Nada o irritava tanto quanto ser acordado pelo telefone da sala, nem mesmo o detestável barulhinho dos despertadores de R$2 que vendem de rolo na rua Nova. Mais uma vez cochilara com o cigarro nos dedos e um dia ainda tocaria fogo na casa. Precisava dar um jeito na narcolepsia. Apagou o filtro queimado e tentou ser rápido o bastante para pegar o gancho antes que alguém o fizesse. Alguém o fez. A fumaça continuava firme saindo do cinzeiro. Decidiu escutar para tirar a prova dos nove, só pra ter certeza se teriam desligado ou atendido. Sentiu-se tirano por um segundo. Sua mãe estava na escuta, a voz dura falhava pela primeira vez: haviam encarcerado seu filhote na prisão. Ícaro sabia que mais dia, menos dia uma grande merda se abateria sobre seu irmão. Era apenas uma questão de tempo e o tempo havia chegado. Apesar do sorriso em sua face, da respiração precisamente controlada e do desespero do outro lado da linha, não ironizou o fato do irmão ser tão forte em outros dias, tão orgulho e supra-sumo mentiroso. Sentia um prazer mórbido por vê-lo como um coelhinho assustado ligando para a mamãe. Os dias de glória eram pequenas lacunas em histórias repetidas. Contou os segundos nos dedos. Foram 7. A porta do quarto de seus pais abriu numa pancada só. Rasgos de boca na aurora, dentes trincados e um sorriso exposto em sua face de garoto-homem. O circo iria começar.
Nenhum sussurro típico da manhã nos corredores recém acordados. Os gritos aumentavam e as lágrimas de sua mãe eram verdadeiras, mas não preencheriam nem um miudinho do rio Ganges. As cobras que conhecia eram cegas e não choravam. Falava de seu marido não estar nunca em casa. Falava da possibilidade dele ter uma amante. Falava e falava e falava sem parar. Esquecera que a questão não era o seu marido ter ou não uma amante, seu casamento ser ou não um fracasso e sim o fato de seu filho estar atrás das grades. Ela, cobra cega que era, nunca se daria ao trabalho de culpar seu preferido. Nunca. Ícaro queria culpar os seus pais, queria culpar seu irmão, queria culpar alguém e não ter peso algum na consciência por isso. Não era capaz. Incrível como as lágrimas de sua mãe o deprimiam por mais que ele fingisse o oposto. Sentia-se fraco e logo notou as formigas de sua esquizofrenia correrem por seu braço esquerdo. Tentou matá-las mais uma vez. A porta de um outro quarto se abriu. Saíra sua irmã de cabelos longos e loiros enrolada em um lençol. Harpia perigosa e sedutora. Olhou a mãe e perguntou sobre o ocorrido. Não se surpreendeu em uma linha de seu rosto ao saber e por pouco não o sentenciou culpado friamente em meio a todos. Sua mãe era definitivamente uma cobra cega. Ícaro voltou ao sofá da sala e em sua calma plena tomou de volta o livro em suas mãos. Voltou a ler como se nada tivesse acontecido. Anaximandro estava desperto e deitara sob os seus pés. Finalmente um carinho. Estava conseguindo abstrair a pressão daquela casa e de suas paredes carregadas de ódio. Sua mãe não deixaria isso acontecer por mais tempo e ele não contaria os segundos desta vez.
Rimbaud voou na parede. Ícaro fitou sua mãe abrindo e fechando a boca em seqüência como um peixe. Um peixe destruído pelo tempo. Sorriu e em seguida sentiu um tapa na face que o trouxe de volta. Sorriu novamente. Sua mãe partiu para agredi-lo. Sua irmã-harpia soltou os lençóis e segurou a mãe por entre seus braços já tocados por metade da cidade. Entendera finalmente o que acontecia. A cobra cega queria que ele chorasse, ou pelo menos que ele sofresse pelo irmão. Sem chance. Sociedade dos poetas mortos, os últimos dos rebeldes, as invasões bárbaras... poderia listar os inúmeros filmes pelo qual já derramara lágrimas e lágrimas, mas por seu irmão não desperdiçaria uma sequer. A harpia seminua segurava a cobra cega. Um quadro poderia ser pintado e nesse novo mundo que se esconde pelas pilastras da escuridão seria colocado em uma das portas do corredor principal. Sorriu pela terceira vez ao imaginar o incesto daquelas duas figuras. Seria seu último sorriso. Incrível como sua mãe nunca culparia o filho preferido. Não que se considerasse um Gabriel, mas alguém precisava cortas suas asas. Logo Ícaro pensava em asas. O cachorro diabético correra para algum canto onde não pudesse ver pessoas. Estava assustado. O garoto-homem tirou a ira de si e a expôs no meio da sala. Falou tudo que achava, tudo que sabia sobre o irmão. Não poupou palavras ou gestos, não censurou sequer uma expressão. Sua mãe acendeu um cigarro. Ela já sabia de tudo. Seu julgamento permanecia impassível. Ícaro ficou pensativo: quantos anos fazia que ele não dava um abraço honesto em alguém de sua família? Cinco de dezoito. A culpa que procurava não era por causa da infelicidade do seu irmão, era por sua própria infelicidade, por sua vida não ser símbolo de coisa alguma.
Anaximandro estava mais doente do que nunca, perdia a visão à olhos vistos, provavelmente teria que ser sacrificado em poucos meses. Sua irmã estava grávida mais uma vez e seu pai estava em uma nova viagem comendo putas no interior. Ícaro iniciara uma jornada depressiva mais profunda que todas anteriores, já não se preocupava em fumar na frente da mãe, já não freqüentava as aulas na faculdade. Quase não falava, quase não comia. Estava desistindo aos poucos de viver. Tornara-se um fantasma de si mesmo, estava magro, pálido e sem saco para conversas ao telefone. Ocupava seu corpo como um vasilhame sujo. Queria tanto sair daquela casa e esquecer sua vida. Lembrava diariamente de Janis Joplin que transava com todos os homens, mas no final da noite sempre dormia sozinha. Comprou oito pães, um sonho e voltou mais apressado do que nunca temendo encontrar alguém que o desviasse de seu objetivo. Abriu a grade de casa e foi direto ao banheiro. Pegou algum remédio para sono e tomou todos comprimidos de uma só vez. Talvez morresse, talvez entrasse em coma induzido como queria. Existia a possibilidade de sonhar. Acreditava apenas em como sonhava coisas maravilhosas e como acordava em pesadelos terrenos. Sua vida era tudo o que não queria. Sentou no sofá, abriu o livro de Rimbaud, acendeu um último cigarro e dormiu antes do sétimo trago.
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