ENTREVISTA / JONATHAS DE ANDRADE
Alagoano radicado (?) no Recife, Jonathas de Andrade, um dos vencedores do prêmio Marcantônio Vilaça, é um andarilho apaixonado pela coleta de tempos históricos e semblantes dos lugares por onde transita. Estudou Direito em Florianópolis, desistiu, veio para o Recife, se formou em comunicação e de lá para cá montou exposições na Cidade, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Dentre suas perambulações, passou sete meses vasculhando documentos e pertencimentos em seis países da América do Sul, participou de uma residência em Londres, está em Portugal na Bienal de Cerveira, mas já com passagem certa pelo Cairo, através da Fundação “Made in Mirrors”, e por Istambul. Não remeti às suas andanças por acaso, afinal essa “condução à deriva” de Jonathas, essa sua vontade de buscar, procurar, escavar continentes, cidades, registros e cantos escuros da sua própria casa é que ativa os seus projetos e as situações de desconcerto que nos propõe. Conversei com o artista, que participou da última Bienal de São Paulo e cuja obra “Educação para Adultos” integra a versão itinerante que pode ser conferida no Museu do Estado de Pernambuco.
Comenta sobre o início da sua carreira, voltando para a gênese com o coletivo ‘Mau Agouro’, com o qual tive contato através da instalação “Fumografia” e do vídeo “Staircase”.
A ideia de fazer comunicação era uma tentativa de conciliar um emprego regular com uma atividade criativa, sentia que estava em vantagem porque já tinha passado pelo tufão desorientador do início da faculdade, mas quando o curso de publicidade apertou no marketing e afins, fui encontrando pessoas que, além de se tornarem meus melhores amigos, compartilhavam um dissabor com o curso (são eles Priscila Gonzaga, Alberto Lins e Luciana Freire). Passamos a afinar um gosto juntos, falando o que nos incomodava e dava vontade de debochar e uma delas era o "Ágora", um grupo de estudos de jornalismo que organizava umas palestras e coisa e tal. Daí usamos a velha técnica de reaproveitar do nome de algo consolidado, revertendo o significado e dando mais força. Daí surgiu o "Mau Agouro". A ideia do “Staircase”, por exemplo, veio de uma semana de videoarte em que vimos alguns vídeos e durante o debate, eu e Alberto presenciamos a situação acontecer ao vivo: as pessoas ficavam arrepiadas, outras apareciam com mil explicações absurdas, daí começamos a identificar personagens e fizemos um vídeo porque essa situação se replicava na sala de aula, nas defesas de monografia...
Nos cineclubes...
Pois é. Nada mais era que um terceiromundismo, uma precariedade que replicava conceitos importados, alimentando uma espécie de estratégia de integração num status 'intelectualizável'. “Staircase” simulava uma dessas discussões a partir do vídeo de um artista que criamos, o Rob Matahari, dissecando a situação onde cada um assumia uma persona daquelas anteriormente identificadas. Lembro que na época ficamos chateados pelo resultado ser precário, mas hoje achamos que faz todo sentido que seja precário, porque era justamente sobre isso que estávamos falando. Essas experimentações em fotografia e agitações videográficas eram uma forma que tínhamos de resolver aquilo que nos deixava loucos na faculdade. Antes, teve o “Fumografia”, em que pedimos a uma curadora para escrever uma apresentação, pois a instalação funcionava como dispositivo de legitimação onde nos colocávamos como artistas consolidados. O texto nos legitimaria artisticamente e historicamente, mas a curadora não topou, daí criamos uma curadora, criamos um texto super pesado sem pé nem cabeça, forçando uma barra e lidando com uma série de chavões e lugares-comuns dos sistema das artes.
Vi no Twitter alguém colocando que era possível resumir a arte contemporânea em afeto, afeto, afeto, eu, eu, eu, processo.
Pois é, é preciso quebrar com isso. Então, o Mau Agouro foi super importante, depois, a convite de Julia Rebouças e Ana Maria Maia, comecei a participar de um site, o Dois Pontos, que funcionaria como uma espaço de textos críticos sobre artes visuais e uma agenda da cidade. Eu cuidava da parte de fotografia, mesmo que cada um fizesse um pouco de tudo, no entanto, tirar fotos dos trabalhos dos outros era uma coisa que eu curtia, mas que logo começou a ficar muito difícil para mim, porque ao produzir determinadas fotos, às vezes muito fechadas, terminava subvertendo o que era de fato para ser fotografado. Daí fiquei meio chateado, a vontade de fazer uma coisa autoral foi aumentando, até que veio aqui o grupo "Laranjas" que o Cristiano (Lenhardt) fazia parte. O Cris me deu a maior força, na época eu estava estagiando numa agência de publicidade e ele dizia "eu não vejo sentido, você está gastando seu tempo, você é artista, sai fora, não tem nada a ver". Naturalmente eu fui me dando conta o quanto existia uma aura desnecessária entre o artista e a vida. Artista era só o nome. Na minha formação, nos livros, na faculdade, o ser artista trazia um misticismo que está ligado vulgarmente a aura da arte, de modo que soava até pretensioso você dizer que queria ser artista ou que era artista. Não há uma hierarquia nisso. É um jeito de usar a existência como pesquisa constante costurando um jeito que você reconhece a vida e responde ao mundo ou aos problemas ou aos sabores ou aos desejos.
Daí veio o impulso para fazer "Amor e Felicidade no Casamento" como teu projeto de conclusão de curso.
Foi. Eu deixei o estágio, joguei dinheiro no projeto, a ideia era transformar o livro do Fritz Kahn num ensaio fotográfico, daí a coisa tomou uma proporção maior, virou uma espécie de pesquisa fotográfica articulando texto e imagem em que terminei entrando numa análise de fotolegenda, livro de artista, durante o processo tive ideia para dois vídeos ao mesmo tempo em que a casa dos meus pais ia se desfazendo com eles se mudando para um apartamento. Ou seja, tinha um dado de arquitetura e especulação imobiliária que me preocupa mais hoje. O primeiro projeto nasceu assim: "Amor e Felicidade no Casamento", livro de artista editado em fascículos nasceu do encontro com a Yana Parente, uma amiga que estava se formando em Design. Depois o projeto passou num edital da Fundação Joaquim Nabuco, montei minha primeira exposição com um currículo que não era absolutamente o de artista plástico, segurei as pontas de grana e estabeleci um prazo: se eu não conseguisse sobreviver até determinada idade com meu trabalho, iria repensar essa relação.
Relata a experiência da viagem pela América do Sul, o projeto "Condução à Deriva", especialmente pensando no encontro entre expectativas anteriores e posteriores.
Estive em Buenos Aires no final de 2011 - ops, 2001 - ainda quando estudava Direito durante uma convulsão social fortíssima que foi arrebatadora para mim, especialmente porque eu vinha de um semi-desencanto com o movimento estudantil. A cidade estava dando uma resposta espontânea e massiva à crise econômica, foi bastante forte porque estava com os pés no chão, estava ligado à vida, não apenas a um partidarismo desconectado. Daí ao mesmo tempo em que me sentia absolutamente estrangeiro, sentia uma espécie de familiaridade bastante estranha, bastante atravessada. Pela primeira vez pensei na hipótese de latinoamerica ser algo para além de visões teóricas. Daí em 2008, assisti uma palestra da Suely Rolnik em que ela falava sobre um corpo geracional impregnado de uma espécie de amnésia histórica, como se uma geração por ter sofrido diretamente uma ameaça a sua existência desse um recuo na sua produção política, intelectual, criativa e isso se introjetasse de tal maneira, que três gerações depois ainda sofreriam essa intimidação. Três gerações seria mais ou menos a nossa, onde isso pode ser reativado. Daí tomei esse sentimento ambíguo de pertencer e não pertencer como hipótese para “Condução à Deriva” e radicalizei através da proposta de andar por países da America do Sul traçando um reconhecimento de território e sentimento como se toda aquela história, todos aqueles lugares e tradições me pertencessem (sem pertencer).
Numa proposta de fazer um inventário dessas coisas?
Inicialmente sim, a ideia era coletar documentos, objetos, produzir coisas que seriam consideradas um achado histórico diante desse passado, mas o fato é que fiquei absolutamente perdido, os países eram muito diferentes, não conseguia me relacionar direito, só às vezes pipocavam situações de intimidade. No entanto, coletei muito material e quando voltei as coisas começaram a fazer sentido. Alguns trabalhos vieram disso, como o recente “4 mil disparos” que vou apresentar na Bienal de Cerveira, que é um vídeo que fiz na Argentina com Super 8, uma sequência de imagens quadro-a-quadro de rostos de homens anônimos. A sensação é que os trabalhos ainda surgem vinculados com essa época, mesmo que durante o percurso achasse que voltaria com um produto concreto quando na verdade voltei com o material ainda bruto. Foram sete meses de viagem.
Mesmo em trabalhos tão diferentes, o debate sobre a memória perpassa algumas obras, só que não uma memória como resgate, mas entre uma utopia fracassada e uma invenção. Queria que você comentasse sobre esse ponto.
Não sei se é um interesse pela memória ou pela história, decerto é um interesse pelo que é urgente para mim. Sinto que tento responder a esse passado impregnado de descontinuidade, pensar na forma como ele se relaciona com a minha existência, como me toca sensivelmente e de que forma o presente se articula num projeto de futuro e de desejo. As minhas estratégias me dão mais intimidade de tocar em certos assuntos ou experimentar determinadas situações. No caso do ensaio “Amor e Felicidade no Casamento”, o livro original atuava como uma censura de subjetividade e tinha uma espécie de moral que atravessava gerações, de tal modo que inseri mofo nas fotografias como tentativa de controlar a perda da memória, que é absolutamente descontrolada. Queria passar por esse movimento dilacerante das imagens estarem ali, como se certificassem alguma coisa e de repente deixarem de estar, algo que a maioria das famílias passam, a minha passou, até porque você não escolhe o que mofa e o que não mofa. Não queria que o projeto fosse uma denúncia do conservadorismo do livro, mas que carregasse uma ambiguidade em que metade do público ficasse nostálgico e a outra metade revoltada, metade me acusasse de conivente e outra metade de crítico. Gosto que o público se revele quando opta por um entendimento, afinal essa escolha de caminho fala muito sobre ele próprio.
Em “Educação para Adultos”, eu não conseguia saber se aqueles cartazes ativavam uma memória minha, se era induzida pelo projeto ou se roubada de outra pessoa.
Essa sensação me interessa muito, porque falo de uma descontinuidade da história e de uma sensação da nossa geração de não saber se comportar diante do passado, de não saber se localizar, de ser meio desconectado. Na verdade a ideia é achatar tempos e misturar cartazes da década de 1970 que fazem menção a um método que começou nos anos 1960 e trazer um fôlego utópico para 2011 onde não conseguimos responder com a mesma contundência por não existir um inimigo claro, não estarmos mais inseridos num maniqueísmo evidente. No trabalho não é revelado o que é ontem e o que é hoje, porque ontem e hoje é uma pasta só. Hoje separamos por décadas, 1970 é assim, 1980 é assim, daqui duzentos anos vai ser Brasil do século XX.
E a sua residência em Londres?
Era uma convocatória internacional que solicitava projetos que envolvessem um arquivo que possui um vasto acervo de coleções especiais, periódicos raros, livros de artista, daí propus identificar e selecionar imagens quaisquer de arquitetura moderna, suspendendo essas imagens da história e reorganizando-as numa coletânea comentada onde a arquitetura brasileira funcionaria como um cânone em relação à arquitetura européia. Seria meio como uma missão diplomática, amparada por essa euforia econômica, que corrigiria uma escrita da história, revertendo a relação entre centro e periferia. Vou voltar em maio do próximo ano para concluir esse trabalho e montar uma exposição por lá.
E a sua residência em Londres?
Era uma convocatória internacional que solicitava projetos que envolvessem um arquivo que possui um vasto acervo de coleções especiais, periódicos raros, livros de artista, daí propus identificar e selecionar imagens quaisquer de arquitetura moderna, suspendendo essas imagens da história e reorganizando-as numa coletânea comentada onde a arquitetura brasileira funcionaria como um cânone em relação à arquitetura européia. Seria meio como uma missão diplomática, amparada por essa euforia econômica, que corrigiria uma escrita da história, revertendo a relação entre centro e periferia. Vou voltar em maio do próximo ano para concluir esse trabalho e montar uma exposição por lá.
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