sexta-feira, 1 de junho de 2007

Assis Nachtergaele

(Foto: Rodrigo Almeida - Isso não é um dedo [celular])

Tenho a impressão de ter sido o último dos recifenses, a assistir Baixio das Bestas (Brasil, 2007), de Cláudio Assis, afinal de contas, nas últimas semanas, não se fala de outro filme na cidade, senão esse. Não digo nem de maneira mais ampla, pois não chequei em números reais o público total da produção. Nem me interessa fazer esse tipo de checagem, por enquanto. Refiro-me apenas a algumas conversas na universidade, enquanto tomamos algumas cervejas ou durante o almoço (não que deixemos de tomar algumas cervejas durante o almoço também). Mas desde que estreou, tenho escutado todo o tipo de comentário, sessão após sessão – e só isso já é um fato muito interessante, a ser discutido enquanto produção local: de um lado, alguns que odeiam Cláudio Assis como pessoa e gostaram de seu filme, do outro, alguns que odeiam Cláudio Assis como pessoa e não gostaram de nada. Só há uma unanimidade nisso tudo e como não poderia deixar de ser, também compartilho dela. Basicamente minha opinião freqüenta um pouco cada uma das anteriores, mas não posso negar que depois de tanta discussão, apenas acho Baixio das Bestas um filme menor. Na verdade, imagino que um possível ‘making of’ seria uma produção mais interessante que o original em si – e talvez os risos fossem inevitáveis. O roteiro seria bem simples: acompanhar o impacto na equipe técnica de uma temporada de autodestruição, em Nazaré da Mata, regida por Cláudio Assis e retificada por seu fiel escudeiro, Mateus Nachtergaele, durante as gravações de um filme ‘cru e seminal’ (e que fique bem entre aspas essas palavras). O resultado seria tão carregado quanto a produção original – vide o estado do personagem de Caio Blat - ponto de ligação entre o filme que imagino na cabeça e a obra de fato. Alguém apostaria que essa idéia seria ainda mais carregada – eu apostaria que seria ainda mais carregada, afinal o filme não expõe a violência de maneira a criar uma angústia, cena por cena costurada por uma resolução psico-estético-textual – como acontece, por exemplo, em Funny Games, de Michael Haneke ou Irreversível, de Gaspar Noé, mas apenas busca o choque pelo choque com um leve bafo de cachaça. E apesar dos ditos contrários, sequer consegue atingir esse mero objetivo. Inclusive boa parte dos diálogos, compostos basicamente por palavrões, segue essa mesma linha de pensamento barato. Sobra, por fim, um retrato, quase sem talento, do cotidiano atípico de uma realidade do interior do estado. E pelo menos esse último detalhe – excetuando o valor posto sobre ele – está acima de qualquer julgamento. É uma maneira própria de o diretor trabalhar e tecer uma atmosfera necessária. Por isso escrevo sobre os dois filmes: o imaginado e o de fato. Talvez Nicole Kidman e Björk façam o mesmo ao relatarem a experiência com Lars Von Trier. Os paulistas se chocam e adoram. Nós pernambucanos, no máximo, fingimos nos chocar. E somos ótimos nisso, não duvide.

Pra ser bem sincero, poucos saberiam diferenciar dentro da criação do universo tratado em Baixio das Bestas, o que é estritamente ligado às questões da Zona da Mata pernambucana, o que faz parte do ego rançoso do diretor e o que são ironias aleatórias e veladas. Na verdade, se trata de uma seqüência de ranços que se entrelaçam, a fim de constituírem toda sujeira projetada na tela. Os demônios particulares se tornam maiores que a esfera que deviam estar inseridos. Por sinal, já é a terceira vez que vejo Mateus Nachtergaele interpretar a si mesmo: a primeira, foi justamente no Garagem (e para quem é de fora do Recife, talvez seja necessário explicar, resumidamente, que o Garagem é o único bar que fica aberto na cidade depois das três, quatro da manhã: ou seja, todo tipo de gente, voltando de todo tipo de lugar, termina sua busca naqueles ares). Poderia simplesmente mentir e dizer que Garagem era um curta desconhecido e cult de meados da década de 90, mas dessa vez resolvi não brincar. Mas quem se arriscaria a dizer que eu estava mentindo? Apenas quem estava bebendo cerveja naquela noite e presenciou tudo. Ninguém mais. Enfim, voltando ao ponto, a performance de Mateus na frente do bar, se filmada, renderia como teste de elenco do ator, tanto para sua interpretação de si mesmo em A Concepção, de José Eduardo Belmonte como agora no filme em questão. Pois é: tirou a roupa, mostrou o pinto, sentou no colinho, jogou garrafa nas pessoas, agrediu uma mulher. Tudo. Só faltou dar uma tapinha na bunda de alguém. Se eu soubesse que todo aquele desempenho fazia parte da construção do personagem, teria entendido melhor. A questão é que ninguém o chamou de Everardo (pseudônimo usado pelo ator no filme pernambucano). Gritavam repetidamente: Mateus pára, pára, pára. Não parou. O impacto de Baixio das Bestas é uma farsa. Acho que enquanto concretização de projeto, pela megalomania no qual se estruturou a obra (custou R$ 1,5 milhão), é um grande ato porque, dada a situação de financiamento que vivemos, qualquer concretização dessa grandeza merece meia dúzia de palmas, no mínimo. Mas enquanto cinema, cinema, cinema, cinema, cinema acho que as pessoas começam a se contentar com muito pouco. 1,5 milhão de reais vale mais do que isso. E nem falo pelo dinheiro em si.

Baixio das Bestas é como ver Cláudio Assis nu (ou com a calcinha de Dira Paes) e bêbado (e ainda estou agradecendo o fato do diretor não ter chegado a esse ponto do mal gosto). Se bem que sua aparição já no final da película, quando a jovem Auxiliadora está trabalhando no posto de gasolina, me causou a sensação de que sua cria era uma metáfora de si mesmo. Do clima carregado que permanece em qualquer ambiente diante de sua presença. Acho que Cláudio Assis é um pouco de tudo aquilo. Um pouco da orgia, do estupro, da violência, arrogância, sujeira e até mesmo do cinema. Um pouco de tudo e até mesmo do cinema. Assim como o Mateus Nachtergaele também. E talvez isso soe como um elogio dependendo de quem interprete. A maneira rançosa ao qual se estrutura todas as relações é, a meu ver, fundamentalmente ligada a imagem rançosa que o diretor constrói de si mesmo – para além de qualquer região que escolha como cenário de seus filmes. E não me culpem por esse olhar, afinal, ele tem lá seus fundamentos. Boa parte dessa cidade sabe que sim. Não vamos ser hipócritas justamente agora. E pensando dessa maneira, Baixio das Bestas não é simplesmente gratuito, mas reflexivo. Meio zona da mata, meio diretor perturbado. É extremamente autoral, para falar a verdade, ainda que eu não saiba bem quanta responsabilidade caberia a Cláudio Assis nesse conceito de ‘autoral’. Pouco me importa, por enquanto. Muitas histórias são contadas, rodam a cena e termina sendo melhor não acreditar em nada. E pela primeira vez, não desfiz o vínculo da obra diante de seu criador. Poderia desfazer por um momento e analisar separadamente a fotografia impecável de Walter Carvalho, algumas atuações realmente consistentes, como a simplicidade e o silêncio da Mariah Texeira, e até seqüências inteiras muito bem realizadas: tecnicamente o filme se mantém quase inabalável. Quase. Mas não consegui me desfazer do vínculo e voltar a enlaçá-lo ao final. Preferi ficar no laço original, dado pelo diretor em seu próprio mamilo. Argh. E se tratando dele, nada poderia ser mais previsível.

9 comentários:

Anônimo disse...

Tenho notado um pouco de medo das pessoas de realmente debater esse filme, talvez seja até um reflexo dessa hipocrisia que você fala.
Um mérito inegavél é a credibilidade com que os atores se entregam a proposta de um diretor, sobre uma temática justa, relevante.
Mas no final parece que é feito só pra paulista ver...
Baixô a Besta

GÊNERO CINEMATOGRÁFICO disse...

\O/

Anônimo disse...

filme pra 'sulista' ver é árido movie.
baixio da besta é filme pra todo mundo ver. ainda que ele seja tão 'feio' quanto seu diretor.

Julya V. disse...

rodrigo, você tirou as palavras da minha boca, muito embora você fale muito melhor do que eu jamais falaria.
pensei tanto em funny games também.
fantástico teu quase-ensaio, que de quase tem nada.

Rodrigo Almeida disse...

Julya... tu não sabe que o 'quase' é puro fingimento de modéstia minha. hahaha =P

Brincadeira... na verdade, eu coloco 'quase' só pra dar esse ar de 'coisa inacabada' que tenho gostado de admitir dentro do que escrevo. Afinal... esse texto, como qualquer outro, está terminado apenas até a próxima revisão. Ou até sua publicação. Mas essa última possibilidade está fora de cogitação né?

=]

Rodrigo Almeida disse...

Leli... preciso ver Árido Movie pra poder falar, porque toda vez nas discussões incluem esse filme e eu fico tentado a falar, mas me calo. Acho que o mínimo que pode fazer alguém que não viu o filme, é se calar até vê-lo.

Acho sim que Baixio das Bestas é um filme pra todos verem. E todos vão ver. E é bom que todos vejam mesmo. Só acho que as reações são diferentes. A nossa proximidade com a figura do diretor, com a presença dos atores, com a temática, com tudo presente, retratado, nos deixa numa posição diferente diante da obra. E acho particularmente interessante não negar isso, apesar de mesmo com esse aspecto, termos opiniões tão diferentes.

Mais interessante que o filme em si, foi o modo como ele se impôs nas discussões de audiovisual nessa cidade. Qual a última vez que uma produção pernambucana causou tanto impacto opinativo por aqui???

Isso é uma coisa muito boa, não nego.

Rodrigo Almeida disse...

Marco... acho que não se trata de um medo de debater, mas um 'debater-opinativo-barato'. Até se debate, mas em termos pré-definidos por ambos os lados. O que é uma besteira, pois a discussão permanece estática.

Acho que para além do 'gosto ou do não gosto', ás vezes sinto que preciso escutar também as razões e os fundamentos dessa opinião. Quaisquer que sejam esses fundamentos. Não importa.

Mas por outro lado, também admiro a experiência estética que não se traduz em explicação, sabe? E nesse sentindo, uma palavra mal empregada dentro de um discurso estragaria tudo. Menos a experiência estética em si.

Rodrigo Almeida disse...

Cynthia... \o/ \o/ \o/

Anônimo disse...

Gosto da qualidade desse seu ímpeto.