quinta-feira, 3 de março de 2011

Herege

Beto nunca soube o que era morar em outro lugar, aprendeu a andar, a andar de bicicleta e a beijar no 'último' bairro antes da cidade acabar, durante sua infância o mundo se resumia as 48 casas da vizinhança, sempre que ia dormir na casa de um amigo longínquo, escutava os adultos reclamarem na hora de levá-lo embora: logo se acostumou a morar na putaqueopariu e depois da casa do caralho. Sua casa ficava numa vila, numa rua sem saída, atrás da matriz da igreja católica do bairro. A influência religiosa sempre foi imensa. O bairro corre junto ao sábio e batido dilema de ser simultaneamente campo e cidade. Cada vez menos campo. Algumas donas-de-casa ainda passam o dia com as portas abertas, colocam a cadeira na calçada no fim da tarde, comentam da vida de cada um dos que passam para comprar o pão. Luciana tá gorda, Priscila passou no concurso, Manoela vai casar. Quando era pequeno, ainda criança mesmo, Beto resolveu deixar de frequentar a missa, achava um porre, tudo não passava de uma obrigação familiar e seus amigos tomavam banho de leite de rosas o que lhe causava um enjôo daqueles. O pior vinha na sequência: metade rezava de pau duro olhando as ninfetas da rua da lama. Só que deixar a missa não era tão fácil. Inúmeras vezes Beto estava no terraço de sua casa, lendo o jornal de domingo às sete da noite, quando passavam seus amigos nos trinks, paravam na calçada e o chamavam de herege. Entre uma não-notícia e outra, olhava por cima do papel sujo abismado como poderiam saber que ele não tinha ido na missa da manhã (a famosa missa das crianças). Ali no último bairro antes da cidade acabar, se você perdia uma, TINHA que ir na outra. Alguns meses se passaram e Beto com um sentimento de vingança voltou a frequentar a igreja. Para ir fundo na ironia, até se tornou coroinha por uma única e fatídica missa, errou a hora dos sinos, fazia graça, ria do sermão, atrapalhava as cantorias. Beto era um garotinho muito do infiezado, só queria demonstrar para si mesmo sua capacidade de conquista. Perto de desistir 100%, sentia que precisava tomar uma última atitude: experimentar da óstia antes de fazer a primeira comunhão. Convenceu sua namoradinha ou a menina com quem andava de mãos dadas de vez em quando, entraram na fila, corpo de cristo, amém, de joelhos, gosto de pão velho amassado por pé sujo de padre safado. Não demorou a se gabar e os que gritavam herege, logo mostraram suas garras: dois deles foram conversar com Beto, tipo papo sério, dizendo que ele tinha estragado sua vida e a da sua família, que de agora em diante só iriam acontecer coisas ruins, morte de familiares, acidentes, doença, falta de dinheiro, fome, peste e viva o mundo medieval. Foram enfáticos no "sua mãe vai morrer por sua causa". Apesar da descrença, Beto ficou um tanto incomodado, começou a temer a morte de uma forma diferente, mas antes de tudo resolveu trocar de amigos. Anos depois, já na faculdade, nem lembrava desses acontecimentos até ler Eduardo Galeano: um excerto do Livro dos Abraços conta a história de um garoto que vai se confessar por ter se masturbado ou falado algum palavrão e o padre coloca a cruz com jesus crucificado pra o menino beijar dizendo: "você o matou, você o matou". Na casa de Beto também tinha um pequeno Jesus Crucificado de metal. Um dia ele sumiu sem deixar pistas.

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