terça-feira, 28 de junho de 2011

Todos os sonhos inacabados de Mildred Pierce


(Publicado originalmente no Filmologia)

I

EMPREGADO: Governanta?
MILDRED: Sim!
EMPREGADO: PORTA DOS FUNDOS!


De uma maneira ou de outra, todos nascemos sob o semblante de um berço e por mais que não lembremos o quilate do ouro ou da palha, se selecionarmos direitinho, alguns certamente freqüentaram escolas caras, foram educados numa vizinhança agradável, estiveram sempre bem vestidos e cercados de colegas e bonecos perfumados. Depois foram lá, completaram 18, 27 ou 32 anos sem deixarem a casa dos seus genitores – no alto de algum edifício ou numa casa de quatro quartos e cinco suítes – fizeram parte da graduação fora do país, começaram a "trabalhar" por indicação de seus tios até encontrarem maridos ou esposas de ‘níveis’ similares para, enfim, passarem pela vida inteira sem compreenderem o significado de ‘saber se virar’ (ou mesmo sentirem um leve gosto de ‘limiar social’). Há uma espécie de burguesia cujo permanente envolvimento familiar se baseia na segurança de que alguém, previamente, estará sempre ali para ser o responsável por suas contas e gastos (das roupas, da gasolina ao papel higiênico querido de cada dia). No entanto, por mais que esse exemplo seja completamente caricatural e um objeto redondo para análises - ou gritarias - marxistas superficiais, a custódia estabelecida logo cedo entre pais e filhos em níveis socioculturais bastante diversos não é tão ingênua se prolongada indefinidamente. Tem, aliás, o seu preço muito bem definido dentro de uma crítica não só estética da mercadoria: uma obediência vale um carro ou uma bicicleta ou um skate; passar por média, uma viagem ou um passeio no zoológico ou um brinquedo reciclado. Não demora muito até termos em pleno funcionamento um sistema de trocas, um negócio baseado numa chantagem silenciosa e emocional onde as pequenas liberdades cotidianas – um enclausuramento exponencial – são trocadas por lampejos controlados de sonho (“você pode ser o que quiser, menos o que não quisermos que você seja” ou “você pode fazer o que quiser, menos o que não quisermos que você faça”).

Nesse processo, caso os filhos não reajam, não ganhem o mundo por si mesmos e se emancipem, ficarão naturalmente mais infantilizados e dependentes, seguindo o propósito normativo e punitivo das decisões de seus patronos. Claro que essa dependência também segue o caminho contrário, das mães que parasitam sobre os filhos como Mildred Pierce, personagem da mini-série homônima dirigida por um Todd Haynes inundado de carinho por Douglas Sirk, que deposita na jovem Veda, as suas frustrações, seus sonhos inacabados, apostando todas suas forças no velho clichê familiar de dar a filha “tudo aquilo que eu não pude ter”. Assim, Veda tem aulas de piano desde cedo, anda sempre muito bem vestida, embarca numa educação refinada que justamente a faz oscilar entre o cínico e pomposo repúdio a tudo o que a mãe representa e a submissão bem ou mal ao estúpido desejo materno. Acontece que, seguindo a linha de pensamento do filósofo Jean Baudrillard, a partir da expansão dos horizontes financeiros e formativos, maiores, mais audaciosos e mais classistas serão as esferas das escolhas (ainda que as frases finais do parágrafo anterior continuem valendo). O fato é que a filha, ainda que aja como se fosse livre enquanto está presa numa injunção do pensar, nunca respeitaria a mulher desquitada de classe média que perdeu dinheiro, ganhou montantes, ficou rica, declarou falência, mas não deixou de lado seus costumes básicos. De algum modo, mesmo durante o período mais próspero, Mildred continuou a ser identificada por seus modos, digamos, ‘subalternos’; uma mesquinharia com notas de R$ 50 em relação ao marido, uma preocupação excessiva com a comida; uma falta de tato para decoração; uma mão suja de trabalho honesto na cozinha. Honesto ou não, para os ‘nobres’, para seu amante Monty Beragon e para Veda, trabalho é trabalho; o menosprezo é o mesmo. Há uma cena em que todas estão ocupadas: Mildred, a ajudante, a filha mais nova e Veda aparece apenas para dar uma olhadinha, mira como quem encara seus empregados, caminha até um recipiente com chocolate, coloca a mão e prova. Seu ar petulante, sua forma de cruzar as pernas deixam transparecer um permanente menosprezo por tudo que a cerca.

Seja como for, Mildred Pierce estava pronta para atravessar a vida sem precisar visitar o porão ou o quarto de hóspedes da sociedade, refugiada na cozinha, no avental que deixa suas pernas tão sensuais, no avental como instituição da classe média norte-americana, no deleite de fazer tortas e na singela ânsia pela permanência das estruturas sociais. A burguesia, pequena, média ou grande, sempre trabalhou arduamente para o melhor reconhecimento dos seus, festinhas diárias em todas as cidades só confirmam isso, os outsiders continuam outsiders mas fingimos viver num projeto utópico de integração. Contudo, diante da separação do marido, da falta de dinheiro, a protagonista precisou encarar face-to-face a busca de um emprego sem ter qualificação, sem nunca ter necessitado; teve de dar duro no batente para impor um destino diferente a sua filha e manter levantados os olhos e ampliados os horizontes de sonhos (de Mildred para ela, claro). Desde o primeiro passo nessa direção, Mildred lidou com um confronto de classes dentro do seu próprio corpo – um microespaço político, pendente – apontando toda dificuldade em descer os degraus sociais sem ter de largar o salto de lado. Nas promessas do sonho americano até A Grande Depressão só eram apresentadas as possibilidades de ganhos, essa mudança ou abalo no status quo funcionou peculiarmente ou mesmo contraditoriamente no intuito de aguçar e refinar a visão de uma simples dona-de-casa para com as engrenagens do sistema capitalista e a localização dos indivíduos, mão-de-obra ou não, dentro delas. Veda, no seu casulo de seda, no seu olhar oblíquo em plongée permanece durante praticamente as cinco horas como ponto cego.

O primeiro dos embates internos de Mildred acontece quando ela é confrontada a usar um uniforme: a indumentária sempre foi um dos meios mais antigos de diferenciação e organização entre os indivíduos, séculos atrás era inclusive considerado crime se algum camponês fosse pego com peças da nobreza. Além disso, a vestimenta responde sozinha a pergunta central da sociedade burguesa (“O que você faz?” que justifica "quem você é") sem precisar de um punhado de palavras. Nesse momento “entre a barriga e o orgulho”, Mildred termina escolhendo a barriga com toda dificuldade, mesmo não abandonando uma consciência de classe – Lukács discordaria aqui * – que a acompanha e se manifesta ao longo de sua trajetória em busca de um emprego. Quando segue para uma mansão no intuito de preencher uma vaga de governanta ou ao menos sacar qual era a proposta, o empregado abre a porta e solta: “Governanta?”. Mildred responde “sim” e se encaminha para entrar. O empregado então fala num tom acima: “PORTA DOS FUNDOS” repreendendo a candidata por tentar atravessar a porta da frente. Decerto é nessa entrevista onde os pequenos ritos ganham uma instância de fenômeno: a madame explica a Mildred que a diferença entre as classes é postulada desde os pequenos gestos, repreende ela por atitudes bestas, sentar sem a dama mandar, ficar em pé quando a dama manda sentar, escuta que terá de morar na mansão, poderá trazer as filhas “mas claro que a confraternização entre as crianças delas não será tolerada”. Mildred, que tanto estava enojada pelas classes inferiores, com seus maus hábitos, gorjetas e uniformes, sente-se ainda mais violentada quando finalmente se depara com o terror comportamental e relacional das classes acima. Qualquer mínimo poder precisa ser exercido nos mínimos e abusivos atos para se legitimar enquanto tal.

II

VEDA: “Parece que os camponeses tomaram conta da casa”
MILDRED: “Você sabe o que é um camponês?”
VEDA: “Camponês é uma pessoa de péssima educação”


É então que Mildred decide se “rebaixar”, seguindo o comentário da própria filha ao tratar do novo emprego da mãe como garçonete. "As tortas não eram o bastante". Semanas depois, quando Veda, por puro sadismo, obriga uma assistente da mãe a vestir o uniforme dentro da residência, Mildred fica raivosa, sabe que a filha tinha descoberto seu emprego mantido a sete chaves por ‘vergonha’, supostamente referendando a existência de trabalhos mais e menos honestos, como se o salário não apenas estabelecesse uma hierarquia socioeconômica, mas especialmente uma distinção moral. A desculpa da mãe é estar aprendendo o funcionamento da 'máquina' por dentro para se tornar uma empresária, ou seja, voltar a destacar a sua respeitabilidade através do que faz. Quando Mildred deixa de ser garçonete para ter uma rede de restaurantes, desde a inauguração do primeiro, ou seja, quando vira ‘a chefe’, naturalmente o uso do uniforme pelas suas empregadas deixa de chamar a sua atenção. As próprias empregadas são relegadas ao décimo oitavo plano de modo que no máximo rola um elogio aqui, um agrado ali e só. O dilema entre as classes só nos aparece quando nos atinge, por isso o termo ‘limiar social’ no início do texto é tão importante: mesmo os envolvidos no campo da militância poucas vezes conseguem desvincular suas ações do patriarcalismo e da missão de fé, como se a relação de classe se perpetuasse através do 'riquinho' que ajuda o 'coitadinho'. O filósofo Slavoj Zizek repete incansavelmente em seus livros que mantemos de maneira sigilosa uma crença de que vivemos numa sociedade pós-classe e pós-ideológica no intuito de neutralizar uma condição dos indivíduos marginalizados, perpetuando uma ideologia compartilhada que assenta os estratos sociais e amputa os instintos de revolta. A consciência de classe burguesa é o atual regime de permanências.

Podemos aproveitar aqui uma pergunta básica: por que Mildred e não outra garçonete qualquer do ramo abriu um restaurante? Não é por sua personalidade, por sua constituição pró-ativa, porque é interpretada por Kate Winslet (talvez seja!) ou mesmo porque ‘tem um talento’ (fazer tortas?!), mas pela ligação classista - ela deixou o salto alto de lado, mas não o jogou fora - e está imbricada num sistema de articulações que envolvem indivíduos que facilitam sua vida em todas as pequenas e desprezíveis esferas. Daí é só desejar e ligar para o advogado, desejar e ligar para o amigo influente, desejar, desejar, desejar, retificando novamente o que Zizek defende: no capitalismo cultural, ‘as relações sociais’, em sua própria fluidez e rede de indicações, é o próprio objeto de comércio e da troca. A mini-série, sem dúvida, estabelece uma afetiva ligação entre um gênero canonizado como burguês, o melodrama resgatado, e uma série de insights para uma leitura marxista do espectador. Tomando a gênese do trabalho como tema central. Haynes acompanha desde o passo a passo da feitura de uma torta caseira, passando pelo funcionamento e comportamento de um restaurante suburbano até as instâncias de ampliação de uma rede de estabelecimentos comerciais para pontos fora da cidade. Provavelmente nunca vimos tantas mãos em cena, em sequência, tantas obrigações esquadrinhadas, gerando um contraponto à imagem talhada pelo cineasta de ensaios, Harun Farocki, em seu média "Workers Leaving the Factory", onde defende que a história do cinema começa depois da jornada de trabalho, como se a vida começasse no abandono desta realidade, como se algo puxasse os operários apressados para fora. Mildred se vincula ao mundo de relações em que o trabalho não se distingue da vida, não são dois momentos distintos, aproxima-se do nosso dia a dia onde cada abertura de e-mail e cada resposta é um minuto a mais de trabalho, onde as jornadas já não podem ser contadas apenas pelo ponto de chegada e saída. Isso para não falar de todos mercadinhos, restaurantes e pousadas que funcionam nas residências dos próprios donos.

Além disso, Haynes adentra em agendas cada vez mais lotadas, no sonho proletário de uma tarde de sono num dia de semana, desenvolve personagens com diferentes relações com o ato de trabalhar e, ainda no início, nos faz vislumbrar o tamanho do seu interesse nesse campo. Quando Mildred espera na fila para saber se há uma vaga disponível para seu perfil (que claramente é um perfil de exceção, uma mulher de classe média só podendo ser secretária), a Glendale, 1931, aponta para qualquer bairro suburbano contemporâneo, pois o rápido travelling pelos rostos desamparados são similares aos de quaisquer Agências do Trabalho, órgão público, em que já emprestei minha força produtiva, destinado a encaminhar pessoas para vagas disponíveis do mercado. Durante os quinze meses de serviço, não deixei de perceber que alguns rostos na fila eram os mesmos, muitos reclamando por não terem tido chance no passado, outros por não terem cursos para colocarem nos currículos, uns escutando o fato de não serem qualificados o suficiente, outros lamentando a perda de um parente gestor, inúmeros acordando para a condição de serem velhos demais, outros que eram novos demais e não tinham experiência. Absolutamente todos apartados do sonho infantil ‘do que queriam ser quando crescessem’; estavam ali, sentados, dia após dia esperando por qualquer coisa e salário – garçonete, ascensorista, gari, um salário mínimo, menos que isso – e fundando aquele espaço como um dos mais melancólicos templos capitalistas. O diametralmente oposto ao Shopping Center.

Mildred tem um pouco desse sonho incompleto, só possível de ser realizado através de Veda e é por isso que sua filha é tão cruel, surge desde pequena como uma imanente força maligna que se posiciona para além da equação dicotômica ‘subalternos / hegemônicos’ ou ‘proletariado / burguesia’. “Há algo de nobre nela” e se existem nas classes sociais um determinado código de conduta que os diferenciam, uma construção da idéia de dignidade, honra, noções que constituem um padrão moral de códigos compartilhados, que também os aproximam em casamentos quase arranjados, existem pessoas que parecem estar além desses padrões, que unem determinada ilusão grandiloqüente com uma postura intelectual que as engrandece. Essa é Veda, cuja primeira aparição numa foto simpática não nos dá sinal da menina nos seus onze, doze anos, que independentemente onde more ou o que faça ou o que beba, sempre terá sua ‘classe’ – em ambos os sentidos – muito bem definida, sempre desprezará os mais pobres e burros que ela, sempre manterá o seu ar superior, seu olhar atrevido e mesmo diante de uma dificuldade de estima enorme ou mesmo a beira da depressão por não ser talentosa o bastante, continuará acreditando piamente que todas as pessoas do mundo estão ali para lhe servir. E talvez ela esteja certa, não seja apenas um sintoma de transtorno de personalidade antissocial (sociopatia), pois mesmo depois de todas as humilhações possíveis, Mildred continua até o fim, quase sem forças, apoiando a filha para manter vivo seu sedutor jogo de espelhos. Como algumas mães, sua felicidade em escutar alguém traçando semelhanças entre ambas não reside apenas no símbolo umbilical, mas na certeza obsessiva de que a filha é uma pessoa melhor independentemente da personalidade que tenha. Enquanto isso, Veda despreza todos julgados como mais estúpidos, ou seja, todas as pessoas do mundo.

III

IDA: "Expliquei-lhe que já não és tu, Mildred, que fazes as tortas. E ele respondeu-me: "Porque não? Ela ainda tem mãos, não tem?"

A mini-série não trata apenas do embate entre a falência e reinvenção do sonho americano através da heroína capitalista ‘deixada’ pelo marido (fissurando o machismo, claro**) ou de uma dona de casa de classe média que olha o próprio corpo no espelho, solta um desabafado “grande instituição americana” e vai à luta. Acontece que o ponto de convergência está na instância sempre à espreita, sempre escondida de Veda, presença diabólica, olhos brilhantes, a filha que funciona como depósito maligno de todo mundo melhor que as mães desejam (incluindo companheiros simpáticos e abastados). No último episódio, mãe e filha estão distantes há meses, quando Mildred descobre que Veda está cantando no rádio: incrível como Haynes se apropria da voz da mulher enquanto presença fantasmática que acompanha a mãe em todos os planos, sendo concretizada com a sua aparição na festa do segundo casamento de Mildred, cantando diretamente para ela. Mildred não só aceita a volta de Veda como só falta se ajoelhar e agradecer o retorno da filha – há algo de O Criado, de Joseph Losey aí – e mesmo sendo ‘a heroína que dá a volta por cima’, um belo exemplar de capitalista e do ciclo do capitalismo, diante da filha, Mildred se comporta como se fosse, e nos diz Zizek sobre as novas formas de poder, um pato que segue voluntariamente para o abatedouro. No caso da protagonista, ela ainda beija a filha na boca. Na consciência de classe que ambas compartilham e se distinguem, Veda surge a todo o momento dotada de autoridade para estar e não estar dentro das regras, subvertendo ou participando das convenções, de modo que na relação de dependência, Veda no lugar de Veda, quase tudo pode; Veda como sonho inacabado de Mildred, tudo pode; Mildred no lugar de Mildred, quem se importa…

Dentro dos primeiros planos, quando as personagens flutuavam acima das emoções, ambas fingiam estar numa realidade paralela a de suas próprias vidas. Todavia Mildred logo perde a pose, vomita ainda no primeiro episódio, perde a outra filha no segundo, enquanto Veda demora um pouco mais, cobra que é, pessoa fria que é, bruxa que é, só estremecendo perto do final da mini-série quando é esganada pela mãe, vomita, bate num piano e cai seminua no chão. No limite de suas potências físicas e morais, no confronto direto de corpos e no rompimento – não definitivo – da dependência da mãe em relação a filha, do círculo vicioso e parasitário, no abandono do cinismo eterno e de todas as eternidades ou verdades, na negação das origens carnais e simbólicas, no contraponto aos refúgios da razão, eufemismos e hipérboles da classe média, Mildred e Veda no ato final de violência exercem, mais do que nunca, a condição de serem humanas, demasiadamente humanas. E pensar que toda saga trabalhista de Mildred começou com a acusação de roubo de uma gorjeta por parte de uma funcionária de um botequim qualquer.

* Num texto que data da década de 1920, Lukács, completamente guiado por sua ideologia marxista, defende que a burguesia é incapaz de constituir uma ‘consciência de classe’, algo que estaria para além de uma reles conjunção de crenças individuais, constituindo então uma espécie de ‘falsa consciência’ que não encampa as transformações no processo histórico (função que ele destina obviamente ao proletariado). Doravante, para mim, com o século XX em nossas costas, com todas incorporações capitalistas de tudo que lhe fora oposto, é importante pensar como a negação do eternamente prometido fluxo social interno da sociedade, ou seja, uma luta pela permanência das mesmas pautas e estruturas tem um forte vínculo ideológico burguês e é, decerto, conseqüência de uma ‘consciência coletiva’ de quem detém o poder.

** Essa ruptura no machismo é legitimada não apenas pela força encravada nas duas personagens femininas, mas especialmente através dos personagens masculinos que ocupam o espaço decadentista: o primeiro marido é um burguês falido que perdeu toda boa vida graças a crise econômica em 1929; já o segundo, Monty Beragon, representa a nobreza perdida, que precisa hipotecar os bens, pouco se diferencia de um gigolô ou malandro, ainda que não perca a pose e continue tomando os ‘bons drink’. Deixa de ser rico, mas não abandona a aparência. Segue verso a verso o poema de Ascenso: "hora de comer — comer! / Hora de dormir — dormir! Hora de vadiar — vadiar! Hora de trabalhar? — Pernas pro ar que ninguém é de ferro!" No caso do segundo, a diferença é o desejo que sua postura desperta em Mildred, por ser de uma tradição classista superior, e em Veda, que o enxerga como companheiro de status. Aliás, em inúmeros momentos da mini-série, a câmera compartilha de uma possível visão subjetiva da filha ainda pequena espreitando o sexo da mãe com Monty, colocando um olhar perverso em nossas cabeças. Depois Veda cresce, deixa de ser momentaneamente a menina pródiga, o mundo já não lhe pertence, o ímpeto arrogante é substituído pela insegurança. Portanto, quando o mundo descobre seu talento novamente, Veda retorna numa versão 2.0, de tal forma que sua consciência de classe compartilhada com Beragon transpassa a impressão de que desde a infância, ambos estavam tramando a vingança final para Mildred.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

seu anastácio center

o nome do bar,
"achei bar".
o nome da lan,
"disney lan".
e na fachada do "cabelos maguila",
uma foto da marilyn monroe.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Warchavchik e a guinada moderna


Quando se fala em Modernismo no Brasil, em particular sobre a primeira fase do movimento, costuma-se lembrar dos nomes estreitamente ligados ao desenvolvimento da Semana de 1922, como Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Tarsila do Amaral, Anita Malfaltti, Victor Brecheret e Heitor Villa-Lobos. Nomes menos conhecidos, como Menotti del Picchia, Sérgio Milliet ou Guilherme de Almeida, surgem na maioria das vezes apenas para dar volume aos inúmeros artigos, verbetes e livros sobre o assunto, mantendo seus papéis pouco definidos no processo de ebulição política, ideológica e estética da “intelligentsia” brasileira quiçá paulistana. Nesse segundo contexto, incluem-se os imigrantes do período: o suíço Blaise Cendrars e os judeus russos Lasar Segall e Gregori Warchavchik, que foram essenciais para manter um intenso cruzamento entre as vanguardas européias e a modernidade latino-americana. Buscando amenizar a ausência de pesquisas sobre os ‘coadjuvantes’ do modernismo no País e ressaltar a inserção da arquitetura nos debates intelectuais, o Professor da Universidade de São Paulo (USP), o recifense José Lira, desenvolveu a pesquisa de livre docência Warchavchik - Fraturas da Vanguarda. O autor está na Cidade para lançar hoje, às 19 ho­ras, a versão em formato livro na Livraria Cultura.

Amparado em paisagens, retratos e plantas arquitetônicas, “Fraturas da Vanguarda” investe numa detalhada e cronológica descrição contextual da trajetória de Warchavchik. Partindo de Odessa, onde nasceu, conhecida no início do século XX como “a próspera Paris das estepes”, passa pela Itália onde concluiu os estudos, fazendo um grand tour de aperfeiçoamento até finalmente chegar ao Brasil em 1923. O arquiteto exerceu papel estratégico na geografia do modernismo no país, produzindo polêmicos artigos onde não distinguia o combate artístico do político, fundando seu pensamento no compromisso com a racionalização da construção, diminuição dos adornos decorativos, introduzindo novos materiais e prezando pelo conforto dos moradores (sua produção teórica foi reunida em Arquitetura do Século XX). José Lira traça uma perspectiva onde a história da arquitetura é apropriada enquanto história da cultura, ressaltando a ligação umbilical entre essa disciplina e os fluxos e refluxos da urbanização. Warchavchik foi um dos elos para que o projeto modernista se firmasse como projeto cultural do país na segunda metade da década de 1920, especialmente depois de construir as primeiras casas modernistas brasileiras (am­bas em São Paulo capital): uma na rua Santa Cruz (1928, imagem acima) e a outra na rua Itápolis (1930, imagens abaixo). O estilo em ques­tão é marcado pelo dilema entre as ‘belas artes’ e as várias formas de regionalismo, adaptando a Bauhaus e os pro­jetos arquitetônicos de Le Corbuiser, Adolf Loos e Walter Gropius ao contexto de país tropical.

A partir daí, o livro acompanha a legitimação do arquiteto tão criticado no início de seus trabalhos, percorrendo as inúmeras residências construídas para a alta sociedade paulistana, os conjuntos de casas econômicas que ramificaram o alcance social, seus trabalhos no Rio de Janeiro, onde fez a exposição do “Apartamento Moderno”, além da vila operária da Gamboa, em parceria com Lúcio Costa (responsável pelo plano piloto da cidade de Brasília). José Lira comenta que seu empenho foi o de observar “construções a uma só vez singulares e relativas, valorizando em sua análise processos e dispositivos que as repunham no espaço e no tempo, na história da arquitetura e nas fronteiras da disciplina, no passado e no presente”. Destaca, assim, a dinâmica criativa em cada uma das fases da carreira de Warchavchik.

Exposição de uma casa Modernista

Na casa de Itápolis (1930), War­­chavchik eliminou corredo­res para ampliar os cômodos, de­limitou janelas para modular a luz natural e instituiu o concei­to de “casa em exposição“, a­brin­do as portas aos visitantes du­rante um mês. A festa de i­nau­gu­ração teve a presença de sua mulher Mina Klabin, res­ponsável pelo jardim sertane­jo, de Oswald e Mário de Andra­de; a decoração da casa con­tou com pinturas de Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e Lasar Segall, aquarelas de Di Cavalcanti, Cícero Dias, escultura de Bre­cheret, móveis e luminárias desenhadas pelo próprio Warchavchik e tapetes do Bauhaus. Além disso, dos livros recentes de Manuel Bandeira e Ascenso Fer­­reira aos detalhes ornamentais de John Graz ou a colcha de cama de Regina Gomide, todos os objetos vinham assinados por alguém. O evento é considerado o segundo mais im­portante do modernismo bra­sileiro e se tornou referência para similares contemporâneos.


Entrevista: José Lira

1. Como surgiu o interesse para desenvolver essa pesquisa sobre Warchavchik?

Desde o doutorado, que defendi em 1997, vinha pesquisando os debates em arquitetura e urbanismo nos anos 1920 e 30. Em especial no Recife. Na época, estava interessado na problematização social e cultural da cidade e do urbanismo, da habitação, da arquitetura popular e evidentemente me detive nas posições dos modernistas e regionalistas pernambucanos. Fixado em São Paulo desde 1991, o contraponto entre Gilberto Freyre e Mario de Andrade foi se configurando com mais clareza. Comecei a trabalhar suas bibliotecas e fontes de arquitetura e urbanismo, suas leituras e idéias a respeito. Em São Paulo, assim como no Rio de Janeiro, e mesmo em outras cidades do Brasil, Warchavchik assumiria um lugar emblemático entre o final dos anos 1920 e inicio dos 30. Suas casas como que assinalavam a passagem da ruptura de 22 à estabilização de um moderno nacional, uma espécie de metonímia da passagem entre o momento destrutivo e um projeto “construtivo” na cultura brasileira. Queria pensar criticamente esses significados, analisar historicamente sua trajetória e obra. E de resto, apesar de onipresente no imaginário modernista brasileiro, e não somente arquitetônico, não havia um trabalho sequer sobre ele.

2. Gostaria que você comentasse um pouco sobre o seu trabalho com fontes diretas em arquivos e acervos. Soube que você chegou a viajar para Odessa (onde ele nasceu) e para Itália (onde concluiu sua formação e deu os primeiros passos na carreira profissional).

Pois é, o trabalho foi ganhando fôlego a partir de 2007, quando graças ao apoio do CNPq, da USP, e da FAPESP, pude viajar a Ucrânia e a Itália a procura de informações mais precisas sobre seu ambiente de formação. Um colega do Departamento de Literatura Russa da USP emprestou-me um belo ensaio sobre a história de Odessa, apresentou-me o Boris Schnaiderman, que passou a infância em um imóvel ao lado das grandes escadarias, do Encouraçado Potenkim, até então minha única imagem da cidade. Através deles fui me acercando desse universo. Escrevi para a autora daquele livro, uma professora americana aposentada por Brown, Patricia Herlihy, obcecada pela Ucrânia. Ela me apresentou a outra professora aposentada, da Universidade de Odessa, Valeria Kukharenko, que me abriu inúmeras portas nos museus, nos arquivos, nas bibliotecas da cidade. Tudo isso por e-mail. Até o desembarque. Lá eu tive a ajuda de uma intérprete evidentemente. Tudo isso num ritmo, numa intensidade, os imprevistos, os acasos, a generosidade dos profissionais e instituições odessitas - uma cidade que descobri viver profundamente a aura de um cosmopolitismo perdido – tudo isso enfim foi muito emocionante descobrir. E os arquivos de lá, graças à proverbial burocracia czarista e soviética, são impressionantes. Na Itália, os canais de acesso eram mais imediatos. Seja pela língua ou a história, seja pelos contatos diretos que alguns de meus colegas abriram em Roma e Florença. A pesquisa lá também foi muito proveitosa, apesar de certa negligência das instituições, inclusive da universidade, com a documentação. O que achei assustador, mesmo para os parâmetros brasileiros. Algumas vezes chegava a ser muito aflitivo.

3. Como as casas modernistas atravessaram o século XX (especialmente a da rua Santa Cruz e da rua Itápolis)? Como estão hoje? (Soube que teve comemoração dos 80 anos no ano passado e em 1998)

Das várias “casas modernistas”, digamos assim, construídas no Rio e em São Paulo entre 1927 e 1932, restaram apenas 3. Todas em São Paulo: a da Santa Cruz, na Vila Mariana, a da Itápolis e a da rua Bahia, ambas no Pacaembu. A da Santa Cruz, que ficou conhecida como a primeira obra modernista a ser construída no Brasil, em 1927, foi desapropriada pelo Estado no início dos anos 1970 e virou patrimônio cultural da cidade, hoje inclusive patrimônio nacional. Contudo, por décadas foi abandonada, ainda que o parque, a seu redor, tenha se tornado uma importante área verde pública do bairro da Vila Mariana. Por muitos anos, falou-se em restaurá-la, foram feitos estudos a seu respeito, abriram-se polêmicas, mas nada. A casa tornou-se quase uma ruína. Recentemente, a prefeitura empreendeu uma recuperação do imóvel, mas o restauro foi de péssima qualidade, para dizer o mínimo. E pior, a Secretaria Municipal de Cultura não perdeu muito tempo em pensar um uso adequado, mais intenso, mais articulado do edifício. A da rua Itápolis permanence com a família Klabin Warchavchik. Um dos netos do arquiteto recentemente a restaurou para sua própria residência. Um trabalho muito cuidadoso. Inclusive para a inauguração, em 2010, organizamos uma exposição comemorativa dos 80 anos da 1a. Exposição de uma Casa Modernista. A da rua Bahia também está muito bem conservada, apesar de o interior ter sido um tanto quanto alterado para servir ao uso empresarial a que hoje ela se destina. Sobreviveram também os 3 conjuntos de casas em série, os de São Paulo bem preservados, o do Rio, na Gamboa, em estado deplorável. E há também, várias outras obras de Warchavchik em São Paulo, no Guarujá, em Santos etc. Mas não daquele período.

4. Queria que você comentasse a relação entre o pensamento arquitetônico de Warchavchik e o processo de verticalização desordenada em cidades periféricas como Recife.

Primeiro não diria que o Recife é uma cidade periférica, aliás seja do ponto de vista cultural, seja social e economicamente a cidade é hoje de uma vitalidade apreciável. O que por certo produz coisas boas, mas também a mesma sorte de mazelas que encontramos em uma cidade como São Paulo. Verticalização imprevidente do ponto de vista da qualidade de vida nos bairros; abandono das áreas centrais de verticalização, serviços e infra-estrutura consolidadas, e mal aproveitadas; exploração máxima e mesquinha das regras e (das brechas) das leis de uso e ocupação do solo; desrespeito ao patrimônio histórico, demolições ou abandono de antigas construções, inclusive de exemplares nem tão antigos, de excelente arquitetura, também moderna - como mostrou o “Obituário arquitetônico de Pernambuco”, organizado pelo professor Luís Amorim, da UFPE -, desrespeito aos recursos naturais, aos rios, córregos, coberturas vegetais, algo assustador, e não só no Recife; e mais do que isso, incapacidade ou desinteresse dos poderes públicos de organizarem o crescimento, a renovação urbana, o mercado . Eu diria que a relação que podemos tecer entre a obra de Warchavchik e as condições contemporâneas da urbanização, vem menos do estudo de seu pensamento do que de sua trajetória efetiva. Afinal ele respondia a um cenário de urbanização diverso, a demandas e pressões diversas das que hoje encontramos. Ao olhar sua trajetória tentei entender justamente como o arquiteto, na diversidade de papéis que ele assumiu ao longo de sua carreira (figura anônima ou expoente de vanguarda, profissional liberal ou empresário do setor de construção), efetivamente se insere nas conjunturas econômicas, sociais e culturais que o cercam, e pode dar respostas válidas, mais ou menos bem sucedidas. De modo geral, o que pretendi abordar com Warchavchik foi o lugar dos arquitetos na produção da cidade e na vida urbana.

5. Como você nasceu em Recife, mas mora em São Paulo, acho que vai se sentir os efeitos dessa verticalização. Tanto o impacto paisagístico, quanto cotidiano. Queria saber como você, enquanto professor de Arquitetura e cidadão, enxerga esse processo.

Eu moro em São Paulo há vinte anos, mas me formei em arquitetura no Recife. Além disso sou filho de uma arquiteta pernambucana, que militava no IAB-PE por um comprometimento maior dos arquitetos com as questões sociais e ecológicas. Com ela, desde pequeno aprendi a olhar para o Recife, e não apenas para sua arquitetura ou por amor à cidade. Volto ao Recife com frequência e me sinto cidadão dela. Acho estarrecedor o ritmo de exploração e consumo da cidade nos últimos anos, o ritmo imobiliário, o desmatamento de bairros inteiros, a má qualidade dos espaços públicos, a forma parasitária como se trata o patrimônio histórico, a praia, os rios, os mangues. Evidentemente a responsabilidade não é apenas dos arquitetos, nem somente dos recifenses. Em todo caso a qualidade dos projetos públicos, de equipamentos, das infra-estruturas, sistemas de circulação e transportes, praças, conjuntos habitacionais, está muito aquém do que se conquistou no Brasil (e também em Pernambuco) em termos de cultura arquitetônica e urbanística. E muito aquém do que se afigura ou se propõe hoje como novas possibilidades de investimento público no país. Quem são os arquitetos e planejadores do PAC, da Copa, das Olimpiadas? Quem são os profissionais que estão trabalhando em nossos novos polos de desenvolvimento? Porque essas questões não são debatidas publicamente, nos meios de comunicação, nas universidades, nos organismos profissionais?

terça-feira, 7 de junho de 2011

Miniquadros

Numa conversa informal com a artista plástica Ana Vaz, comentei que uma das dificuldades em trabalhar com crítica de arte - estou há um mês escrevendo para a Folha de Pernambuco e ando publicando no blog versões livres das matérias - era a impossibilidade de visitar todas as exposições, consequentemente não tendo a oportunidade de estar diante da dimensão física das obras. O mesmo acontece com quem não aproveita algumas mostras fundamentais e na maioria das vezes gratuitas que acontecem na cidade, tendo contato - se muito - com as pinturas ou esculturas apenas por imagens digitalizadas, perdendo o significante direto, a disposição espacial na parede, o diálogo a partir da organização e das distâncias. Antes que comecem a gritar sobre as potencialidades da reprodutibilidade técnica, todos sabem que entendo, concordo, concordo mesmo, mas nesse instante dou-me ao direito de defender o princípio anterior ao menos como inspiração básica para os que forem visitar a exposição “Pernambuco em Miniquadros”. Digo isso certo do impacto que o visitante terá diante do vasto mosaico composto por cerca de 700 peças de dimensões entre 11 por 16cm e 20 por 20cm, de tal modo a serem desafiados a encontrarem no meio da multidão, do excesso, no limite da percepção, duas, três ou cinco obras que os afetem e os destronem. O conjunto exposto, que percorre toda segunda metade do século XX até hoje, foi produzido por quase 500 artistas de distintas gerações e relações com o Estado, com participação de cânones como a própria Ana Vaz, Gil Vicente, Francis­co Brennand, Montez Mag­no, Badida, Gilvan Samico, Tereza Costa Rego e anônimos, semiconhecidos, daqueles que provavelmente nem eu, nem ninguém ouviu falar. Para o artista e crítico José Cláudio da Silva, responsável pelo texto curatorial, os miniquadros representam “uma prova da inocência, pureza e espontaneidade, onde o pintor se desarma e traz à luz o que lhe vai n’alma, a síntese da sua estética”. A prova final, contudo, reside num detalhe muito simples: mesmo que hoje estejam sentenciados em coleções, diversos destes trabalhos circulavam como presentes, de artistas para amigos, de artistas para colecionadores, de artistas para amantes ou familiares. A cadeia era inicialmente intermediada por carinho e, como tantas outras, terminada em escambo.

sexta-feira, 3 de junho de 2011