segunda-feira, 13 de junho de 2011

Warchavchik e a guinada moderna


Quando se fala em Modernismo no Brasil, em particular sobre a primeira fase do movimento, costuma-se lembrar dos nomes estreitamente ligados ao desenvolvimento da Semana de 1922, como Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Tarsila do Amaral, Anita Malfaltti, Victor Brecheret e Heitor Villa-Lobos. Nomes menos conhecidos, como Menotti del Picchia, Sérgio Milliet ou Guilherme de Almeida, surgem na maioria das vezes apenas para dar volume aos inúmeros artigos, verbetes e livros sobre o assunto, mantendo seus papéis pouco definidos no processo de ebulição política, ideológica e estética da “intelligentsia” brasileira quiçá paulistana. Nesse segundo contexto, incluem-se os imigrantes do período: o suíço Blaise Cendrars e os judeus russos Lasar Segall e Gregori Warchavchik, que foram essenciais para manter um intenso cruzamento entre as vanguardas européias e a modernidade latino-americana. Buscando amenizar a ausência de pesquisas sobre os ‘coadjuvantes’ do modernismo no País e ressaltar a inserção da arquitetura nos debates intelectuais, o Professor da Universidade de São Paulo (USP), o recifense José Lira, desenvolveu a pesquisa de livre docência Warchavchik - Fraturas da Vanguarda. O autor está na Cidade para lançar hoje, às 19 ho­ras, a versão em formato livro na Livraria Cultura.

Amparado em paisagens, retratos e plantas arquitetônicas, “Fraturas da Vanguarda” investe numa detalhada e cronológica descrição contextual da trajetória de Warchavchik. Partindo de Odessa, onde nasceu, conhecida no início do século XX como “a próspera Paris das estepes”, passa pela Itália onde concluiu os estudos, fazendo um grand tour de aperfeiçoamento até finalmente chegar ao Brasil em 1923. O arquiteto exerceu papel estratégico na geografia do modernismo no país, produzindo polêmicos artigos onde não distinguia o combate artístico do político, fundando seu pensamento no compromisso com a racionalização da construção, diminuição dos adornos decorativos, introduzindo novos materiais e prezando pelo conforto dos moradores (sua produção teórica foi reunida em Arquitetura do Século XX). José Lira traça uma perspectiva onde a história da arquitetura é apropriada enquanto história da cultura, ressaltando a ligação umbilical entre essa disciplina e os fluxos e refluxos da urbanização. Warchavchik foi um dos elos para que o projeto modernista se firmasse como projeto cultural do país na segunda metade da década de 1920, especialmente depois de construir as primeiras casas modernistas brasileiras (am­bas em São Paulo capital): uma na rua Santa Cruz (1928, imagem acima) e a outra na rua Itápolis (1930, imagens abaixo). O estilo em ques­tão é marcado pelo dilema entre as ‘belas artes’ e as várias formas de regionalismo, adaptando a Bauhaus e os pro­jetos arquitetônicos de Le Corbuiser, Adolf Loos e Walter Gropius ao contexto de país tropical.

A partir daí, o livro acompanha a legitimação do arquiteto tão criticado no início de seus trabalhos, percorrendo as inúmeras residências construídas para a alta sociedade paulistana, os conjuntos de casas econômicas que ramificaram o alcance social, seus trabalhos no Rio de Janeiro, onde fez a exposição do “Apartamento Moderno”, além da vila operária da Gamboa, em parceria com Lúcio Costa (responsável pelo plano piloto da cidade de Brasília). José Lira comenta que seu empenho foi o de observar “construções a uma só vez singulares e relativas, valorizando em sua análise processos e dispositivos que as repunham no espaço e no tempo, na história da arquitetura e nas fronteiras da disciplina, no passado e no presente”. Destaca, assim, a dinâmica criativa em cada uma das fases da carreira de Warchavchik.

Exposição de uma casa Modernista

Na casa de Itápolis (1930), War­­chavchik eliminou corredo­res para ampliar os cômodos, de­limitou janelas para modular a luz natural e instituiu o concei­to de “casa em exposição“, a­brin­do as portas aos visitantes du­rante um mês. A festa de i­nau­gu­ração teve a presença de sua mulher Mina Klabin, res­ponsável pelo jardim sertane­jo, de Oswald e Mário de Andra­de; a decoração da casa con­tou com pinturas de Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e Lasar Segall, aquarelas de Di Cavalcanti, Cícero Dias, escultura de Bre­cheret, móveis e luminárias desenhadas pelo próprio Warchavchik e tapetes do Bauhaus. Além disso, dos livros recentes de Manuel Bandeira e Ascenso Fer­­reira aos detalhes ornamentais de John Graz ou a colcha de cama de Regina Gomide, todos os objetos vinham assinados por alguém. O evento é considerado o segundo mais im­portante do modernismo bra­sileiro e se tornou referência para similares contemporâneos.


Entrevista: José Lira

1. Como surgiu o interesse para desenvolver essa pesquisa sobre Warchavchik?

Desde o doutorado, que defendi em 1997, vinha pesquisando os debates em arquitetura e urbanismo nos anos 1920 e 30. Em especial no Recife. Na época, estava interessado na problematização social e cultural da cidade e do urbanismo, da habitação, da arquitetura popular e evidentemente me detive nas posições dos modernistas e regionalistas pernambucanos. Fixado em São Paulo desde 1991, o contraponto entre Gilberto Freyre e Mario de Andrade foi se configurando com mais clareza. Comecei a trabalhar suas bibliotecas e fontes de arquitetura e urbanismo, suas leituras e idéias a respeito. Em São Paulo, assim como no Rio de Janeiro, e mesmo em outras cidades do Brasil, Warchavchik assumiria um lugar emblemático entre o final dos anos 1920 e inicio dos 30. Suas casas como que assinalavam a passagem da ruptura de 22 à estabilização de um moderno nacional, uma espécie de metonímia da passagem entre o momento destrutivo e um projeto “construtivo” na cultura brasileira. Queria pensar criticamente esses significados, analisar historicamente sua trajetória e obra. E de resto, apesar de onipresente no imaginário modernista brasileiro, e não somente arquitetônico, não havia um trabalho sequer sobre ele.

2. Gostaria que você comentasse um pouco sobre o seu trabalho com fontes diretas em arquivos e acervos. Soube que você chegou a viajar para Odessa (onde ele nasceu) e para Itália (onde concluiu sua formação e deu os primeiros passos na carreira profissional).

Pois é, o trabalho foi ganhando fôlego a partir de 2007, quando graças ao apoio do CNPq, da USP, e da FAPESP, pude viajar a Ucrânia e a Itália a procura de informações mais precisas sobre seu ambiente de formação. Um colega do Departamento de Literatura Russa da USP emprestou-me um belo ensaio sobre a história de Odessa, apresentou-me o Boris Schnaiderman, que passou a infância em um imóvel ao lado das grandes escadarias, do Encouraçado Potenkim, até então minha única imagem da cidade. Através deles fui me acercando desse universo. Escrevi para a autora daquele livro, uma professora americana aposentada por Brown, Patricia Herlihy, obcecada pela Ucrânia. Ela me apresentou a outra professora aposentada, da Universidade de Odessa, Valeria Kukharenko, que me abriu inúmeras portas nos museus, nos arquivos, nas bibliotecas da cidade. Tudo isso por e-mail. Até o desembarque. Lá eu tive a ajuda de uma intérprete evidentemente. Tudo isso num ritmo, numa intensidade, os imprevistos, os acasos, a generosidade dos profissionais e instituições odessitas - uma cidade que descobri viver profundamente a aura de um cosmopolitismo perdido – tudo isso enfim foi muito emocionante descobrir. E os arquivos de lá, graças à proverbial burocracia czarista e soviética, são impressionantes. Na Itália, os canais de acesso eram mais imediatos. Seja pela língua ou a história, seja pelos contatos diretos que alguns de meus colegas abriram em Roma e Florença. A pesquisa lá também foi muito proveitosa, apesar de certa negligência das instituições, inclusive da universidade, com a documentação. O que achei assustador, mesmo para os parâmetros brasileiros. Algumas vezes chegava a ser muito aflitivo.

3. Como as casas modernistas atravessaram o século XX (especialmente a da rua Santa Cruz e da rua Itápolis)? Como estão hoje? (Soube que teve comemoração dos 80 anos no ano passado e em 1998)

Das várias “casas modernistas”, digamos assim, construídas no Rio e em São Paulo entre 1927 e 1932, restaram apenas 3. Todas em São Paulo: a da Santa Cruz, na Vila Mariana, a da Itápolis e a da rua Bahia, ambas no Pacaembu. A da Santa Cruz, que ficou conhecida como a primeira obra modernista a ser construída no Brasil, em 1927, foi desapropriada pelo Estado no início dos anos 1970 e virou patrimônio cultural da cidade, hoje inclusive patrimônio nacional. Contudo, por décadas foi abandonada, ainda que o parque, a seu redor, tenha se tornado uma importante área verde pública do bairro da Vila Mariana. Por muitos anos, falou-se em restaurá-la, foram feitos estudos a seu respeito, abriram-se polêmicas, mas nada. A casa tornou-se quase uma ruína. Recentemente, a prefeitura empreendeu uma recuperação do imóvel, mas o restauro foi de péssima qualidade, para dizer o mínimo. E pior, a Secretaria Municipal de Cultura não perdeu muito tempo em pensar um uso adequado, mais intenso, mais articulado do edifício. A da rua Itápolis permanence com a família Klabin Warchavchik. Um dos netos do arquiteto recentemente a restaurou para sua própria residência. Um trabalho muito cuidadoso. Inclusive para a inauguração, em 2010, organizamos uma exposição comemorativa dos 80 anos da 1a. Exposição de uma Casa Modernista. A da rua Bahia também está muito bem conservada, apesar de o interior ter sido um tanto quanto alterado para servir ao uso empresarial a que hoje ela se destina. Sobreviveram também os 3 conjuntos de casas em série, os de São Paulo bem preservados, o do Rio, na Gamboa, em estado deplorável. E há também, várias outras obras de Warchavchik em São Paulo, no Guarujá, em Santos etc. Mas não daquele período.

4. Queria que você comentasse a relação entre o pensamento arquitetônico de Warchavchik e o processo de verticalização desordenada em cidades periféricas como Recife.

Primeiro não diria que o Recife é uma cidade periférica, aliás seja do ponto de vista cultural, seja social e economicamente a cidade é hoje de uma vitalidade apreciável. O que por certo produz coisas boas, mas também a mesma sorte de mazelas que encontramos em uma cidade como São Paulo. Verticalização imprevidente do ponto de vista da qualidade de vida nos bairros; abandono das áreas centrais de verticalização, serviços e infra-estrutura consolidadas, e mal aproveitadas; exploração máxima e mesquinha das regras e (das brechas) das leis de uso e ocupação do solo; desrespeito ao patrimônio histórico, demolições ou abandono de antigas construções, inclusive de exemplares nem tão antigos, de excelente arquitetura, também moderna - como mostrou o “Obituário arquitetônico de Pernambuco”, organizado pelo professor Luís Amorim, da UFPE -, desrespeito aos recursos naturais, aos rios, córregos, coberturas vegetais, algo assustador, e não só no Recife; e mais do que isso, incapacidade ou desinteresse dos poderes públicos de organizarem o crescimento, a renovação urbana, o mercado . Eu diria que a relação que podemos tecer entre a obra de Warchavchik e as condições contemporâneas da urbanização, vem menos do estudo de seu pensamento do que de sua trajetória efetiva. Afinal ele respondia a um cenário de urbanização diverso, a demandas e pressões diversas das que hoje encontramos. Ao olhar sua trajetória tentei entender justamente como o arquiteto, na diversidade de papéis que ele assumiu ao longo de sua carreira (figura anônima ou expoente de vanguarda, profissional liberal ou empresário do setor de construção), efetivamente se insere nas conjunturas econômicas, sociais e culturais que o cercam, e pode dar respostas válidas, mais ou menos bem sucedidas. De modo geral, o que pretendi abordar com Warchavchik foi o lugar dos arquitetos na produção da cidade e na vida urbana.

5. Como você nasceu em Recife, mas mora em São Paulo, acho que vai se sentir os efeitos dessa verticalização. Tanto o impacto paisagístico, quanto cotidiano. Queria saber como você, enquanto professor de Arquitetura e cidadão, enxerga esse processo.

Eu moro em São Paulo há vinte anos, mas me formei em arquitetura no Recife. Além disso sou filho de uma arquiteta pernambucana, que militava no IAB-PE por um comprometimento maior dos arquitetos com as questões sociais e ecológicas. Com ela, desde pequeno aprendi a olhar para o Recife, e não apenas para sua arquitetura ou por amor à cidade. Volto ao Recife com frequência e me sinto cidadão dela. Acho estarrecedor o ritmo de exploração e consumo da cidade nos últimos anos, o ritmo imobiliário, o desmatamento de bairros inteiros, a má qualidade dos espaços públicos, a forma parasitária como se trata o patrimônio histórico, a praia, os rios, os mangues. Evidentemente a responsabilidade não é apenas dos arquitetos, nem somente dos recifenses. Em todo caso a qualidade dos projetos públicos, de equipamentos, das infra-estruturas, sistemas de circulação e transportes, praças, conjuntos habitacionais, está muito aquém do que se conquistou no Brasil (e também em Pernambuco) em termos de cultura arquitetônica e urbanística. E muito aquém do que se afigura ou se propõe hoje como novas possibilidades de investimento público no país. Quem são os arquitetos e planejadores do PAC, da Copa, das Olimpiadas? Quem são os profissionais que estão trabalhando em nossos novos polos de desenvolvimento? Porque essas questões não são debatidas publicamente, nos meios de comunicação, nas universidades, nos organismos profissionais?

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