quinta-feira, 31 de março de 2011

Aniversário Macabro (EUA, 1972), de Wes Craven


(Publicado originalmente no Filmologia)

Qualquer espectador que duvide do potencial do cinema de Wes Craven, por ter se deparado com uma ou duas obras inconsistentes, precisa saber que, para além de outros oásis, a década de 70 sempre será um lugar seguro. Seu primeiro trabalho na direção, Aniversário Macabro, após uma breve experiência como produtor-associado em Together (1971), do futuro diretor de Sexta-feira 13 (1980), Sean Cunningham, que aqui faz as honras da produção, se alinha aos filmes cujo percurso é conduzido por um tato quase primitivo de iniciante, uma documentação da busca de estilo, prosseguindo na linha do erro e do acerto. Pela sorte ou competência, mais acertos. Ainda durante os créditos, escutamos um folk psicodélico que se repete em outros momentos, ‘And the road leads to nowhere /And the castle stays the same / And the father tells the mother / Wait for the rain’, enquanto uma jovem toma banho e sua nudez é escondida / revelada pela distorção do box (ver imagem). Trata-se provavelmente da única cena cujo belo desliza minimamente puro sem intervenções grotescas ou escatológicas. Não há ali um suspeito atrás da porta ou um medo latente incitado pela câmera, ela está se banhando para sair e então entrarmos na mais velha preocupação dos pais: será que suas doces virgens filhas estão mesmo onde vocês acreditam que elas estão? Ou quem sabe: o que suas inocentes e pálidas filhas estão fazendo enquanto vocês dormem? Craven responde brutalmente: estão bebendo, procurando drogas, encontrando delinqüentes, sendo encurraladas em apartamentos suburbanos, estupradas em florestas, torturadas no mato, espancadas, humilhadas e sacrificadas. Diferente tanto da escandalosa estetização e estilização dos filmes-franquias de terror contemporâneos, diferente do requinte poético e melancólico de A Fonte da Donzela, de Ingmar Bergman, que supostamente serviu de inspiração, Aniversário Macabro coleciona uma série de imagens cruas e secas, longe de qualquer tentativa de amenização, com atuações fraquíssimas que pouco fazem diferença, se assemelhando, especialmente na primeira metade, a um registro-flagrante (ou auto-registro) de um ritual macabro onde equipe técnica, atores e personagens compartilham de uma intenção. Não por acaso o cartaz do filme anunciava que quando a angústia vencesse o espectador, era preciso lembrar: “é apenas um filme! É apenas um filme!”. Hoje poderíamos confundir com alguma das inúmeras matérias na TV.

A completa imersão nessa atmosfera amadora colabora no aspecto snuff movie de Aniversário Macabro, fortalecendo não apenas uma antologia da violência e do sadismo, mas uma posição sarcástica diante dos desejos da geração paz e amor. Wes Craven, aos 33 anos, nada mais faz que jogar sangue e arrancar os órgãos da juventude hippie, manda-os mijar nas calças com prazer no rosto, rasgando em mil pedaços todo sonho pueril, dando um basta no devaneio da imaginação no poder. Não mais a celebração, o amor livre, flores e nudez espontânea dos Stones no Hyde Park (1969), mas a crueldade, jaquetas nazistas, preconceito, assassinato, nudez forçada e o caos de Gimme Shelter (1970). O filme se afunda ironicamente no clima de ressaca geracional. Na segunda metade, após matarem duas amigas, os delinqüentes pedem abrigo justamente na casa – a última à esquerda – dos pais de uma delas, que logo descobrem a filha morta no lago e iniciam o plano de vingança. Essa estrutura de tortura psicopata seguida de vingança faz o filme dialogar, para além da música Midnight Rambler (vídeo aqui) e de várias produções italianas, com pelo menos outros dois poderosos registros: Sob o Domínio do Medo (1971), de Sam Peckinpah e A Vingança de Jennifer (1978), de Meir Zarchi. Todos brincam com a idéia de família pacata americana, que, quando colocada numa situação limite, age da mesma forma – ou pior – que os sádicos pervertidos: em Aniversário Macabro vemos, sem sofisticação, a mamãe boazinha fazendo sexo oral e castrando o fugitivo com os dentes enquanto o papai encurrala o chefe da gangue com uma serra elétrica. Nós, espectadores, trincamos os dentes: essa vingança também nos pertence. Por fim, um dos pontos de maior estranheza do filme se funda na alternância entre a violência já comentada e um humor deslocado, focado nos policiais bobos (eufemismo para otários, palermas, etc) extremamente caricatos. Não que seja uma tentativa de desviar da tensão e instaurar um clima leve, mas uma intencional quebra de qualquer resquício de auto-importância ou auto-indulgência. Seja como for, o menos importante do ‘paracinema’ se finca no questionamento se a risada era ou não intencional, se alcançou ou não os risos da platéia, Craven mais tarde se especializaria justamente nessa ambivalência. Em Aniversário Macabro estava só engatinhando. No final das contas, o filme não tem graça alguma.

domingo, 27 de março de 2011

Pasolini


As Mil e uma Noites (Itália / França, 1974)

domingo, 20 de março de 2011

segunda-feira, 14 de março de 2011

Pandora e o Rei


(Publicado originalmente no Filmologia)

Pouco antes da cena de coroação em O Discurso do rei, dirigido pelo inglês Tom Hooper, o arcebispo da igreja anglicana comenta ao lado do príncipe Albert, eminente rei George VI, numa das inúmeras tomadas em plongée, que o rádio é uma ‘Caixa de Pandora’. O microfone surge vilanesco e desfocado em primeiro plano, referendando uma espécie de ameaça invisível sugerida em outros momentos do filme. Por sua vez, a visão do príncipe quando se confunde com a da câmera tende a assumir a posição da criança que olha o adulto – o contra-plongée – uma visão insegura, espacialmente oprimida (ver imagem abaixo). Antes ainda, o pai de Albert, então rei George V, se refere ao rádio como um ‘aparelho diabólico’ e reflete que enquanto no passado, o rei só precisava parecer respeitável em seu uniforme e não cair do cavalo, agora era preciso invadir a casa das pessoas e cair-lhes nas graças. O ano da coroação é 1936, mesma data em que Walter Benjamin publicou numa revista francesa seu famigerado ensaio sobre a condição da arte na era de sua reprodutibilidade técnica, observando as metamorfoses no campo cultural a partir da ascensão e difusão dos meios de comunicação de massa. Na terceira década do século passado, a modernidade não era um traço de mudança relatada ou vilipendiada essencialmente pelos poetas, pintores e intelectuais da Belle Époque, mas uma potência densamente ramificada que vinha impactando ou tinha impactado a sensibilidade e a percepção de todos, aristocratas, burgueses e plebeus. Assim sendo, até os representantes das mais arcaicas das instituições precisaram se adaptar: deixaram o aspecto familiar monárquico tradicional para virarem uma espécie de empresa, deixaram de ser pessoas protegidas pela pantomima à distância, pela reverência absoluta e cega, para apostarem na posição de atores verborrágicos cuja pronúncia alcançaria o além-mar. A formulação mítica do líder teve suas raízes técnicas profundamente modificadas, no entanto, em ambos os casos, para fortalecer os vínculos entre o monarca e os seus súditos, menos importam os atos e mais a desenvoltura política baseada na retórica. Ergue-se um paradigma cruel de mundo para qualquer pessoa pública que possua uma característica desviante da norma. Os risos vêm em seguida.

É nesse contexto que se desenvolve o drama do príncipe gago Albert: ao assumir o trono, terá que fazer algumas aparições e discursos, com a inevitável irrupção da guerra, terá que declamar com todo vigor da superação, o motivo do título do filme. A história de Pandora sempre esteve envolvida numa diferença de interpretação: depois de não conseguir se desfazer do presente de Zeus, a mulher talhada por Hefesto deixa que Epimeteu, consumido pela curiosidade, abra a caixa e liberte todos os males e crimes; arrependido, tenta fechá-la, conseguindo aprisionar apenas a esperança. Resta a dúvida: por estar dentro da caixa, a esperança seria também um mal? Para os filmes de superação tão aclamados em Hollywood, não. Seguindo essa linhagem, O Discurso do Rei não dispensa os recursos padrões do cinema clássico, o som emulando emoções das personagens e dos espectadores, um discreto zoom no rosto do rei ao ver uma filmagem de Hitler, mostrando sua apreensão e nos causando calafrios. No entanto, mesmo que exista um inchaço de clichês cinematográficos, presente até no ritmo da montagem, todos são elegantemente bem executados. Os velhinhos do Oscar choram. O conjunto se torna mais firme pela aposta nos – não raros e extremamente belos – planos usando grandes angulares, que dão uma circularidade charmosa aos enquadramentos (ver ambas as imagens) e, claro, pela aposta no talento dos atores, responsáveis por tornar o redundante encontro afetivo entre celebridade e anônimo que compartilham de um sentimento de inadequação, numa bela prova de que as pessoas estão mais dispostas a se conhecerem quando ambas caminham desajeitadamente perto de um abismo. Colin Firth e Geoffrey Rush, o primeiro como rei gago na iminência de fazer um discurso para a nação, o segundo como terapeuta de distúrbios da fala cuja técnica principal é o contato emotivo, fazem valer a tradição britânica – meio inglesa, meio australiana, fuck, fuck, fuck – da atuação, comparável no filme com uma aula de dança, o máximo de um dependendo sempre do máximo do outro, cada qual respeitando o solo do companheiro, como um par bailando de modo exímio transpassando patamares sem perder em cada um deles o tom ideal. Há um respeito mútuo que rompe os limites da diegese.

Não resta dúvida que se por um lado podemos falar das ótimas atuações, e incluiria Helena Bonham Carter sem delongas, é preciso lembrar da mediocridade dos coadjuvantes: seja Guy Pearce como o príncipe David que abdica do trono por uma mulher, e agradecemos sua abdicação para que não ocupe um frame a mais na tela, ou, especialmente, Timothy Spall que parece ter feito laboratório num espetáculo de caretas para compor Winston Churchill. Aliás, colocar rabicho pra fazer uma das figuras mais importantes do século XX nunca poderia dar certo. O Discurso do Rei parece ter encurralado sua trajetória entre uma cinefilia com preguiça de se arriscar ‘a assistir o vencedor do oscar bleh arght bleh’ e um público cujo interesse existe somente e não mais que somente pela existência da estatueta. Benjamin exalta justamente os que se desviam da velha dicotomia que acredita que as massas buscam apenas diversão e que o culto da arte exige recolhimento. O filme de Tom Hooper resvala pela tangente de ambos os caminhos sem estar ligado a nenhum deles. Por fim, desde a primeira cena, quando o ainda príncipe Albert caminha para seu primeiro discurso público como quem caminha para um cadafalso, o microfone gigantesco em primeiro plano, e então gagueja criando todo um mal-estar; quando comentam inúmeras vezes como ele era alvo de piadas, lembrei espontaneamente do fenômeno Ruth Lemos (vídeo aqui). A nutricionista virou uma febre na internet em 2004, alguns meses antes do youtube, transformando-se num dos primeiros virais nacionais após conceder uma entrevista num jornal local em que se confundia por causa do ‘ponto’ em seu ouvido, tendo dificuldades em falar, repetindo o final das palavras, deslocando o princípio de serviço da matéria para o espetáculo do humor. O resultado é um mix de sentimentos: vem o riso descontrolado, vem o constrangimento contido, vem a compaixão estranha. A difusão foi feita por links enviados em massa por e-mail ou divulgados em blogs, mais e mais usuários começaram a usar expressões da entrevista (‘porque é mais jovem mesmo’, ‘vegetais folhosos, etc’), surgiram dezenas de comunidades no orkut, versões remix, ícones animados para o messenger. Se o rádio era uma caixa de pandora, a internet multiplicou a amplitude dos males, a capacidade de uma piada se alastrar, sem diferenciar público e privado, conjurando cada vez mais – e talvez por isso também fazendo esquecer mais rápido – virais cujo motivo de chacota pode ser qualquer um. Respiramos um pouco da crueldade dos cronópios de Julio Cortázar, realizando a simbiose com os males da caixa de Pandora: vemos uma tartaruga afeita à velocidade e não perdemos a oportunidade de desenhar com giz uma andorinha em seu casco.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Herege

Beto nunca soube o que era morar em outro lugar, aprendeu a andar, a andar de bicicleta e a beijar no 'último' bairro antes da cidade acabar, durante sua infância o mundo se resumia as 48 casas da vizinhança, sempre que ia dormir na casa de um amigo longínquo, escutava os adultos reclamarem na hora de levá-lo embora: logo se acostumou a morar na putaqueopariu e depois da casa do caralho. Sua casa ficava numa vila, numa rua sem saída, atrás da matriz da igreja católica do bairro. A influência religiosa sempre foi imensa. O bairro corre junto ao sábio e batido dilema de ser simultaneamente campo e cidade. Cada vez menos campo. Algumas donas-de-casa ainda passam o dia com as portas abertas, colocam a cadeira na calçada no fim da tarde, comentam da vida de cada um dos que passam para comprar o pão. Luciana tá gorda, Priscila passou no concurso, Manoela vai casar. Quando era pequeno, ainda criança mesmo, Beto resolveu deixar de frequentar a missa, achava um porre, tudo não passava de uma obrigação familiar e seus amigos tomavam banho de leite de rosas o que lhe causava um enjôo daqueles. O pior vinha na sequência: metade rezava de pau duro olhando as ninfetas da rua da lama. Só que deixar a missa não era tão fácil. Inúmeras vezes Beto estava no terraço de sua casa, lendo o jornal de domingo às sete da noite, quando passavam seus amigos nos trinks, paravam na calçada e o chamavam de herege. Entre uma não-notícia e outra, olhava por cima do papel sujo abismado como poderiam saber que ele não tinha ido na missa da manhã (a famosa missa das crianças). Ali no último bairro antes da cidade acabar, se você perdia uma, TINHA que ir na outra. Alguns meses se passaram e Beto com um sentimento de vingança voltou a frequentar a igreja. Para ir fundo na ironia, até se tornou coroinha por uma única e fatídica missa, errou a hora dos sinos, fazia graça, ria do sermão, atrapalhava as cantorias. Beto era um garotinho muito do infiezado, só queria demonstrar para si mesmo sua capacidade de conquista. Perto de desistir 100%, sentia que precisava tomar uma última atitude: experimentar da óstia antes de fazer a primeira comunhão. Convenceu sua namoradinha ou a menina com quem andava de mãos dadas de vez em quando, entraram na fila, corpo de cristo, amém, de joelhos, gosto de pão velho amassado por pé sujo de padre safado. Não demorou a se gabar e os que gritavam herege, logo mostraram suas garras: dois deles foram conversar com Beto, tipo papo sério, dizendo que ele tinha estragado sua vida e a da sua família, que de agora em diante só iriam acontecer coisas ruins, morte de familiares, acidentes, doença, falta de dinheiro, fome, peste e viva o mundo medieval. Foram enfáticos no "sua mãe vai morrer por sua causa". Apesar da descrença, Beto ficou um tanto incomodado, começou a temer a morte de uma forma diferente, mas antes de tudo resolveu trocar de amigos. Anos depois, já na faculdade, nem lembrava desses acontecimentos até ler Eduardo Galeano: um excerto do Livro dos Abraços conta a história de um garoto que vai se confessar por ter se masturbado ou falado algum palavrão e o padre coloca a cruz com jesus crucificado pra o menino beijar dizendo: "você o matou, você o matou". Na casa de Beto também tinha um pequeno Jesus Crucificado de metal. Um dia ele sumiu sem deixar pistas.