segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Godard em seu quarto


(Publicado originalmente no Filmologia)

Godard está trancado em um quarto e duas pessoas saem do cinema. Seu Film Socialism (2010), mesmo passeando pela Palestina, pelo Egito, por Odessa, por Nápoles, por Barcelona; mesmo em um cruzeiro chique inundado das tradicionais cafonices; mesmo com intelectuais, filósofos e divas punks da década de setenta e por estar mais preocupado em entrecortar passagens de diálogos que apostar em diálogos inteiros; por se exilar numa casa que luta por privacidade diante da invasão jornalística e só escuta ruídos; recolhe conceitos, histórias, a antiarte de contar, mas parece no máximo olhar o mundo pela fresta da janela, com o rosto seguro e escondido pela cortina de cores desgastadas. Seu pensamento não inventa uma e só se desgruda da realidade – inúmeras! – que intenciona tratar, abarca mais uma melancolia idealizada, um lamento europeu, um socialismo de binóculos que pouco se atinge pela reorganização e reinvenção lânguida do capitalismo contemporâneo. Afasta-se violentamente de quem está fora do quarto. Godard está preocupado com o futuro da Europa, com a transcendência das imagens, com a felicidade de um continente, com a convalescença de um tempo onde tudo o que se acredita, o inimigo consegue usar a seu favor. Tenta dinamitar os blocos aparentes com fagulhas invisíveis. Contudo, jamais se sente preocupado ou entusiasmado a ponto de sair do quarto. Já esteve em 1968, quo vadis Europa? Alguns traumas, nacionais ou transnacionais, parecem nunca se curar. Três espectadores deixam o cinema. Um deles pede o dinheiro de volta.

Os filmes da última década do diretor francês (Elogio ao Amor e Nossa Música), além de debocharem do sono numa sala escura, de realmente abusarem da minha paciência de espectador de cinema, da sala de cinema, tende a me levar quase arrastado a concordar – e ainda assim temporariamente – com o João Moreira Salles: apesar da pretensão e da inútil tentativa da reflexão erudita sobre a existência e sobre os dilemas da humanidade, uma pretensão que está em Bergman e em toda confraria da profundidade da mise-en-scène, o cinema não pode. Apesar da pretensão e da inútil tentativa. Óbvio que também discordo como um belo duplipensamento de 1984, as contradições aqui são permitidas, Godard despista a bilheteria e os ritos da sala de cinema, enterra uma tradição no quarto 666, impossibilitando os veredictos diante do seu inevitável compêndio bibliográfico. Mireille Balin desistiu de Pepe le Moko. Nem por isso deixa de se besuntar em citações que pouco se diferenciam da mediocridade acadêmica, não pela ausência de intimidade, nem necessariamente pelo pedantismo de que não conseguirá (ou conseguirá) se comunicar. Film Socialism foi feito para ser visto no computador com um pause e google ao alcance de uma mão e os que dizem o contrário, que balbuciam sobre fruição estética, sobre princípio de prazer ou mesmo de realidade, estão mentindo. Não importa o mundo, mas as telas: Godard rodopia em sua sinfonia de películas, imagens digitais e entrelaçados de pixels.

Godard está trancado em um quarto, fuma como nunca, tosse em intervalos cada vez menores. De quando em quando, joga o lixo fora, foge de estudantes de cinema, manda a mulher dispensar jovens cineastas (JLG/PG, de Paolo Gregori), abaixa-se para pegar o jornal e retorna em passos apressados com um punhado de estilhaços de mundo: chega de Kigali, Fibonacci, “encontrei o nada e ele era gigante”, Avenida Foch, 1943. Também não abandona sua biblioteca e as traças: Racine, um zoom em Balzac e nada mais empoeirado que gritar o nome de um militante comunista (ou seria um jogador de futebol?) ao lado de uma cadeira de sol: Münzenberg. A escadaria de Odessa é revisitada e a rinite alérgica contagia o que restou da platéia. Só que Godard também tem seus trunfos, sabe assumir os seus próprios cruzeiros, renegar os portos mais fáceis, mesmo que continue apostando na declamação que substitui a fala. “Por que a luz está aqui? Porque há escuridão”. ZzzzzZZZzzzZZZzzz A criança solta uma máxima: “o silêncio vale ouro”. ZzzzzZZZzzzZZZzzz. As máximas se acumulam e – sensato – diante do insuportável, esboça uma ironia, uma autocrítica frágil, fabulando respostas bobas e ridículas às eloquentes falas-citações-declamações: um som de miado num garoto ou um do ré mi fá sol lá si na boca de uma ninfeta. A sala está quase vazia, sobraram algumas crianças.

E Godard acredita nas ou gosta de rir (eu gosto de rir) das crianças que usam camisas vermelhas com as letras ‘CCCP’: nos tempos de colégio (ou universidade ou de dois dias atrás), amigos burgueses, mimados, filhinhos de papai, meninos de apartamento, bundinhas de bebê, vez ou outra esbravejam duas ou três falácias sobre serem comunistas, socialistas, leninistas, leninistas-marxistas, pouco importa. A falência das crenças políticas é talvez um dos paradigmas mais melancólicos do final do século XX, início do século XXI, e por isso tantos comem sua ideologia com farinha enquanto outros não dispensam um caviar. Provavelmente todos irão morrer de câncer. Godard é indiscutivelmente um mestre da imagem e a poética se esgueira quando essas mesmas crianças de olhos fechados tateiam suas mães e, na falta de um chão a pisar com pés firmes ou de gritos convencidos, escutam palavras belas e sujas sobre imagens livres que não deixam de ser trancadas. Como em Mulher das Dunas, de Hiroshi Teshigahara estão presos numa casa num deserto, descobrem como captar água, enchem um balde, deslumbram-se, deslumbram-se, deslumbram-se, conseguem fugir, encontram o mar e voltam, acomodados que estão, para olhar a água do balde. “Viver ou contar?”. Ele nos pergunta. "Aprender a ver antes de aprender a escrever". Ele nos afirma. Aprender a escolher, antes dos dois. Os grilos já podem ser ouvidos.

Antes que restem apenas os mortos e o ronco de um projecionista, Film Socialism se ergue para além da hierarquização das imagens no regime da imagem: o carinho de araras vermelhas, uma lhama num posto de gasolina, os miados de gatos de um vídeo besta da internet – gatos são uma sensação – são alinhados aos cineastas cânones, ao próprio cinema de altos estudos, à iconoclastia histórica que une e diferencia, contradizendo a postura sem senso de humor adotada pela crítica, brasileira ou estrangeira, de clara influência cinematográfica francófona. Absortos, por pouco não soltam um ‘ulala’ à francesa para uma indistinção tão tola. Ainda é pouco. Se o cinema clássico é o prazer do brinquedo, não há dúvida que Godard nunca superou seu prazer de quebrar o brinquedo, de desmontá-lo, mostrar como se comporta a câmera para com a câmera, tiques de uma trajetória, resgatando filósofos de sua geração e levando-os aos que ele acredita – e talvez concordemos – que sejam os da nossa. Sartre encontra Badiou. Ao lançar um filme novo – e esse talvez seja o maior de seus trunfos – o diretor francês termina por, parafraseando George Orwell, fazer de seu quarto, um mundo, um bolsão do passado onde animais extintos ainda podem se mover. Talvez sejamos todos um pouco animais extintos. Godard está trancado em um quarto. Está lá – isolado – há décadas. Vive a dificuldade compartilhada de dizer nós antes de dizer eu, se dando conta através de seus interlocutores-personagens-alteregos, que dentro do eu, pode coexistir um implícito nós.

* Godard finalmente abre a porta de pijamas, um semblante do FBI, com os velhos dizeres que é proibido a reprodução do material protegido por copyright, em seguida o letreiro “quando a lei não é justa a justiça passa por cima da lei”. O diretor se posiciona diante da rígida lei contra pirataria na internet recém aprovada no parlamento francês que permite às autoridades cortarem, pelo período de um ano, o acesso à internet de pessoas que fizeram download ilegal de conteúdo. Além disso, obriga os usuários a pagarem multas pela conduta criminosa durante o tempo de inacessibilidade. O Ministro da Cultura, Frederic Mitterrand, aplaudiu os deputados após o resultado da votação: “os artistas sempre se lembrarão que nós, pelo menos, tivemos coragem de quebrar a abordagem laissez-faire e proteger seus direitos de pessoas que querem tornar a internet numa utopia libertária”. Godard bate a porta e mesmo para os de fora do quarto foi possível escutar alguns grunhidos que pareciam ser de raiva.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Janela

Sempre que entramos na casa dos outros, seja um antiquário ou aquele apartamento recém montado, no episódio em que damos de presente panos de prato ou um conjunto de copos e ganhamos cervejas e feijoada, não deixamos de reparar na disposição dos objetos, o forro do sofá, o tamanho da cozinha, a ventilação, a televisão resgatada do abandono na casa de alguma tia, sem perder de vista o desenrolar dos donos nos ambientes que, com tanto carinho, montaram. Notem as expressões desesperadas quando a primeira bebida cai sobre o tapete. Tenho uma sensação semelhante com alguns filmes e com O Estranho Caso de Angélica - prometo não me prolongar - vemos se alastrar nos aposentos da casa da falecida do título e na pensão, uma cuidadosa ordem da posição dos quadros, do estilo da luminária, da mesa e das cadeiras, o tipo de torneira, o pé da escrivaninha e, sobretudo, o ponto da câmera para que tudo esteja numa ruidosa harmonia. E, tratando-se de Manoel de Oliveira, nada me parece mais simbólico que o cuidado demonstrado na última cena: a dona da pensão vagarosamente fecha a janela antes dos créditos. Não me surpreende que as crianças e jovens sempre esqueçam aberta.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Moeda de Troca

Não existe bem uma diferença entre as pessoas ranzinzas de carteirinha que perderam a capacidade do elogio e do sorriso e as - curtir, curtir, curtir - que, sorrindo com o curriculum vitae nas mãos, só sabem elogiar.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Curtos

I
"O comandante Tomás Borge me convidou para jantar. Eu não o conhecia. Tinha fama de ser o mais duro de todos, o mais temido. Havia mais gente no jantar, gente linda; ele falou pouco ou nada. Ficou me olhando, ficou me medindo.
Na segunda vez, jantamos sozinhos. Tomás estava mais aberto: respondeu muito solto minhas perguntas sobre os velhos tempos da fundação da Frente Sandinista. E à meia-noite, como quem não quer nada, me disse:
— Agora, conta um filme para mim.
Eu me defendi. Expliquei que morava em Calella, uma cidadezinha, onde o cinema quase não chegava, só filmes velhos...
— Conta — insistiu, ordenou —. Qualquer filme, qualquer um, mesmo que seja velho.
Então contei uma comédia. Contei, atuei; tentei resumir, mas ele exigia detalhes. Quando terminei:
— Agora, outro.
Contei um de gângster, que acabava mal.
— Outro.
Contei um de cowboys.
— Outro.
Contei, inventando de cabo a rabo, um de amor.
Acho que estava amanhecendo quando me dei por vencido, supliquei clemência e fui dormir.
Encontrei-o uma semana depois. Tomás pediu desculpas:
— Espremi você, naquela noite. É que eu gosto muito de cinema, gosto loucamente, e nunca posso ir.
Disse que qualquer um podia entender. Ele era ministro de Interior da Nicarágua, em plena guerra; o inimigo não dava trégua e não havia tempo para luxos como ir ao cinema.
— Não, não — me corrigiu —. Tempo, tenho. Tempo... a gente sempre consegue, quando quer. Não é uma questão de tempo. Antes, quando eu estava clandestino, disfarçado, dava um jeito para ir ao cinema. Mas agora...
Não perguntei. Houve um silêncio, ele continuou:
— Não posso ir ao cinema porque... porque no cinema, eu choro.
— Ah!-- disse — Eu também.
— Claro — respondeu —. Percebi na hora. Na primeira vez que vi você, pensei: 'Esse é dos que choram no cinema'".
Crônica da cidade de Manágua / Livro dos Abraços / Eduardo Galeano

II
"Para lutar contra o pragmatismo e a horrível tendência à consecução de fins úteis, meu primo mais velho defende a prática de arrancar um bom fio da cabeça, dar-lhe um nó no meio e deixá-lo cair suavemente pelo buraco da pia. Se o cabelo ficar preso no ralo que costuma haver nesses buracos, bastará abrir um pouco a torneira para que se perca de vista.
Sem perda de um instante, deve-se iniciar a tarefa de recuperação do cabelo. A primeira operação se resume em desmontar o sifão da pia para ver se o cabelo ficou agarrado em alguma das sinuosidades do cano. Se não for encontrado, deve-se abrir o pedaço de cano que vai do sifão ao encanamento do esgoto principal. É certo que nessa parte aparecerão muitos cabelos e será preciso contar com a ajuda do resto da família para examiná-los um por um à procura do que tem o nó. Se não aparecer, colocar-se-á o interessante problema de quebrar o encanamento até o andar de baixo, mas isso significa um esforço maior, pois durante oito ou dez anos será necessário trabalhar em algum ministério ou numa casa de comércio para juntar o dinheiro que permita comprar os quatro apartamentos situados embaixo do de meu primo mais velho, tudo isso com a extraordinária desvantagem de que enquanto se trabalha durante esses oito ou dez anos não se poderá evitar a penosa sensação de que o cabelo não esteja mais no encanamento, e que só por um remoto acaso permaneça preso em alguma saliência enferrujada do cano.
Chegará o dia em que poderemos quebrar os canos de todos os apartamentos, e, durante meses, viveremos cercados por bacias e outros recipientes cheios de cabelos molhados, assim como de curiosos e mendigos, aos quais pagaremos generosamente para que procurem, separem, classifiquem e nos tragam os cabelos possíveis, a fim de alcançarmos a certeza desejada. Se o cabelo não aparecer, entraremos numa etapa muito mais vaga e complicada, porque o trecho seguinte nos leva aos esgotos maiores da cidade. Depois de comprar uma roupa especial, aprenderemos a nos esgueirar pela rede a altas horas da noite, armados com uma poderosa lanterna e uma máscara de oxigênio, e exploraremos as galerias menores e maiores, se possível ajudados por marginais com quem teremos travado relação e a quem precisaremos dar grande parte do dinheiro que ganhamos durante o dia em um ministério ou numa casa comercial.
Freqüentemente teremos a sensação de haver chegado ao fim da tarefa, porque encontraremos (ou nos trarão) cabelos semelhantes ao que procuramos; mas como não se conhece nenhum caso em que um cabelo tenha um nó no meio sem a intervenção da mão humana, acabaremos quase sempre por comprovar que o nó em causa é um simples engrossamento do diametro do cabelo (embora tampouco conheçamos algum caso parecido) ou um depósito de algum silicato ou óxido qualquer, provocado por uma longa permanência numa superfície úmida. É provável que avancemos assim por diversos trechos de esgotos menores e maiores, até chegarmos a esse lugar onde ninguém se atreveria a penetrar o esgoto principal que desemboca no rio, na junção torrencial dos detritos na qual nenhum dinheiro, nenhum barco, nenhum suborno nos permitirão continuar a busca.
Mas antes disso, e talvez muito antes, a poucos centímetros do buraco da pia, por exemplo, na altura do apartamento do segundo andar, ou no primeiro encanamento subterrâneo, pode acontecer que encontremos o cabelo. Basta pensar na alegria que isso nos provocaria, no cálculo espantado de esforços economizados por pura sorte, para justificar, para exigir praticamente uma tarefa semelhante, que todo professor consciente deveria aconselhar a seus alunos desde a mais tenra infância, em vez de secar-lhes a alma com a regra de três composta ou com as tristezas de Cancha Rayada".
Perda e recuperação do cabelo / Histórias de Cronópios e Famas / Julio Cortázar

III
"Desfila à cabeça das manifestações de esquerda. Costuma assistir aos atos culturais, embora se aborreça, porque sabe que depois vem a farra. Gosta de rum, sem gelo nem água, desde que seja cubano.
Respeita os sinais de trânsito. Caminha Quito de ponta a ponta, pelo direito e pelo avesso, percorrendo amigos e inimigos. Nas subidas, prefere o ônibus, e vai de penetra, sem pagar passagem. Alguns choferes bronzeiam: quando desce, gritam para ele 'zarolho de merda'.
Chama-se Choco e é brigão e apaixonado. Luta até Com quatro de uma só vez; e nas noites de lua cheia, foge para buscar namoradas. Depois conta, alvoroçado, as loucas aventuras que acaba de viver. Mishy não compreende os detalhes, mas capta o sentido geral.
Certa vez, faz anos, foi levado para longe de Quito. A comida era pouca, e resolveram deixá-lo num povoado distante, onde tinha nascido. Mas voltou. Depois de um mês, voltou. Chegou na porta da casa e ficou lá, esticado, sem forças para celebrar movendo o rabo, ou para se anunciar latindo. Tinha andado por muitas montanhas e avenidas e chegou nas últimas, feito um trapo, os ossos saltando, o pêlo sujo de sangue seco. Desde aquela época odeia os chapéus, as fardas e as motocicletas".
Crônica da cidade de Quito / Livro dos Abraços / Eduardo Galeano

IV
"Minha fiel secretária é das que tomam sua função ao pé da letra, e já se sabe que isso significa passar para o outro lado, invadir territórios, enfiar os cinco dedos no copo de leite para tirar um pobre cabelinho.
Minha fiel secretária se ocupa ou pretenderia ocupar-se de tudo em meu escritório. Passamos o dia travando uma cordial batalha de jurisdições, um intercâmbio sorridente de minas e contraminas, de saídas e retiradas, de prisões e resgates. Mas ela tem tempo para tudo, não só procura apropriar-se do escritório como cumpre escrupulosamente suas funções. Por exemplo, as palavras, não há dia que não as encere, as escove, as coloque na prateleira exata, as prepare e as enfeite para suas obrigações cotidianas. Se me vem à boca um adjetivo prescindível porque todos eles nascem fora da órbita de minha secretária ― e de certa maneira de mim mesmo ―, já está ela de lápis na mão agarrando-o e o matando sem lhe dar tempo de colocar-se ao restante da frase e sobreviver por descuido ou por hábito. Se eu deixasse, se neste mesmo instante eu deixasse, ela jogaria estas folhas na cesta, enfurecida. Está tão decidida a que eu viva uma vida condenada, que qualquer movimento imprevisto a leva a erguer-se, toda orelhas, toda rabo em pé, tremendo como um arame ao vento. Tenho que disfarçar, e a pretexto de que estou redigindo um relatório, encher algumas folhinhas de papel cor-de-rosa ou verde com as palavras que eu gosto, com as suas brincadeiras, os seus saltos e as suas brigas raivosas. Enquanto isso, minha fiel secretária arruma o escritório, aparentemente distraída mas pronta para dar o bote. Na metade de um verso que nascia tão contente, pobrezinho, eu a ouço começar seu horrível guincho de censura, e então meu lápis volta a galope às palavras proibidas, risca-as correndo, ordena a desordem, fixa, limpa, dá esplendor ― e o que sobra é provavelmente muito bom, mas essa tristeza, esse gosto de traição na língua, essa cara de chefe com sua secretária"
.
Trabalhos de Escritório / Histórias de Cronópios e Famas / Julio Cortázar

V
Um homem da aldeia de Neguá, no litoral da Colômbia, conseguiu subir aos céus.
Quando voltou, contou. Disse que tinha contemplado, lá do alto, a vida humana. E disse que somos um mar de fogueirinhas.
– O mundo é isso – revelou. – Um montão de gente, um mar de fogueirinhas.
Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não aluminam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo.
O Mundo / Livro dos Abraços / Eduardo Galeano


VI
"De uma carta jogada em cima da mesa sai uma linha que corre pela tábua de pinho e desce por uma perna. Basta olhar bem para descobrir que a linha continua pelo assoalho, sobe pela parede, entra numa lâmina que reproduz um quadro de Boucher, desenha as costas de uma mulher reclinada num divã e afinal foge do quarto pelo teto e desce pelo fio do pára-raios até a rua. Ali é difícil segui-la por causa do trânsito, mas prestando atenção a veremos subir pela roda do ônibus estacionado na esquina e que vai até o porto. Lá ela desce pela meia de nylon da passageira mais loura, entra no território hostil das alfândegas, sobe e rasteja e ziguezagueia até o cais principal, e aí (mas é difícil enxergá-la, só os ratos a seguem para subir a bordo) atinge o navio de turbinas sonoras, corre pelas tábuas do convés de primeira classe, passa com dificuldade a escotilha maior, e numa cabine onde um homem triste bebe conhaque e ouve o apito da partida, sobe pela costura da calça, pelo jaleco, desliza até o cotovelo, e com um derradeiro esforço se insere na palma da mão direita, que nesse instante começa a fechar-se sobre a culatra de um revólver".
As linhas da mão / Histórias de Cronópios e Famas / Julio Cortázar

VII
"Na ilha de Vancouver, conta Ruth Benedict, os índios celebravam torneios para medir a grandeza dos príncipes. Os rivais competiam destruindo seus bens. Atiravam ao fogo suas canoas, seu azeite de peixe e suas ovas de salmão; e do alto de um promontório jogavam no mar suas mantas e vasilhas.
Vencia quem se despojava de tudo"
Os índios 4 / Livro dos Abraços / Eduardo Galeano

VIII
"Agora acontece que as tartarugas são grandes admiradoras da velocidade, como é natural.
As esperanças sabem disso e não ligam.
Os famas sabem e caçoam.
Os cronópios sabem e cada vez que encontram uma tartaruga, puxam a caixa de giz colorido e na lousa redonda da tartaruga desenham uma andorinha".
Tartarugas e Cronópios / Histórias de Cronópios e Famas / Julio Cortázar

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Retorno de Clara

Caso decidisse brincar de matar todas as pessoas do mundo, olhando e fuzilando, olhando e fuzilando, olhando e fuzilando sem cansar, Clara, inundada de desfaçatez, perceberia que quando o campo de batalha estivesse finalmente inerte, quando os corpos mutilados não se distinguissem dos pedregulhos rugosos, um único homem permaneceria de pé... e ele sequer se daria conta de toda matança. Não demoraria muito até caminharem juntos, percorrendo dedicatórias e estorvos, entretidos com as histórias do tempo em que estiveram afastados. Os sorrisos seriam os mesmos e, como de costume, recordariam dos velhos, bons - e protocolados - momentos. Clara recordaria do dia, quando tinha dez anos, em que a avó lhe contou - recomendando com fervor pelo excesso de cálcio - que farinha de rosca era feita de ossos humanos infinitamente triturados após serem recolhidos no cemitério da cidade. Sua avó nunca usou de tapetes persas para ocultar as sujeiras da memória. Quando o primeiro homem voltou, o primeiro homem de Clara, ela não sabia como reagir, ele estava gordo, não disfarçava os primeiros fios brancos, mantinha o arroto matinal, e mesmo que todo seu otimismo lhe obrigasse a acreditar que ainda eram os mesmos, como se o tempo se costurasse sozinho para apagar distâncias galgadas com muita dor, não negou diante do circo místico seu próprio retorno ao campo de batalha. Temia ser obrigada a brincar de acreditar em todas as pessoas do mundo, fingindo e ressuscitando, fingindo e ressuscitando, fingindo e ressuscitando até cansar, mas não conseguia se desvencilhar do reencontro consigo mesma num universo de possibilidades. Clara odiava o seu segundo homem por ter se tornado uma mulher incapaz de amar o primeiro. Desde então, com os cabelos cacheados, sempre atravessa um beco finíssimo antes de se decidir.