quarta-feira, 28 de abril de 2004

Encontro Marcado - Fernando Sabino

Junto com Demian, de Hermann Hesse, O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde e Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, Encontro Marcado, lançado originalmente em 1956, ocupa um dos lugares no panteão de livros que precisam estar por perto, para consulta existencial, como se carregassem, cada um deles ao seu modo, parábolas de minha própria vida. Diferente dos outros, no entanto, nunca consegui terminar de lê-lo, tamanha confiança que depositei no paralelismo, não necessariamente similitude, entre a minha experiência e condição humana e o trecho que acompanha da infância ao início da vida adulta de Eduardo Marciano. Todas as duas ou três vezes que chegava na metade, desistia candidamente. Sempre tinha a certeza de que só deveria me aventurar na segunda parte, com o personagem casado e não sei se até a sua morte, quando estivesse com os meus quarenta anos, por puro medo de que fosse rompido o contrato estabelecido entre o livro desmembrando página a página sua geração e eu desmembrando lembrança a lembrança a minha. Não a toa Encontro Marcado se tornou livro de cabeceira de vários jovens no final da década de 50, que se identificavam com o caráter cosmopolita quase sem referências ao campo ou ao êxodo, fortalecendo dilemas, angústias e liberdades emergentes com o fim da Segunda Guerra Mundial. Ao mesmo tempo que conduz uma época, traçando um retrato histórico, Fernando Sabino fundamenta seu intento a partir de uma profunda filosofia do cotidiano. Vejamos alguns trechos:

"Tudo acontecia numa seqüência rápida, sem trégua, mal ele tinha tempo de acomodar-se a uma transformação em sua vida, e logo vinha outra, ainda maior. Que viria agora?"

"Era preciso ir devagar – saber envelhecer. O fruto que apanhava ainda verde, deixava apodrecer na mão. Casado. A vida o afastava de sua origem, de seus amigos. Já nem sempre estaria presente nas lembranças deles, o tempo o empurrava com força demais e isso era terrível. Mal podia sentir o gosto das novas experiências, já não eram novas, ficavam logo para trás, o passado, ele que não tinha presente, não tinha nada, não fizera nada – por que não podia parar um pouco, descansar, não dar mais um passo? Queria adquirir seus hábitos também; certa maneira de ser, ele que era moço. Sozinho"

"Sozinho, o tempo passando, ignorava tudo que ficava para trás: Mauro fizera um poema e ele não sabia, Hugo lhe mandara um telegrama, apenas um telegrama lhe mandara Hugo. Assim, eles iam mudando: nada de intimidades. Uma suave cortesia. Uma distinta amizade. Amabilidade de parte a parte. E falsidade, hipocrisia, conveniência. Pois não, também acho, com prazer. Com quem puxar angústia agora? Nascemos para morrer – nada pior do que não ter nascido. A vida tem dessas contradições, dizia o pai. Onde as verdades eternas? O tempo levava tudo, ele não tinha onde se ancorar. Tudo isso é natural, diria ele, natural; viver é assim mesmo. O tempo acontece, o que tinha de ser já foi, agora a nostalgia de já ter sido em experiência, etcetera, etcetera. Conheceria novas pessoas, pensarias outras coisas, ouviria em silêncio prudente e compassivo opiniões alheias que um dia já foram suas. E está certo. Não se pode fazer da dúvida de outrora o pão nosso de cada dia: não posso responsabilizar ninguém pelo destino a que me dei. Sozinho: sozinho no mundo. O que significa isso?"

"Há uma fresta em minha alma por onde a substância do que sou está sempre se escapando mas não vejo onde nem por quê. Depressa, não há tempo a perder. Também tenho meu preço mas ninguém conseguirá me comprar, todo dinheiro do mundo não basta, hei de escapar como água entre os dedos da Coisa que me aprisionar entre os dedos – hei de fluir como um rio, dia e noite, nem que tenha de dormir de pé"

"Ai Minas Gerais, tuas sombras, teus noturnos, teus bêbados pela ruas, Eduardo Marciano, minha mágoa, minha pena, minha pluma, merecia morrer afogado, o barco te leva para longe, a praia está perdida, mas voltarás nem que tenhas de andar sobre as águas..."

"De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura, um encontro".

quinta-feira, 22 de abril de 2004

segunda-feira, 19 de abril de 2004

Tudo

Não há uma diferença física nas mãos dos poetas, somos todos miseráveis, bêbados, cientistas ou profetas, terminamos como os cometas perdidos pelas bandas de Netuno. É aquela velha sensação sobre o tempo, sobre os anos que se passam, sobre as marcas na pele, sobre todos aqueles filmes e amigos que nunca fizemos. É o inevitável esquecimento do singelo, as mentiras reunidas num espirro e as vírgulas que pontuam e confundem as nossas vidas.

É o sorriso dos amigos ébrios caídos na sarjeta, as primeiras lágrimas depois do almoço e o abraço já sem força no início da manhã. É o acordar sem ninguém e o ir dormir sozinho. São os dois juntos suspensos sobre a mandala dos sonhos. É o medo de envelhecer e não ter sido, a crença nostálgica de que o passado é sempre mais seguro. São as rugas que ainda não existem, os filhos que não nasceram, a felicidade que nos habita apenas em estado de devir. É a incerteza diante do eterno transitório.

É o medo de não ser capaz. De beijar sem vontade, de sorrir o sem jeito e de levar consigo apenas os espinhos das rosas vermelhas. Nunca se sabe direito sobre o que é, apenas se traduz como aquela velha sensação sobre o tempo. É sobre o cada antes e sobre o cada depois. É sobre nossas cicatrizes, sobre as cinzas que se misturam ao cheiro do derradeiro suor que escorre pelo corpo. São os livros que deixaremos de escrever, as palavras que inundam o não dito e os gestos que nunca fizeram parte de mim.

São as mãos trêmulas e o tempo nos olhos que viram o além-mundo e o além-olhos. São as ondas. O oceano inteiro. A chuva que nos leva, que nos molha, que nos lava. É o sexo rápido com duas ou mais pessoas, os pulsos e as nádegas tatuados, o sangue saindo do nariz e pingando pelo queixo. É ser macaco na mão de Buda, cantar Hare Krsna com os bolsos cheios de grana, pular como Tom Bombadill antes de se jogar da janela do CFCH. É brincar de criar fábulas, de tocar flauta, de soltar bolas de sabão numa floresta de eucaliptos.

É a ira se metamorfoseando em prazer, os anjos caídos e ainda assim, anjos. Todas as quedas que levamos nas escadas. É o delírio de quem respira as vielas de concreto com os olhos castanhos cheios de lágrimas, o pequeno transe em cada verso. É a capacidade de criar ilusões para si mesmo, implantar no cérebro o canto da sereia. É também sobre o agora, sobre a mão em movimento sobre as teclas, sobre os olhos que observam as palavras. É, na verdade, sobre nós, entre nós.

sábado, 10 de abril de 2004

Metropolis

Nossas engrenagens são tão similares que olhamos para o mundo em busca dos mesmos parafusos.

terça-feira, 6 de abril de 2004

O Mundo


"The Fool turns to take that final step along his final path, and finds, to his bemusement, that he is right back where he started, at the edge of that very same cliff he almost stepped over when he was young and too foolish to look where he was going. But now he sees his position very differently. He thought he could separate body and mind, learn all about one, then leave it to learn about the other. But in the end, it is all about the self: mind and body, past and future, the individual, and the world. All one, including the Fool and the Mystic who are both doorways to the secrets of the universe.With a knowing smile, the Fool takes that final step right off the cliff...and soars. Higher and higher, until the whole of the world is his to see. And there he dances, surrounded by a yoni of stars, at one with the universe. Ending, in a sense, where he began, beginning again at the end. The world turns, and the Fool's journey is complete".


"The World (or Universe) card pictures a dancer in a Yoni (sometimes made of laurel leaves). The Yoni symbolizes the great Mother, the cervix through which everything is born, and also the doorway to the next life after death. It is indicative of a complete circle. The Dancer has one leg crossed over the other, just like the Hanged man. She is, in a sense, his opposite, the Hanged Man right-side-up. As the Hanged Man saw infinitely inward, the Dancer sees infinitely outward.The Dancer is also the opposite of the Wheel. The Wheel goes up and down like a Ferris Wheel, which means those on it feel like they get moved to higher or lower positions, are lucky or unlucky. The World, by compare, goes round and round like a carousel. This means that whatever corner of the universe a person gets sent to, it seems equally wonderful and interesting, not like a promotion or demotion. With the World there are no Zeniths or Nadirs; each corner is different, but all are similarly important".


sexta-feira, 2 de abril de 2004

Natural child, terrible child!

Nada o irritava tanto quanto ser acordado pelo telefone da sala, nem mesmo o detestável barulhinho dos despertadores de R$2 que vendem de rolo na rua Nova. Mais uma vez cochilara com o cigarro nos dedos e um dia ainda tocaria fogo na casa. Precisava dar um jeito na narcolepsia. Apagou o filtro queimado e tentou ser rápido o bastante para pegar o gancho antes que alguém o fizesse. Alguém o fez. A fumaça continuava firme saindo do cinzeiro. Decidiu escutar para tirar a prova dos nove, só pra ter certeza se teriam desligado ou atendido. Sentiu-se tirano por um segundo. Sua mãe estava na escuta, a voz dura falhava pela primeira vez: haviam encarcerado seu filhote na prisão. Ícaro sabia que mais dia, menos dia uma grande merda se abateria sobre seu irmão. Era apenas uma questão de tempo e o tempo havia chegado. Apesar do sorriso em sua face, da respiração precisamente controlada e do desespero do outro lado da linha, não ironizou o fato do irmão ser tão forte em outros dias, tão orgulho e supra-sumo mentiroso. Sentia um prazer mórbido por vê-lo como um coelhinho assustado ligando para a mamãe. Os dias de glória eram pequenas lacunas em histórias repetidas. Contou os segundos nos dedos. Foram 7. A porta do quarto de seus pais abriu numa pancada só. Rasgos de boca na aurora, dentes trincados e um sorriso exposto em sua face de garoto-homem. O circo iria começar.

Nenhum sussurro típico da manhã nos corredores recém acordados. Os gritos aumentavam e as lágrimas de sua mãe eram verdadeiras, mas não preencheriam nem um miudinho do rio Ganges. As cobras que conhecia eram cegas e não choravam. Falava de seu marido não estar nunca em casa. Falava da possibilidade dele ter uma amante. Falava e falava e falava sem parar. Esquecera que a questão não era o seu marido ter ou não uma amante, seu casamento ser ou não um fracasso e sim o fato de seu filho estar atrás das grades. Ela, cobra cega que era, nunca se daria ao trabalho de culpar seu preferido. Nunca. Ícaro queria culpar os seus pais, queria culpar seu irmão, queria culpar alguém e não ter peso algum na consciência por isso. Não era capaz. Incrível como as lágrimas de sua mãe o deprimiam por mais que ele fingisse o oposto. Sentia-se fraco e logo notou as formigas de sua esquizofrenia correrem por seu braço esquerdo. Tentou matá-las mais uma vez. A porta de um outro quarto se abriu. Saíra sua irmã de cabelos longos e loiros enrolada em um lençol. Harpia perigosa e sedutora. Olhou a mãe e perguntou sobre o ocorrido. Não se surpreendeu em uma linha de seu rosto ao saber e por pouco não o sentenciou culpado friamente em meio a todos. Sua mãe era definitivamente uma cobra cega. Ícaro voltou ao sofá da sala e em sua calma plena tomou de volta o livro em suas mãos. Voltou a ler como se nada tivesse acontecido. Anaximandro estava desperto e deitara sob os seus pés. Finalmente um carinho. Estava conseguindo abstrair a pressão daquela casa e de suas paredes carregadas de ódio. Sua mãe não deixaria isso acontecer por mais tempo e ele não contaria os segundos desta vez.

Rimbaud voou na parede. Ícaro fitou sua mãe abrindo e fechando a boca em seqüência como um peixe. Um peixe destruído pelo tempo. Sorriu e em seguida sentiu um tapa na face que o trouxe de volta. Sorriu novamente. Sua mãe partiu para agredi-lo. Sua irmã-harpia soltou os lençóis e segurou a mãe por entre seus braços já tocados por metade da cidade. Entendera finalmente o que acontecia. A cobra cega queria que ele chorasse, ou pelo menos que ele sofresse pelo irmão. Sem chance. Sociedade dos poetas mortos, os últimos dos rebeldes, as invasões bárbaras... poderia listar os inúmeros filmes pelo qual já derramara lágrimas e lágrimas, mas por seu irmão não desperdiçaria uma sequer. A harpia seminua segurava a cobra cega. Um quadro poderia ser pintado e nesse novo mundo que se esconde pelas pilastras da escuridão seria colocado em uma das portas do corredor principal. Sorriu pela terceira vez ao imaginar o incesto daquelas duas figuras. Seria seu último sorriso. Incrível como sua mãe nunca culparia o filho preferido. Não que se considerasse um Gabriel, mas alguém precisava cortas suas asas. Logo Ícaro pensava em asas. O cachorro diabético correra para algum canto onde não pudesse ver pessoas. Estava assustado. O garoto-homem tirou a ira de si e a expôs no meio da sala. Falou tudo que achava, tudo que sabia sobre o irmão. Não poupou palavras ou gestos, não censurou sequer uma expressão. Sua mãe acendeu um cigarro. Ela já sabia de tudo. Seu julgamento permanecia impassível. Ícaro ficou pensativo: quantos anos fazia que ele não dava um abraço honesto em alguém de sua família? Cinco de dezoito. A culpa que procurava não era por causa da infelicidade do seu irmão, era por sua própria infelicidade, por sua vida não ser símbolo de coisa alguma.

Anaximandro estava mais doente do que nunca, perdia a visão à olhos vistos, provavelmente teria que ser sacrificado em poucos meses. Sua irmã estava grávida mais uma vez e seu pai estava em uma nova viagem comendo putas no interior. Ícaro iniciara uma jornada depressiva mais profunda que todas anteriores, já não se preocupava em fumar na frente da mãe, já não freqüentava as aulas na faculdade. Quase não falava, quase não comia. Estava desistindo aos poucos de viver. Tornara-se um fantasma de si mesmo, estava magro, pálido e sem saco para conversas ao telefone. Ocupava seu corpo como um vasilhame sujo. Queria tanto sair daquela casa e esquecer sua vida. Lembrava diariamente de Janis Joplin que transava com todos os homens, mas no final da noite sempre dormia sozinha. Comprou oito pães, um sonho e voltou mais apressado do que nunca temendo encontrar alguém que o desviasse de seu objetivo. Abriu a grade de casa e foi direto ao banheiro. Pegou algum remédio para sono e tomou todos comprimidos de uma só vez. Talvez morresse, talvez entrasse em coma induzido como queria. Existia a possibilidade de sonhar. Acreditava apenas em como sonhava coisas maravilhosas e como acordava em pesadelos terrenos. Sua vida era tudo o que não queria. Sentou no sofá, abriu o livro de Rimbaud, acendeu um último cigarro e dormiu antes do sétimo trago.