Junto com Demian, de Hermann Hesse, O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde e Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, Encontro Marcado, lançado originalmente em 1956, ocupa um dos lugares no panteão de livros que precisam estar por perto, para consulta existencial, como se carregassem, cada um deles ao seu modo, parábolas de minha própria vida. Diferente dos outros, no entanto, nunca consegui terminar de lê-lo, tamanha confiança que depositei no paralelismo, não necessariamente similitude, entre a minha experiência e condição humana e o trecho que acompanha da infância ao início da vida adulta de Eduardo Marciano. Todas as duas ou três vezes que chegava na metade, desistia candidamente. Sempre tinha a certeza de que só deveria me aventurar na segunda parte, com o personagem casado e não sei se até a sua morte, quando estivesse com os meus quarenta anos, por puro medo de que fosse rompido o contrato estabelecido entre o livro desmembrando página a página sua geração e eu desmembrando lembrança a lembrança a minha. Não a toa Encontro Marcado se tornou livro de cabeceira de vários jovens no final da década de 50, que se identificavam com o caráter cosmopolita quase sem referências ao campo ou ao êxodo, fortalecendo dilemas, angústias e liberdades emergentes com o fim da Segunda Guerra Mundial. Ao mesmo tempo que conduz uma época, traçando um retrato histórico, Fernando Sabino fundamenta seu intento a partir de uma profunda filosofia do cotidiano. Vejamos alguns trechos:
"Tudo acontecia numa seqüência rápida, sem trégua, mal ele tinha tempo de acomodar-se a uma transformação em sua vida, e logo vinha outra, ainda maior. Que viria agora?"
"Era preciso ir devagar – saber envelhecer. O fruto que apanhava ainda verde, deixava apodrecer na mão. Casado. A vida o afastava de sua origem, de seus amigos. Já nem sempre estaria presente nas lembranças deles, o tempo o empurrava com força demais e isso era terrível. Mal podia sentir o gosto das novas experiências, já não eram novas, ficavam logo para trás, o passado, ele que não tinha presente, não tinha nada, não fizera nada – por que não podia parar um pouco, descansar, não dar mais um passo? Queria adquirir seus hábitos também; certa maneira de ser, ele que era moço. Sozinho"
"Sozinho, o tempo passando, ignorava tudo que ficava para trás: Mauro fizera um poema e ele não sabia, Hugo lhe mandara um telegrama, apenas um telegrama lhe mandara Hugo. Assim, eles iam mudando: nada de intimidades. Uma suave cortesia. Uma distinta amizade. Amabilidade de parte a parte. E falsidade, hipocrisia, conveniência. Pois não, também acho, com prazer. Com quem puxar angústia agora? Nascemos para morrer – nada pior do que não ter nascido. A vida tem dessas contradições, dizia o pai. Onde as verdades eternas? O tempo levava tudo, ele não tinha onde se ancorar. Tudo isso é natural, diria ele, natural; viver é assim mesmo. O tempo acontece, o que tinha de ser já foi, agora a nostalgia de já ter sido em experiência, etcetera, etcetera. Conheceria novas pessoas, pensarias outras coisas, ouviria em silêncio prudente e compassivo opiniões alheias que um dia já foram suas. E está certo. Não se pode fazer da dúvida de outrora o pão nosso de cada dia: não posso responsabilizar ninguém pelo destino a que me dei. Sozinho: sozinho no mundo. O que significa isso?"
"Há uma fresta em minha alma por onde a substância do que sou está sempre se escapando mas não vejo onde nem por quê. Depressa, não há tempo a perder. Também tenho meu preço mas ninguém conseguirá me comprar, todo dinheiro do mundo não basta, hei de escapar como água entre os dedos da Coisa que me aprisionar entre os dedos – hei de fluir como um rio, dia e noite, nem que tenha de dormir de pé"
"Ai Minas Gerais, tuas sombras, teus noturnos, teus bêbados pela ruas, Eduardo Marciano, minha mágoa, minha pena, minha pluma, merecia morrer afogado, o barco te leva para longe, a praia está perdida, mas voltarás nem que tenhas de andar sobre as águas..."
"De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura, um encontro".
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