O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante (1989), de Peter Greenaway
I
Não há inutilidade mais divertida do que os pequenos jogos espontâneos, mesmo os esquizofrênicos acordados entre as pessoas e o destino: ‘volto para casa se aquele carro branco dobrar à esquerda, vou ao cinema se um cisne cair em cima dele’. Alguns esperam pacientemente pelas penas brancas, outros, menos preocupados, participam de brincadeiras mais
refinadas. Trata-se quase de uma aposta criativa (e, felizmente, nem tudo se torna irrelevante). Há uns cinco/seis anos propus uma dessas brincadeiras espontâneas a mim mesmo, quando decidi entrar em contato constante com alguns filmes, todos pegos numa locadora perto da universidade (Edit: só pra nomear, Fox Vídeo) . Não à toa: havia promoções e pacotes para VHS – 5 fitas, 5 dias, 5 reais, pois o dono do estabelecimento tinha de fazer aqueles produtos renderem o máximo antes de vendê-los, por conta da iminente consolidação do mercado de DVD (mídia que nessa época já deixava de lado o furor de novidade, sendo largamente
popularizada no Brasil em 2002/2003). Assisti muitos filmes em VHS durante toda essa época de transição: nenhum lançamento (os lançamentos deixava pra pegar em DVD caso já não tivesse visto no cinema). Foi então que iniciei o maldito jogo adolescente: a partir de filmes aleatórios do qual nada sabia, tinha de descobrir a década e se possível o ano de cada produção. Não valia ler sinopse, críticas, nada – tinha de decifrar apenas pela obra em si e alugá-la simplesmente pela capa. Para facilitar geralmente pegava 5 filmes que estavam dispostos sequencialmente na estante, o que trazia surpresas boas e ruins. Descobri dessa maneira cineastas, entre outros, como Wong Kar-wai – Amores Expressos, Anjos Caídos e Felizes Juntos permanecem até hoje sem lançamento em DVD – e Tsai Ming-Liang, além de obras como o peruano Não conte a ninguém (1998), que aborda como poucos a questão da autorepressão homossexual, o francês melancólico e autobiográfico Noites Felinas (1992), de Cyril Collard sobre Cyril Collard com atuação de Cyril Collard e o independente americano non-sense Gummo (1997). Em VHS, tudo era mais simples, graças as denotações de velhice presentes na qualidade da própria mídia (o que tirava um pouco a graça inicial da brincadeira).
Pois é: a pedra fundamental de meu interesse cinéfilo não foi outra coisa, senão um jogo espontâneo associado a uma promoção de fitas. Fui aos poucos, naturalmente e depois de certa prática vinculando uma ‘recorrência imagética’ a determinadas décadas: de maneira grosseira e desordenada, mas que necessariamente reverberaram a posteriori (em confrontos ou confluências de minhas conjunturas presentes diante das passadas). Num texto excepcional datado de março de 2002, Kléber Mendonça Filho toca nesse assunto e começa escrevendo que “foi foda rever ET aos trinta”. Reitero: tem sido foda rever vários filmes depois dos 20 (foda aqui no sentido de forte pra caralho pros acadêmicos desentendidos). Sejamos compreensíveis: não se podia esperar uma detalhada conduta metodológica de um adolescente se arriscando em prováveis análises estéticas. Mesmo agora, nenhuma rigidez inabalável precisa ser firmada, afinal os critérios da crítica estão envelhecidos se confrontados pela produção contemporânea. Há um certo mal estar diante desse possível
julgamento/enquadramento e sua aceitação; há um certo mal estar diante da própria opinião que, vez ou outra, se transveste de verdade através dos meios de comunicação tradicionais, instaurando assim, uma tendência ao consenso (e aqui temos de considerar os próprios leitores que fazem da crítica seus guias de consumo). Não se trata de um repúdio ao passado, longe disso – observo com extrema clareza uma trajetória jornalística da qual não canso de aplaudir. Trata-se mais de uma hibridização entre as ferramentas de análise crítica propostas até então (além do legado crítico e teórico cultural e cinematográfico) e a imanência de se estabelecer novas ferramentas – que para corroborarem com a contemporaneidade não precisam seguir outro caminho, senão o da fluidez, do estilo próprio e da possibilidade de transformação. Afirmar qualquer modelo pré-concebido, normativo ou imutável pode ocultar todas as escolhas e desvios pessoais uniformizando não só o processo, mas os resultados da reflexão. O perigo do compartilhamento de referências similares está rondando todos nós.
Mas voltando para a adolescência do início do texto, não demorou muito até a indústria de DVDs se firmar no mercado (no Brasil, o lançamento oficial aconteceu em 1998 e enquanto no final de 1999 não existiam nem 300 títulos disponíveis, no início de 2002 já passavam de 1100 – os VHS na locadora citada ficaram à venda por R$ 5, depois baixando para R$ 2). Logo em seguida, além dos lançamentos filmes antigos começaram a ser re-comercializados. O jogo adolescente (já incorporando algum rigor híbrido) se tornou mais difícil: cada vez mais, havia produções de diferentes épocas e países nas prateleiras, o que ratificou meu crescente interesse pelo cinema não-hollywoodiano (cinema esse que já tinha degustado, gargarejado e vomitado). Sem contar toda propaganda tecnológica sobre processos de remasterização, de restauração, além da própria preservação que acompanharam a ascenção do DVD – e que agora acompanham as novíssimas mídias, o HD-DVD e o Blu-Ray (logo mais estaremos falando em ausência de mídia e espaços compartilhados virtuais [Edit: chamado já de '
Cloud Computing'). Óbvio que não eram só propagandas: aquele costume de filmes velhos com qualidade péssima sofreu, de fato, um abalo. Lembro particularmente do impacto de ver Jack Nicholson em Um estranho no ninho (EUA, 1975), de Milos Forman. A diferença na qualidade da imagem dessa (em DVD) e de sua mais recente obra no cinema, Alguém tem que ceder (2003 - lançado no Brasil em 2004), era praticamente nula. Apenas pesadas rugas separavam os dois momentos (sem contar a pesada diferença qualitativa entre as duas produções). Mais recentemente aconteceu o mesmo: assisti
Estrela Solitária (EUA, 2005) e só meses depois
Paris, Texas (França / Alemanhã, 1984) - ambos dirigidos por Wim Wenders; ambos com roteiro de Sam Shepard. Fiquei refletindo como esses dois filmes poderiam ter sido concebidos numa mesma época, sob um mesmo espírito (ou pelo menos como há um diálogo forte entre eles): há aproximações imensas nas cores e em todo tratamento fotográfico; na própria temática de retorno à família; no ambiente que cerca a história até mesmo nas atuações e no comportamento das personagens. Relevemos o detalhe que 21 anos separam as duas produções. Pergunto-me diariamente sobre o impacto dessa atualização de produções antigas na comunidade não-cinéfila que pouco se importa em saber ano, diretor ou país dos produtos audiovisuais que consomem. Tiro pela minha sobrinha mais velha: preto e branco é muito antigo e colorido é lançamento.
Os vínculos grosseiros realizados até então entre imagens e década já não valiam tanto (apesar de constituírem um repertório quanto alguns elementos como figurino, por exemplo [Edit: algo que minha sobrinha já começa a perceber]). Havia apenas uma exceção: os anos 80. Era sempre a década mais fácil de ser identificada e continuava sendo: os próprios anos eram fáceis. Havia todo um ranço datado que eu identificava em quase todas as suas produções. Também não à toa: é a única passagem de dez anos que possuo um contato direto mediado em diferentes idades. Quando criança, no início da década de 90, os filmes que passavam na televisão aberta eram basicamente produções juvenis dos anos predecessores (e até hoje há certo bafo disso). Entre eles os ditos clássicos da infância: Os Gonnies (EUA, 1985), de Richard Donner; Clube dos cinco (EUA, 1985) e Curtindo a vida adoidado (EUA, 1986), ambos de John Hughes, Conta Comigo (EUA, 1986), de Rob Reiner e Quero ser grande (EUA, 1988), de Penny Marshall. Acrescento aqui o próprio ET. Nem preciso comentar a influência estadunidense implícita nesse processo (que também incluem a trilogia Indiana Jones, a trilogia De volta para o futuro, a trilogia Star Wars entre outros). Entretanto, na época da locadora, anos mais tarde, comecei a evitar justamente os filmes da década em questão: tudo passou a me soar muito tosco e nunca entrei na nostalgia cíclica particularmente direcionada a esse período (exceto pelas produções que mantinham essa relação emotiva infantil). Nasceu daí um rótulo para essa estética: a partir de então qualquer obra podia ser chamada de “década de 80″ (mesmo as não produzidas nesses fatídicos anos).
Esse adjetivo durou por algum tempo, enquanto consumia descontroladamente as fitas VHS ou mesmo os DVDs da locadora, sempre me desviando a todo custo da estética oitentista: me desviando das roupas coloridas descombinadas, dos cabelos assanhados esdrúxulos, das histórias-paródias-adaptações tosco-idiotas de patos
extraterrestres ou de
casais numa ilha perdida (sem dúvida, foi na mesma época em que me tornei um chato). É bastante irônico eu ter evitado alugar filmes dessa década já que foi justamente nela que o mercado de home video se consolidou “a ponto de pôr em crise a própria indústria cinematográfica clássica, ocasionando o fechamento de mil salas de projeção de filmes na América Latina” (Carreiro, 2003, P. 55) como pontua Rodrigo Carreiro, em sua tese “
O gosto dos outros”. Permaneci abusado, colhendo influências essencialmente nas décadas de 60/70/90/00 até descobrir o conceito de idiossincrasia e tomá-lo como elemento essencial para o entendimento de qualquer conjunto de filmes (e de qualquer experiência fílmica). Com certeza há reflexos desse pensamento nos ensaios-crítica anteriores de / sobre / a partir de
Limite e
Cantando na Chuva. De acordo com os olhares diferentes, de culturas diferentes, de passados diferentes teremos um único fato e várias memórias; uma única década e várias memórias. Cada uma distinta da outra, apesar de compartilharem um mesmo cerne e fundarem todas sua própria verdade. É interessante perceber essa lógica no filme 11 de setembro (2002), composto de 11 curtas dirigidos cada um por um cineasta diferente. Como dizer que os ataques terroristas foram idênticos para crianças iranianas e jovens novayorkinos? O 11 de setembro não foi apenas um. Mas essa questão vai além. O próprio estigma sobre uma determinada época ou fato se transforma diversas vezes, quando posteriormente o referente temporal envelhece e também passa por suas descobertas pessoais e transformações (inclusive transformações de repertório). A visão sobre o mesmo passado é uma aos cinco anos, outra aos catorze e outra ainda aos vinte e dois. Na verdade, isso acontece até entre civilizações inteiras, depende muito de quem conta a história: vide as diferentes denotações já atribuídas à Idade Média, por exemplo (ora ressaltando uma estagnação ou retrocedimento histórico, ora re-descobrindo e valorizando manifestações culturais). Apesar dos fatos serem taxados de idênticos e os produtos culturais estejam nas prateleiras à disposição de todos, a maneira de interpretar continua a se transformar. Minuto a minuto, metro a metro, fotograma a fotograma.
Aliás, tenho sorte do sir multimídia (que não é sir de verdade) Peter Greenaway concordar comigo: “o que mais surpreende é que nunca houve história, mas apenas historiadores. O cinema sempre conta uma história de cada vez. E sabemos que é artificial, porque as histórias de todos interagem. Acontece tudo de uma vez só. Minha história, sua história, a história de todo mundo. Retirar apenas uma única história desta bagunça toda é um fenômeno artificial. Eu tento fazer filmes que representam essa complexidade” (retirado da entrevista “
O cinema morreu (ou não)” realizada pela jornalista Camila Viera). Não há como falar de uma década, apesar de todo complemento de uma pesquisa, através de apenas uma memória – seria de uma extrema limitação não produzir um mosaico formado por diferentes vozes. Eu sei que estamos acostumados a expressão ‘história oficial’ e que vários orgãos tomam pra si a responsabilidade por essa versão, mas essa lógica é a mesma que marginaliza uma centena de manifestações culturais colocadas – pela história oficial – como secundárias. E a idade do referente é fundamental nesse pensamento, pois se há o passado com o qual nos relacionamos apenas através de documentos, obras, relatos, contos e registros (que constituem sim uma forma de memória e às vezes até uma nostalgia inventada), também há o passado recente, o passado que vivemos na infância e que habita de alguma maneira o nosso inconsciente, como uma permanente evocação –
Manuel Bandeira sabe bem do que estou falando. É o caso do final da década de 80 / começo da década de 90 no meu caso compartilhado por todo um grupo de jovens que estão com seus vinte e poucos anos. Dos cinco aos catorze anos, guardo certa nostalgia imaginária e dos catorze aos dezenove, uma repulsa agressiva. A partir dos vinte é preciso entender a potencialidade de significados que são e que podem ser agregados a um único momento histórico – e a tudo que lhe envolve. A década de 80 são várias – temos inicialmente que saber qual o ponto de vista que estamos aferindo, para, então, entendermos toda complexidade desse olhar. Há um período de dez anos e várias memórias diferentes. Enxergar (e entender) isso é fugir um pouco da ‘egotrip’ (já tão marcada nesse texto) e ir além. A década de 80 (e qualquer outra década) pode e não pode ser a mesma.Vamos esquecer por ora os conceitos binários ao qual estamos acostumados e nos deixar levar, como pontua Daniel Piza, por “toda a riqueza de percepções humanas, da lógica mais abstrata à emoção mais primeva – e também mais sutis, em que os meio-tons tomem o lugar dos maniqueísmos e as ironias da vida sejam explicitadas” (Piza, 2004, P. 50 – grifos meus).
É seguindo o pensamento da primeira parte do texto, que “O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante” (Reino Unido, 1989), de Peter Greenaway possa ser considerado um filme datado para as pessoas que o assistiram no âmbito de seu lançamento, ainda que para outros (e me incluo nesse segundo grupo) soe sem vínculo restrito com época alguma. Há uma clara distância reflexiva entre o referente que pensa a produção, enquanto ela lhe é contemporânea – que é o maior desafio do trabalho crítico – e o que se senta num sofá confortavelmente a quase 20 anos de distância. Com perdas e ganhos para ambos os lados. Os conceitos estéticos que me fazem associar tais e tais recursos, cores ou climas com uma década específica (no caso, a de 80), surgem a partir da construção de signos que esse período conotou em mim (num mesclado de infância, senso comum, experiências fílmicas e pesquisas posteriores). Só para ilustrar, Scanners (EUA, 1981) e A mosca (1986), amobos de David Cronenberg, por exemplo, resumem bem a minha recorrência imagética da década de 80 (e pela primeira vez nesse texto, usando essa expressão não como juízo de valor, afinal admiro as duas produções). No caso do segundo, trata-se de uma história de ficção científica trash, com toda uma tendência de efeitos
grotescos, permeada por um figurino atrapalhado e desconexo, além de um estranho design de objetos dispostos em cenários de cores escuras ou durante a noite. Além de que Geena Davis tem carimbado na testa a década que a consagrou (e mesmo que Thelma e Louise seja só de 1991). Existe uma quantidade ilimitada de produções oitentistas nessa linha. Aos dezessete, odiava todas, fazia piadas, ria das partes dramáticas e tensas. E apesar de atualmente saber desenvolver questões específicas para além do visual (como questões culturais, políticas e de gênero em Minha adorável Lavanderia (Reino Unido, 1985), de Stephen Frears, por exemplo), continuo sem grande interesse por essa produção.
Peter Greenaway é uma das poucas exceções – não a única (acrescentemos aí pelos menos David Lynch e os Irmãos Coen só para começar). O seu filme – citado no parágrafo anterior – não se encaixa em nenhuma das associações toscas oitentistas, exceto por um certo esboço de escuridão e obviamente pelo culto ao grotesco, ainda que um grotesco em outros tons (e tenho a impressão de que esse meu imaginário década de 80 se refere, em essência, à década de 80 norte-americana e ao
BRock – to até inspirando minha cabeleira na Cláudia Raia dessa época). Praticamente tudo se diferencia na obra do cineasta inglês (já em Lynch e nos Coen essa distância não é tão clara, o que não interfere em nada em minha plena admiração por seus cinemas). Para falar de Peter Greenaway não podemos nos desviar de seu esteticismo pomposo, neo-barroco, extravagante que liga cinema ao teatro e à pintura sem pudor. Se nas primeiras décadas do século passado, o cinema ainda procurava se afirmar como arte, procurava se distanciar do ‘teatro filmado’ e se afirmar enquanto linguagem (e de fato era uma lógica importante naquele momento), aqui não há mais esse tipo de preocupação, não há mais um limite fixo entre as linguagens: há apropriações, diálogo, intertexto, referências e auto-referências. O cineasta inglês traz em seu cinema uma modernidade mórbida e pervertida – em seus filmes trata de canibalismo, vingança, submissão, decomposição, morte, violência, zoofilia, sexo, mutilação e continua fino. Finíssimo. Se por um lado, toca permanentemente em temas sujos, por outro, usa de um extremo cuidado artístico para fazê-lo. O grotesco em Greenaway é extremamente belo.
Falemos um pouco de um recurso que ele sabe usar muito bem e de maneira bem pessoal: os travellings. Em O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante usa desse movimento para apresentar os cenários-ambientes: os planos-sequência que transitam do estacionamento até o restaurante (e vice-versa) mantém um ritmo que acompanha os personagens principais, mas que sempre dá destaque a todos os outros elementos de cena – a luz, a própria movimentação de coadjuvantes, tudo. Cada ambiente parece ter um tempo diegético próprio: a cozinha com suas figuras medievais, o salão com frequentadores requintados, o banheiro ’suspenso’ de qualquer vínculo temporal. Em essência, apenas os personagens-título (ou seus criados) transitam por todos os cômodos. E lá estão os travellings acompanhando fielmente: o que Albert arrasta Georgina pelo chão me parece o mais forte. Quando a câmera está parada fragmenta a visão do espectador em planos abertos, através da ação simultânea dos diferentes personagens-título, com atuações e gestos independentes. O Cozinheiro serve um prato enquanto o Ladrão humilha um dos presentes na mesa, enquanto sua mulher troca olhares com o amante que lia algum livro até então. Em O Livro de Cabeceira (1996) também fragmenta a visão, mas ao invés do recurso clássico do plano aberto investe em colagens e sobreposições de telas sobre telas, criando um ambiente hipertextual. O cineasta não se repete apesar de costurar em seus filmes uma ferida pessoal. Temos também Z00 – Um Z e dois zeros (Reino Unido, 1985), onde cineasta inglês usa do travelling (e por vezes, até do zoom óptico) para passear em salas de zoologia, onde dezenas de câmeras fotográficas registram sistematicamente vários animais em diversos estágios de decomposição. O trabalho fotográfico realizado por Sacha Vierny, que na década de 60 trabalhou com Alain Resnais em, entre outros, Hiroshima e Marienbad, é magnífico: flashs estouram por todos os lados em meio a uma penumbra pertubadora. Greenaway nos aproxima da escatologia pelos caminhos mais belos. A fotografia, sua própria direção, os atores, os cenários, a direção de arte é toda impecável, entretanto o que se sucede na tela é um encadeamento de fatos absurdos. Primeiro um cisne bate num carro branco onde duas mulheres morrem e uma terceira perde a perna (ok, agora vou ao cinema). Em seguida os ex-maridos das mulheres mortas, dois irmãos siameses separados se tornam simultaneamente amantes da sobrevivente, enquanto planejam voltar a se unir em um só corpo. Ambos são zóologos e entram numa paranóia diante do fato científico da vida e da morte, passando a estudar a fundo a decomposição dos seres e assim sucessivamente até armarem uma sessão de fotografias sistemáticas da decomposição deles mesmos. A cada novo filme, o cineasta inglês junta uma série de eventos bizarros e o trata da maneira mais limpa e natural possível. Uma atração-repulsa se instaura sem problemas, mas dependendo do pudor ou do humor, apenas graus diferentes de repulsa.
Há uma série de escolhas bem delineadas no Cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante que consolidam essa idéia da beleza. E abrindo aqui uma digressão (mais uma), vale ressaltar que o termo ‘beleza’ e a expressão ‘década de 80′ na mesma frase formavam, para mim, uma espécie de paradoxo – assim como para François Truffaut, os termos ‘britânico’ e ‘cinema’ numa mesma frase também constituíam uma incompatibilidade. De fato, ambos não conhecíamos Peter Greenaway quando formulamos essas frases. Por motivos diferentes: em 89, Truffaut estava morto há 5 anos, eu mal tinha me libertado das minhas fraldas e acho que não preciso repetir tudo que já escrevi anteriormente. Enfim, voltando à sequência de escolhas do filme podemos pontuar: o exuberante palco-cenário-restaurante onde se desenrola praticamente todo filme; Gaultier como responsável pelo figurino que muda de cor em determinadas situações; a trilha sonora de Michael Nyman (que também assina a trilha de Z00 com o qual forma uma espécie de atos diferentes de uma única peça musical transfílmica), da teatralidade dos atores diante do cenário e, por fim, a escolha de colocar o quadro “Banquete dos Oficiais da Companhia da Guarda de São Jorge“, do holandês Frans Hals no fundo do salão principal. Em alguns momentos, a mesa do filme se confunde com a mesa do quadro (e vice-versa). Consolida-se uma imagem dupla em distâncias focais diferentes ou um falso espelho a base de tintas. Greenaway não nega suas inspirações e seus caminhos prévios: em Z00, reproduz em cenas quadros do pintor holândes Vermeer (aquele da Moça com brinco de pérola), o faz numa semelhança desconcertante, além de durante todo filme soltar – por meio de suas personagens – diversas referências orais ao artista.
O cineasta-pintor-artista-multimídia inglês que não é sir nem nada está aqui impecável – insisto nesse elogio. Quase um transtorno obsessivo compulsivo estético. Tudo tão simétrico, irretocável e belo (e beira o irritante, por conta disso). De qualquer maneira, infinitamente distante do que a década de 80 nos oferece constantemente de tosco ou trash – toda aquela arte de descombinar em tão pouco espaço. Ainda assim, os que acompanharam o lançamento do filme, naturalmente o encaixam no ano em que foi concebido. Afinal o foi e é fato – não há como fugir. A década permanece a mesma (mas é sempre importante descobrir o que há além do véu escuro ou do veludo azul). Os olhares é que a retratam de modos tão diferentes conotando tons tão diversos. Peter Greenaway é realmente perspicaz: “Há escolhas! E eu quero dar todas essas escolhas, porque faz parte de todo o fenômeno. Quando você fala com sua avó, quando você fala com seu cachorro, quando você fala com seu amante, quando você fala com sua mãe, você conta histórias de forma diferente, porque são subjetividades diferentes, e você está querendo comunicar e você comunica de acordo com o que seu cérebro manda. Então, devemos fazer cinema – eu acredito – de maneira tão complicada quanto isso”. (citação retirada da mesma
entrevista citada anteriormente). Nossas subjetividades se transformam de acordo com o tempo, com a idade, com o lugar, com o meio que transmitimos e para quem nos referimos. Há um charme enorme por trás disso. Não entendo a necessidade de ocultar essas subjetividades na tentativa de vestir meia dúzia de palavras como soluções fáceis. Alguns jornalistas adoram negar a existência de si mesmos dentro de seus textos. Sem dúvida, prefiro jogar com as cartas viradas na mesa.
Antes de terminar esse ensaio, dois pontos não podem ser esquecidos. O primeiro se refere a como Peter Greenaway supera o classicismo cinematográfico, tomando como classicismo a linearidade narrativa, os enquadramentos corretos com todos personagens, mostrando que sabe manejá-lo ao seu bom gosto (como um cineasta-pintor), mas que também sabe desconstruí-lo quando necessário. É só comparar diretamente O cozinheiro… e O Livro de Cabeceira. Apesar de causarem efeitos similares, a estrutura narrativa é completamente diferente – plasticamente é diferente. Na verdade, todo grande artista passa por esse processo. Se Lars Von Trier fez “Europa” (1991), um filme tecnicamente impecável, com uma fotografia em preto e branco deslumbrante antes de lançar o movimento
Dogma 95, foi para deixar claro que possuía conhecimento sobre a técnica; mas que simplesmente também podia usá-la de outras maneiras a partir dali. É uma opção do artista em tomar para si outros padrões ou buscar novos projetos estéticos (acho que Picasso é uma referência e tanto nesse caso). Peter Greenaway não separa tanto um momento do outro; não separa a construção e a desconstrução e isso é o que o torna mais contemporâneo. O segundo ponto se refere a como seria fácil e plenamente possível qualquer personagem ou qualquer narrativa perder todo seu valor diante de tanta beleza estética. Isso acontece o tempo todo nos filmes de ficção científica recentes, onde a beleza engana tanto quanto a tosquice. Entretanto, Greenaway consegue fazer com que o contorno visual não encubra totalmente o desenvolvimento narrativo – discordo de sua verborragia em afirmar que o cinema não deveria contar histórias, porque esse processo de narração seria apenas um fenômeno literário. O que seria de Albert sem seus comentários desagradáveis? A palavra tem sim um papel fundamental, inclusive para tornar os momentos silenciosos mais emblemáticos.
E já que falei nela, vamos à história. Albert Spica (Michael Gambon) é o ladrão, a repugnância em seu estado mais podre. É a grosseria sem direção, a fonte da violência gratuita, o desprezo por tudo que o cerca. Provavelmente uma das figuras mais detestáveis criada por um cineasta e com um vasto espaço para usar da palavra. O filme todo é quase um monólogo desse calhorda. A sua mulher se chama Georgina (Helen Mirren). É a representação máxima de uma submissão velada e silenciosa quase irritante de tão passiva. Mas, ao mesmo tempo, é a fonte de onde parte a vingança sobre o marido: é um silêncio que se acumula. Michael (Alan Howard) sempre soa neutro em seu eterno paletó marrom. É o amante calmo, desajeitado, apaixonado por livros (alguns o colocam como sofisticado, não concordo). E, por último, temos o cozinheiro Richard Boarst (Richard Bohringer). Personagem que está em um plano superior e que ostenta certo orgulho em todos os seus atos, quase todos também silenciosos: é o único que não se humilha perante o ladrão e o responsável por acobertar os encontros amorosos entre Georgina e Michael. Tudo isso enquanto serve pratos aos seus clientes (por sinal há uma associação entre comida e sexo, assim como no Livro de Cabeceira, entre caligrafia e sexo). A história é simples, mas os personagens são extremamente fortes. Conseguem impressionar ora com seu silêncio (em especial o silêncio entre os amantes), ora com seu racismo e preconceito (contra judeus, africanos, ginecologistas…), ora com suas intimidades. A história é simples, mas se sustenta na beleza visual e, insisto, na violência textual. Peter Greenaway é um homem refinado e mórbido: cozinha a Margaret Thatcher como ninguém. Sempre o leve para jantar no ‘Le Hollandais’. E não esqueça de pedir Albert ao molho Spica. Bon appétit.
It’s French.
O Cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante. Reino Unido, 1989.
Direção e Roteiro: Peter Greenaway. Fotografia: Sacha Vierny. Trilha Sonora: Michael Nyman Figurino: Jean-Paul Gaultier Elenco: Richard Bohringer, Michael Gambon, Helen Mirren, Alan Howard, Tim Roth. 124 minutos.
Z00 – Um Z e dois zeros (1985), de Peter Greenaway)
Referências Bibliográfica:
CARREIRO, Rodrigo. O Gosto dos Outros: Consumo, cultura pop e internet na crítica. Recife: PPGCOM, 2003. [dissertação de mestrado].
PIZA, Daniel. Jornalismo Cultural. 2ª Edição. São Paulo, SP: Contexto, 2004.
TRUFFAUT, François. O Prazer dos Olhos: escritos sobre cinema Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor, 2004.