(Publicado originalmente no Filmologia)
Pouco antes da cena de coroação em O Discurso do rei, dirigido pelo inglês Tom Hooper, o arcebispo da igreja anglicana comenta ao lado do príncipe Albert, eminente rei George VI, numa das inúmeras tomadas em plongée, que o rádio é uma ‘Caixa de Pandora’. O microfone surge vilanesco e desfocado em primeiro plano, referendando uma espécie de ameaça invisível sugerida em outros momentos do filme. Por sua vez, a visão do príncipe quando se confunde com a da câmera tende a assumir a posição da criança que olha o adulto – o contra-plongée – uma visão insegura, espacialmente oprimida (ver imagem abaixo). Antes ainda, o pai de Albert, então rei George V, se refere ao rádio como um ‘aparelho diabólico’ e reflete que enquanto no passado, o rei só precisava parecer respeitável em seu uniforme e não cair do cavalo, agora era preciso invadir a casa das pessoas e cair-lhes nas graças. O ano da coroação é 1936, mesma data em que Walter Benjamin publicou numa revista francesa seu famigerado ensaio sobre a condição da arte na era de sua reprodutibilidade técnica, observando as metamorfoses no campo cultural a partir da ascensão e difusão dos meios de comunicação de massa. Na terceira década do século passado, a modernidade não era um traço de mudança relatada ou vilipendiada essencialmente pelos poetas, pintores e intelectuais da Belle Époque, mas uma potência densamente ramificada que vinha impactando ou tinha impactado a sensibilidade e a percepção de todos, aristocratas, burgueses e plebeus. Assim sendo, até os representantes das mais arcaicas das instituições precisaram se adaptar: deixaram o aspecto familiar monárquico tradicional para virarem uma espécie de empresa, deixaram de ser pessoas protegidas pela pantomima à distância, pela reverência absoluta e cega, para apostarem na posição de atores verborrágicos cuja pronúncia alcançaria o além-mar. A formulação mítica do líder teve suas raízes técnicas profundamente modificadas, no entanto, em ambos os casos, para fortalecer os vínculos entre o monarca e os seus súditos, menos importam os atos e mais a desenvoltura política baseada na retórica. Ergue-se um paradigma cruel de mundo para qualquer pessoa pública que possua uma característica desviante da norma. Os risos vêm em seguida.
É nesse contexto que se desenvolve o drama do príncipe gago Albert: ao assumir o trono, terá que fazer algumas aparições e discursos, com a inevitável irrupção da guerra, terá que declamar com todo vigor da superação, o motivo do título do filme. A história de Pandora sempre esteve envolvida numa diferença de interpretação: depois de não conseguir se desfazer do presente de Zeus, a mulher talhada por Hefesto deixa que Epimeteu, consumido pela curiosidade, abra a caixa e liberte todos os males e crimes; arrependido, tenta fechá-la, conseguindo aprisionar apenas a esperança. Resta a dúvida: por estar dentro da caixa, a esperança seria também um mal? Para os filmes de superação tão aclamados em Hollywood, não. Seguindo essa linhagem, O Discurso do Rei não dispensa os recursos padrões do cinema clássico, o som emulando emoções das personagens e dos espectadores, um discreto zoom no rosto do rei ao ver uma filmagem de Hitler, mostrando sua apreensão e nos causando calafrios. No entanto, mesmo que exista um inchaço de clichês cinematográficos, presente até no ritmo da montagem, todos são elegantemente bem executados. Os velhinhos do Oscar choram. O conjunto se torna mais firme pela aposta nos – não raros e extremamente belos – planos usando grandes angulares, que dão uma circularidade charmosa aos enquadramentos (ver ambas as imagens) e, claro, pela aposta no talento dos atores, responsáveis por tornar o redundante encontro afetivo entre celebridade e anônimo que compartilham de um sentimento de inadequação, numa bela prova de que as pessoas estão mais dispostas a se conhecerem quando ambas caminham desajeitadamente perto de um abismo. Colin Firth e Geoffrey Rush, o primeiro como rei gago na iminência de fazer um discurso para a nação, o segundo como terapeuta de distúrbios da fala cuja técnica principal é o contato emotivo, fazem valer a tradição britânica – meio inglesa, meio australiana, fuck, fuck, fuck – da atuação, comparável no filme com uma aula de dança, o máximo de um dependendo sempre do máximo do outro, cada qual respeitando o solo do companheiro, como um par bailando de modo exímio transpassando patamares sem perder em cada um deles o tom ideal. Há um respeito mútuo que rompe os limites da diegese.
Não resta dúvida que se por um lado podemos falar das ótimas atuações, e incluiria Helena Bonham Carter sem delongas, é preciso lembrar da mediocridade dos coadjuvantes: seja Guy Pearce como o príncipe David que abdica do trono por uma mulher, e agradecemos sua abdicação para que não ocupe um frame a mais na tela, ou, especialmente, Timothy Spall que parece ter feito laboratório num espetáculo de caretas para compor Winston Churchill. Aliás, colocar rabicho pra fazer uma das figuras mais importantes do século XX nunca poderia dar certo. O Discurso do Rei parece ter encurralado sua trajetória entre uma cinefilia com preguiça de se arriscar ‘a assistir o vencedor do oscar bleh arght bleh’ e um público cujo interesse existe somente e não mais que somente pela existência da estatueta. Benjamin exalta justamente os que se desviam da velha dicotomia que acredita que as massas buscam apenas diversão e que o culto da arte exige recolhimento. O filme de Tom Hooper resvala pela tangente de ambos os caminhos sem estar ligado a nenhum deles. Por fim, desde a primeira cena, quando o ainda príncipe Albert caminha para seu primeiro discurso público como quem caminha para um cadafalso, o microfone gigantesco em primeiro plano, e então gagueja criando todo um mal-estar; quando comentam inúmeras vezes como ele era alvo de piadas, lembrei espontaneamente do fenômeno Ruth Lemos (vídeo aqui). A nutricionista virou uma febre na internet em 2004, alguns meses antes do youtube, transformando-se num dos primeiros virais nacionais após conceder uma entrevista num jornal local em que se confundia por causa do ‘ponto’ em seu ouvido, tendo dificuldades em falar, repetindo o final das palavras, deslocando o princípio de serviço da matéria para o espetáculo do humor. O resultado é um mix de sentimentos: vem o riso descontrolado, vem o constrangimento contido, vem a compaixão estranha. A difusão foi feita por links enviados em massa por e-mail ou divulgados em blogs, mais e mais usuários começaram a usar expressões da entrevista (‘porque é mais jovem mesmo’, ‘vegetais folhosos, etc’), surgiram dezenas de comunidades no orkut, versões remix, ícones animados para o messenger. Se o rádio era uma caixa de pandora, a internet multiplicou a amplitude dos males, a capacidade de uma piada se alastrar, sem diferenciar público e privado, conjurando cada vez mais – e talvez por isso também fazendo esquecer mais rápido – virais cujo motivo de chacota pode ser qualquer um. Respiramos um pouco da crueldade dos cronópios de Julio Cortázar, realizando a simbiose com os males da caixa de Pandora: vemos uma tartaruga afeita à velocidade e não perdemos a oportunidade de desenhar com giz uma andorinha em seu casco.
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