas nas telas, criando em meio a espasmos incontroláveis um certo fascínio seguro saciado através de vídeos no youtube. Só que diante de uma viva, a dimensão era outra: tentei empurrar a mesa com uma mão enquanto ficava com a vassoura na outra, a aranha correu para cima de mim, eu soltei a mesa, nem lembro se caiu de um lado ou do outro, mas, finalmente, consegui dar o golpe fatal na minha inimiga. Claro que não só um, dei vários, mesmo vendo ela morta, continuava a bater só para não ter chance alguma dela voltar. Mineirinho, treze tiros. Prontifiquei-me de arrumar uma pá, levei o cadáver para fora no intuito de tocar fogo nele, como não consegui arrumar álcool, decidi que ia jogar bem longe, havia algo dentro de mim temendo que surgissem outras clamando por vingança. Foi durante esse acesso de loucura, contam que a loucura é a forma mais forte de sofrimento, que chegou a horda de biólogos, em dois segundos virei o judas recriminado, “a pobre da aranha era um espécime raro”, “você devia ter tangido para longe”, “blá blá blá, blá blá blá”. Meus argumentos eram tão absurdos que tenho certa vergonha de lembrar, mas era no nível “não podia deixá-la viver, ela já tinha marcado a minha cara”. Portanto, sinto que não preciso falar muito mais sobre o filme em si, até reassisti a produção para escrever esse texto e é isso, o desespero continua, não temos aqui uma crítica, um ensaio, uma crônica, e sim, um relato terapêutico. Enquanto isso, os frames continuam se confundindo com as lembranças, os ímpetos absolutamente irracionais ganham linhas de racionalização e a única parte boa de todo esse percurso é que, pelo bem ou pelo mal, ainda sou capaz de experimentar até hoje a mesma dimensão do medo que costumamos deixar para trás, mofado, escondido ou abandonado embaixo de algum travesseiro infantil.

Corta.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Do mundo dos pequenos truques ou como ser adolescente para sempre

(Publicado originalmente no Filmologia)

Clube dos Cinco (EUA, 1985) não fez parte da minha infância, aliás, e aviso logo aos vigilantes-da-cabeça-pensante que nem adianta, não tenho vergonha alguma disso, descobri o filme apenas no final da década de 1990, talvez início dos anos 2000, no episódio Detenção da primeira temporada de Dawson’s Creek em que o protagonista e seus amigos, assim como no clássico da Sessão da Tarde, passam um sábado inteiro de castigo no colégio por alguma infração cometida durante a semana. Não demora muito para o seriado assinalar sua homenagem, evocando uma cinefilia boba, baseada no consumo de VHS, nos programas noturnos de televisão, pelas sessões com os amigos e por uma curiosidade mórbida por famosos e pelos bastidores. Os jovens logo trocam algumas palavras sobre a produção de Hughes, dando corpo ao imaginário norte-americano pelo qual é responsável, inicialmente resumindo a sinopse em menos de 140 caracteres para então se debruçarem com especial interesse sobre os atores, discorrendo sobre como foram parar nas pontas dos piores filmes, como perderam o ar de ingenuidade, como uma doença estranha abateu um deles, como envelheceram, envelheceram até simplesmente sumirem das telas e serem esquecidos.

Não lembro se foi lá ou em alguma das milhares outras referências que a obra já recebeu, que escutei pela primeira vez o boato que existe uma versão de quase três horas, inicialmente cortada a pedido dos produtores, corte mantido pela sanidade do diretor, que cresceu solitário numa vizinhança de velhos e garotas, ficando posteriormente conhecido pelo seu singular apreço por revelar cenas adicionais durante ou após os créditos de seus filmes. Boato ou não, o que importa é que há uma dinâmica em Clube dos Cinco que condiz com a vontade desesperada de ser jovem, de se desviar das amarras que a vida adulta impõe e transgredir as normas através de pequenos truques, fórmula até bastante repetida em outros filmes da época: não há bem uma introdução longa e arrastada onde nada acontece, do pífio prólogo corremos para o “ponto que importa”, somos rapidamente apresentados ao jogo e jogadores, até porque tanto na produção de Hughes quanto no seriado, não mostrar o “antes”, o “motivo de estarem ali” é determinante para narrativa. Ao longo da trama, os eventos são entrecortados por videoclipes, que demarcam a temporalidade da fuga do tédio ou do conformismo, por meio de conversas, corridas, jogos, fumos, xingamentos, danças, ou como diria o locutor das propagandas: “aprontando mil e uma confusões”.

A questão é que na impossibilidade de passarem o resto da vida interpretando adolescentes panacas ou jovens adultos panacas, os atores dos papéis que aprenderam a fazer como os papéis de suas vidas foram renegados pelas produções juvenis da década seguinte, terminaram subjugados pelo singular ethos púbere que faz do envelhecimento, descarte; notaram que a adolescência não dura três horas, apenas uma e meia. Não é apenas irônico como tremendamente cruel, se levarmos em conta que uma considerável leva dos filmes que estamos trabalhando nesse especial do Filmologia sobre a infância tratam, de uma forma ou de outra, desse medo de crescer, dessa sensação dissimulada que nos pressiona em diferentes estágios da juventude, fazendo inclusive com que os mesmos atores de vinte e poucos anos passassem a década de 1980 inteira alternando entre estudantes secundaristas e recém-formados arrastados para a vida adulta. No mesmo ano de Clube dos Cinco, Emílio Estevez, Ally Sheedy e Judd Nelson, pertencentes ao Brat Pack – expressão usada para designar os atores que trabalhavam juntos em inúmeros filmes de mesma temática – estiveram em O Primeiro Ano do Resto de Nossas Vidas, de Joel Schumacher, que registra a insegurança e melancolia de um grupo diante do impasse do amadurecer, cujos integrantes não lembram “quem conheceu quem primeiro, ou quem se apaixonou por quem primeiro”, só lembram dos sete sempre juntos.

Aliás, a expressão é uma variação de Rat Pack, que se refere aos atores da década de 1950 liderados por Frank Sinatra, e, a partir de 2005, mesmo contra a vontade dos próprios, surgiu o Frat Pack para as produções que envolviam os comediantes Ben Stiller, Jack Black, Will Ferrell e os irmãos Wilson. No entanto, no caso do grupo que estamos tratando, para além de ficarem trocando papéis, o garoto-esporte que vira o baderneiro, o baderneiro que vira o yuppie, a estranha que vira a patricinha, a patricinha que vira a drogadita, o nerd virgem que continua nerd virgem, o que está em jogo são os arquétipos utilizados, pois há um claro investimento no esquematismo simples e universal para afetar uma rede mais ampla de matrizes espectatoriais. A interação entre as personagens em Clube dos Cinco começa pelo baderneiro, que só consegue se comunicar pelo insulto, lembrando aqueles velhos repetentes da sétima série: maiores, mais fortes, estavam sempre contando vantagens, se gabando “de serem os únicos que tinham usado uma camisinha pra valer”. Hughes propõe que essa atitude não passa de vontade de cumplicidade e autodefesa num universo hostil.

A frase de Bowie (retirada da música Changes) que serve de epílogo simboliza bem um contexto que avança dos atores para as personagens e daí para os espectadores: “E as crianças em que vocês cospem enquanto elas tentam mudar seus mundos são imunes aos seus conselhos. Elas sabem muito bem por aquilo que atravessam”. Decerto, é notável a quantidade de filmes produzidos durante os anos 1980 que consideram a adolescência não apenas como uma fase da vida, mas como um conceito que transforma as dificuldades próprias do período, os lances de aventura e os arremates de felicidade não num estágio efêmero, mas numa condição utópica de existência. A imagem mundializada da High School, que no caso de Clube dos Cinco é determinante desde os cortes iniciais onde todo espaço é passado a limpo por uma concatenação de planos abertos e planos detalhes, revela um campo nostálgico e cruel, uma pichação “I don’t like mondays”, onde é reafirmada, menos enquanto perspectiva coletiva ou mesmo abertamente política, uma conjunção de lapsos libertários mínimos, provocados pelo e para o jovem como consumidor potencial (cuja trajetória cinematográfica se inicia duas década antes). Mesmo a ideia de detenção sendo absurda para nós que somos punidos com suspensão (ou seja, ao invés de mais tempo no colégio, passamos alguns dias afastados dele), o filme imprime seu impacto pela presença de cinco protagonistas simultâneos, que nos atingem em diferentes pontos de nossas idiossincrasias.

Se existe uma preocupação maior em Clube dos Cinco, que quase se chamou Library Revolution, ela reside na relação entre adolescentes e autoridades, na ânsia de desafiar as autorizações, numa lógica em que diante do suposto dever de ficar na biblioteca até o final da tarde, escrevendo uma redação de mil palavras sobre eles mesmos, sem poder falar, se mexer ou dormir, os jovens, que inicialmente se odeiam, sentem-se estimulados a não apenas compartilharem seus segredos, mas unirem suas diferenças numa sucessiva brincadeira de lutar contra a opressão. É essencial pensar nesse deslocamento contextual de cinco desconhecidos que todos os dias ocupam e vivem de maneiras absolutamente desconexas o mesmo espaço, colocando-os numa redoma isolada acrescida de alteridade, dando as ferramentas para que com o tempo compartilhem suas infrações e outros segredos. Há nessa troca não apenas um sentimento de libertação, mas, como boa parte dos filmes em foco, uma dúvida entre a vontade, negação e umas três doses de ranço yuppie em relação a um mercado de bens simbólicos, quase como se estivessem aprendendo a negociar suas particularidades, suas diferenças, em troca de compreensão.

Clube dos Cinco é antes de tudo um filme de confissão, todos se confessam, Hughes parece apostar um pouco no que o narrador de Singularidade de uma Rapariga Loura, de Manoel de Oliveira nos fala no início da película: “o que não se conta a um amigo, conta-se a um estranho”. E aí merece o retorno ao episódio de Dawson’s: diferente do filme, todos os presentes são amigos, exceto por uma personagem, Hebe, e é justamente sua presença que desencadeia as farpas responsáveis por abrir os olhos uns dos outros, apontando sarcasticamente como a intimidade entre eles havia se tornado uma instância de cegueira e conformação. Acontece que é justamente esse olhar exterior, não viciado, que adentra o espaço do outro com mais perspicácia, até mesmo mais violência, do que aqueles que já residem ali. O que há de mais vigoroso em Clube dos Cinco é que ao mesmo tempo que todas as personagens se agridem por suas diferenças é também por essas diferenças que despertam curiosidade umas nas outras. Temem o futuro, não apenas um medo de saírem da adolescência, mas especialmente por tomarem o mundo adulto como o mundo de seus pais: “vamos ser como eles” / “nunca” / “é inevitável”. Também temem o encontro deles fora da redoma de um sábado de castigo.

Termina o filme, cada um segue o seu caminho, e, mesmo sabendo que todos serão esquecidos menos de uma década depois, que provavelmente se tornarão iguais aos seus pais, resta confabular: como devem ter sido os olhares na segunda-feira?